O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, manteve a validade da norma que institui o juiz das garantias, mas estendeu para 180 dias, a contar da publicação da sua decisão, o prazo para sua implementação. Segundo Toffoli, as alterações trazidas pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) são de grande porte, e é necessário um período de transição mais adequado e razoável que viabilize sua adoção de forma progressiva e programada pelos tribunais. A decisão liminar foi proferida em Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas pela Associação dos Magistrados Brasileiros e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (ADI 6298), pelos partidos Podemos e Cidadania (ADI 6299) e pelo Partido Social Liberal (ADI 6300).
A norma estava prevista para entrar em vigor em 23/1. Para Toffoli, no entanto, é necessária a imposição de prazo maior para que os tribunais, a partir das diretrizes de política judiciária que vierem a ser fixadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), possam, "no exercício de sua autonomia e de acordo com as suas peculiaridades locais", estruturar e implementar a figura do juiz das garantias.
De acordo com a lei, compete ao juiz de garantias controlar a legalidade da investigação e zelar pelos direitos individuais do investigado. "O microssistema do juiz das garantias promove uma clara e objetiva diferenciação entre a fase pré-processual (ou investigativa) e a fase processual propriamente dita do processo penal", explica Toffoli. "A linha divisória entre as duas fases está situada no recebimento da denúncia ou da queixa, último ato praticado pelo juiz das garantias. Após essa etapa, as questões pendentes passam a ser resolvidas pelo juiz da instrução e do julgamento".
Parâmetros avançados já vinham sendo adotados em estados como São Paulo e Minas Gerais
Toffoli considerou que os dispositivos que criaram o instituto não invadiram competência concorrente dos estados e da União para editar normas sobre procedimento em matéria processual nem violaram o poder de auto-organização dos tribunais. Para o presidente do STF, as regras dizem respeito ao processo penal, matéria que de competência legislativa privativa da União. Segundo ele, do ponto de vista constitucional, é legítima a opção do Congresso Nacional de instituir no sistema processual penal brasileiro, mais precisamente na persecução criminal, a figura do juiz das garantias.
Na análise preliminar do caso, o ministro também considerou válido o conteúdo da norma. "A instituição do juiz das garantias pela Lei 13.964/2019 veio a reforçar o modelo de processo penal preconizado pela Constituição de 1988", ressaltou. "Tal medida constitui um avanço sem precedentes em nosso processo penal, o qual tem, paulatinamente, caminhado para um reforço do modelo acusatório". Para Toffoli, o instituto do juiz das garantias corrobora os mais avançados parâmetros internacionais relativos às garantias do processo penal, "tanto que diversos países já o adotam, não sendo uma novidade no cenário do Direito comparado".
O ministro observou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do qual também é presidente, instituiu grupo de trabalho com objetivo de elaborar estudo relativo à aplicação da Lei 13.964/2019 aos órgãos do Judiciário e assegurar a efetivação do juiz das garantias. Ele salientou que um estudo do CNJ sobre estrutura e localização das unidades judiciárias identificou sete Tribunais de Justiça que contam com centrais ou departamentos de inquéritos policiais. A seu ver, isso demonstra que esse modelo já está sendo difundido pelo país, pois aprimora a atividade judicial realizada na fase pré-processual. Entre os tribunais estaduais que introduziram a prática estão o de São Paulo e o de Minas Gerais, que implementaram o modelo nas comarcas das respectivas capitais.
STF veda aplicação da nova norma a Justiça Eleitoral, Tribunal do Júri e casos de violência doméstica ou familiar
Embora mantendo a validade do instituto, o presidente do STF suspendeu o dispositivo que determina aos tribunais que adotem sistema de rodízio de magistrados para efetivar a criação do juízo das garantias nas comarcas que tenham apenas um juiz (artigo 3º-D). Nesse ponto, ele entende que a norma, ao criar obrigação aos tribunais, viola seu poder de auto-organização e usurpa sua iniciativa para dispor sobre a organização judiciária. Também foi suspenso o dispositivo pelo qual o juiz que conheça de prova declarada inadmissível fica impedido de proferir decidir. Segundo Toffoli, a regra é excessivamente vaga e viola os princípios da segurança jurídica e da legalidade.
Na decisão, Toffoli afasta a aplicação da norma aos processos de competência originária dos tribunais e do Tribunal do Júri, nos quais o julgamento se dá por órgão coletivo; aos casos de violência doméstica e familiar, que exigem medidas imediatas de proteção às vítimas; aos processos de competência da Justiça Eleitoral, em razão da peculiaridade de sua dinâmica.
Transição impede aplicação do juiz de garantias às ações já instauradas quando da implementação do dispositivo
Como regra de transição, o ministro estabeleceu que, em relação às ações penais que já tiverem sido instauradas no momento da efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais, não haverá mudança do juízo competente. Segundo ele, o fato de o juiz da causa ter atuado na fase investigativa não implicará, automaticamente, seu impedimento. Em relação às investigações que estiverem em curso no momento da implementação, o juiz se tornará o juiz das garantias e, com o recebimento da denúncia ou da queixa, o processo será enviado ao juiz competente para a instrução e o julgamento da causa.
Mantida essa regra de transição quando do exame do mérito pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, ficarão fora do novo dispositivo casos de enorme impacto político, como os julgamento da Lava Jato e as investigações da suposta rachadinha (devolução parcial do salário por assessores) e das movimentações financeiras atípicas do então deputado estadual Flávio Bolsonaro.
A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem alegado repetidamente, até agora sem sucesso, a suspeição do juiz original dos processos na 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba, Sergio Moro. As queixas ganharam impulso com a nomeação de Moro para o Ministério da Justiça, após a eleição de Jair Bolsonaro, então pelo PSL. E voltaram à baila com o vazamento de mensagens de aplicativos entre Moro e integrantes da Força-Tarefa da Lava Jato, sugerindo a alteração na ordem de depoimentos e a divulgação de indícios obtidos de forma legalmente questionável, como as gravações telefônicas entre a então presidente Dilma Rousseff e Lula, à altura presidente de honra do PT.
Bolsonaro, por sua vez, enfrentou um inedito questionamento na base de apoio, de parlamentares a entusiastas nas redes sociais, ao se recusar a vetar a criação do 'juiz de garantias'. Críticos do presidente vieram a público apontando a contradição entre o respaldo público que conferia a Lava Jato desde a campanha e a iniciativa de não vetar a criação do juiz de garantias, em meio às discussões do pacote anticrime enviado pelo ministro da Justiça Sergio Moro e alterado no Congresso.
Muitos desses críticos da sanção sem veto atribuíam a iniciativa a um esforço para proteger o agora senador Flávio Bolsonaro, enfraquecendo o juiz da 27ª Vara Criminal, Flávio Itabaiana, responsável pela condução do processo em que são investigados 35 parlamentares e funcionários da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro por movimentações atípicas, como dezenas de depósitos do mesmo valor, abaixo dos montantes que geram a obrigação de informar a Comissão de Controle de Atividades Financeiras (COAF). Itabaiana negou recursos à defesa do senador e determinou, entre outros procedimentos, a quebra do sigilo telefônico de 29 pessoas ligadas ao gabinete ou à família de Flávio Bolsonaro.
Fonte: Com Portal do Supremo Tribunal Federal