A juíza federal substituta da 3ª Vara em Manaus, Raffaela Souza, concedeu direito de resposta ao povo Waimiri-Atroari face aos discursos do presidente Jair Bolsonaro e do chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, general Augusto Heleno. A decisão resulta do deferimento parcial do pedido de tutela antecipada em ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF). O povo indígena terá direito de veicular uma carta, com ícone na páginas inicial, nos sítios eletrônicos do Planalto e dos ministérios, pelo prazo de 30 dias. A multa, em caso de descumprimento das medidas, é de R$ 1 mil (hum mil reais).
O MPF pedia ainda que os indígenas tivesse acesso a lives de Facebook e três postagens (tweets, ou apitos, em português) no perfil da Presidência da República no Twitter. Essa parte do pedido, contudo, ficou de fora da tutela antecipada concedida pela juíza. A pandemia da Covid-19 impediu que houvesse audiência pública, explicou a juíza, por causa da recomendação de evitar aglomerações, o isolamento social criticado pelo presidente ao longo da semana, desafiando orientações do Ministério da Saúde e da maior parte dos governo estaduais, que seguem a orientação da Organização Mundial da Saúde.
Em no máximo 20 dias, o governo federal terá que indicar às autoridades públicas que não incitem ou encorajem a discriminação racial. A indicação terá que ser feita por meio de circular e manifestação pública do presidente e de sus ministros. O governo terá que seguir os termos da Convenção Contra Todas As formas de Discriminação Racial, da qual o Brasil é signatário.
Em um prazo maior, de 60 dias, o Governo Federal terá que elaborar um um plano de combate ao discurso de ódio contra povos indígenas no âmbito do Estado e na sociedade brasileira, com indicação de cronograma de reuniões com o movimento indígena e entidades indigenistas, observado o disposto no art. 6º da Convenção nº 169/OIT. No caso de eventual descumprimento das medidas, a juíza fixou desde já multa diária de R$ 1.000,00 (hum mil reais).
A juíza cita declarações do presidente da República e do general Augusto Heleno, repisando o conflito da visão integracionista expressa nos comentários e dos dispositivos da Constituição assegurando o multiculturalismo e o respeito aos costumes indígenas. O despacho transcreve trechos da petição da MPF para embasar a decisão:
“O indicador da omissão deliberada é a adoção de discursos discriminatórios, que desqualificam os grupos, notadamente ao tratar da ocupação territorial na Amazônia. No caso do povo Waimiri-Atroari, o discurso discriminatório tem como pano de fundo principal a implantação de uma linha de transmissão que pretende cruzar o território indígena, mas não se limita a esse tema, abrangendo também outros temas de interesse da sociedade regional, como a disputa pela circulação na rodovia BR-174. Com isso, cria-se um cenário favorável a práticas de violência contra esse povo, as quais já não são mais meramente potenciais.”
Como exemplo da gravidade dos ataques praticados contra os Waimiri-Atroari cita “o incidente corrido no último dia 28 de fevereiro de 2020, quando um deputado se dirigiu à entrada do território e, com o uso de uma motosserra, cortou o tronco que sustentava as correntes que bloqueiam o acesso à BR-174. Na ocasião, o deputado gravou um vídeo e dedicou a ação ao Presidente da República." O despacho não nomina o parlamentar, o deputado estadual Jeferson Alves (PTB-RR). O estado sedia alguns dos principais conflitos fundiários entre grileiros, posseiros, madeireiros, garimpeiros e indígenas, no rastro da demarcação de reservas de grande extensão territorial, como a Raposa Serra do Sol.
Seguem trechos da decisão judicial, nos termos em que foram redigidas:
Ante o exposto, defiro parcialmente a tutela de urgência para determinar que a União e a FUNAI:
a) indiquem, nos termos da Convenção Contra todas as formas de Discriminação Racial, às autoridades públicas que não incitem ou encorajem a discriminação racial, por meio de circular e manifestação pública dos Ministérios e Presidência da República, no prazo de 20 dias;
b) assegurem ao povo Waimiri-Atroari direito de resposta aos discursos já veiculados, mediante publicação de carta do povo Waimiri-Atroari nos sítios eletrônicos do Planalto e ministérios, em ícone da página inicial, pelo prazo de 30 dias;
c) elaborem um plano de combate ao discurso de ódio contra povos indígenas no âmbito do Estado e na sociedade brasileira, com indicação de cronograma de reuniões com o movimento indígena e entidades indigenistas, a ser apresentado no prazo de 60 dias, observado o disposto no art. 6º da Convenção nº 169/OIT.
No caso de eventual descumprimento da medida, fixo desde já multa diária de R$ 1.000,00 (hum mil reais).
A juíza destaca, transcrevendo trechos da petição do MPF, que Ministério Público ainda apresenta uma amostra de discursos de agentes públicos que, segundo aquele órgão possuem “uma alta carga discriminatória sobre os povos indígenas, inclusive com abordagem expressa sobre os Waimiri-Atroari, e uma visão estigmatizante acerca de seus modos de vida, em clara afronta à ordem constitucional.”
Na sequência, sempre de acordo com o despacho da juíza da 1ª Vara da Justiça Federal em Manaus, o MPF relata que "os Waimiri-Atraori são um povo indígena com uma história marcada por violações de seus direitos. Conta que, desde o início de 2019, o Estado brasileiro vem omitindose no seu dever de proteção aos povos indígenas e que vem adotando ainda um discurso integracionista que contraria a Constituição Federal ao hierarquizar os diferentes grupos que compõem a sociedade brasileira.
Salienta que “O indicador da omissão deliberada é a adoção de discursos discriminatórios, que desqualificam os grupos, notadamente ao tratar da ocupação territorial na
Amazônia. No caso do povo Waimiri-Atroari, o discurso discriminatório tem como pano de fundoprincipal a implantação de uma linha de transmissão que pretende cruzar o território indígena, mas não se limita a esse tema, abrangendo também outros temas de interesse da sociedade regional, como a disputa pela circulação na rodovia BR-174. Com isso, cria-se um cenário favorável a práticas de violência contra esse povo, as quais já não são mais meramente potenciais.”
Como exemplo de grave incidente praticado contra os Waimiri-Atroari cita “o incidente corrido no último dia 28 de fevereiro de 2020, quando um deputado se dirigiu à entrada do território e, com o uso de uma motosserra, cortou o tronco que sustentava as correntes que bloqueiam o acesso à BR-174. Na ocasião, o deputado gravou um vídeo e dedicou a ação ao Presidente da República.”
Afirma que “O proceder aqui questionado gera repercussões no cotidiano dos povos indígenas, em especial para o povo Waimiri-Atroari, para além do campo simbólico. Insegurança jurídica, potencial incremento da violência e devastação ambiental são os riscos mais evidentes. O episódio de ataque recente ao território evidencia a escalada discriminatória.”
Ao iniciar o arrazoado com que fundamenta sua decisão, a juíza conclui que "No caso em apreço, não se fala em cerceamento de liberdade de expressão, nem em censura prévia, mas sim em direito de resposta e de garantia de não discriminação por meio da divulgação dentro dos órgãos internos de indicativo para não incitar nem encorajar a discriminação racial.
Diante de tudo o que foi exposto, resta claro que, após demonstração pelo MPF de diversos discursos trazendo referências integracionistas e discriminatórias aos povos indígenas, tendo, inclusive, gerado ato grave contra o povo Waimiri-Atroari, como no relato envolvendo a corrente da BR-174; entendo que, neste momento, a probabilidade do direito se mostra clara e exige do julgador a aplicação das normas internas e internacionais as quais o Brasil se obrigou a cumprir.
No entanto, as salvaguardas às liberdades e direitos de todos não podem chegar ao ponto de excluir o direito dos demais. Portanto, entendo que merece parcial deferimento a tutela de urgência requerida pelo MPF, afastando-se, contudo, a parte do pedido que, neste momento de cognição sumária, não verifico existir probabilidade do direito, em razão de afetar, de forma definitiva e irreversível, a liberdade individual de expressão de autoridade pública perante a população,"conclui.
Fonte: Justiça Federal em Manaus e Ministério Público Federal