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Frente Parlamentar vai destacar a Pequena África na paisagem carioca

Proposta da vereadora Thais Ferreira coloca a região na zona portuária em evidência, ao promover debate sobre a relevância da área entre diferentes agentes e setores da cidade

Por Daniel Israel em 23/05/2021 às 11:00:00

Escultura de Mercedes Baptista. Crédito: Denise Barreto (chicaslokas.com.br).

A foto que abre esta reportagem é uma escultura de Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Você pode nunca ter reparado nela, muito menos saber quem foi. Mas se frequenta a zona portuária, pelo menos desde que a obra do artista plástico Mario Pitanguy foi doada à cidade do Rio, com certeza você já viu a bailarina representada em tamanho natural, sobre um pedestal. Sua memória passou a ser emoldurada pelo Largo de São Francisco da Prainha, na Saúde, a partir de 2016, e não foi instalada ali por acaso. Na última quinta-feira (20), o Theatro Municipal realizou esta live pelo centenário da artista.

Com a finalidade de ampliar os horizontes da Pequena África, onde se localiza a homenagem à precursora da dança afro-brasileira, a Câmara dos Vereadores aprovou a criação da Frente Parlamentar em Defesa da Pequena África. Reunido sob a presidência da vereadora Thais Ferreira (PSoL), autora da proposta, o grupo vai usar o espaço para debater aspectos relativos a melhoramentos nessa região do Centro, envolvendo diversos setores interessados no tema.

A vereadora, que está em seu primeiro mandato, teve a iniciativa aprovada com as assinaturas de 27 de seus pares no Legislativo municipal, e a primeira atividade pública será na próxima terça-feira (25), às 10h, durante o debate virtual 'Pequena África, patrimônio histórico e cultural do Rio'. Terá transmissão pelo canal Rio TV Câmara no YouTube (clique aqui para acessá-lo). Nesta data, é lembrado o Dia Internacional da África, que marca a fundação da Organização da Unidade Africana (atual União Africana), em 1963.

Um “outro” Rio de Janeiro

O que é do passado surge cada vez mais forte no presente. Os homens e mulheres africanos que desembarcaram no agora reformado Cais do Valongo, escravizados e trazidos à força para o Brasil, eram oriundos em sua maioria da costa ocidental daquele continente. Dada a falta de interesse em preservar a memória de nosso País, ficou para a posteridade a impressão de que ali fora o berço daquele cerca de um milhão de pessoas.

Hoje, porém, se conhece melhor a nossa história: onde a escravidão foi protagonista, a Coroa portuguesa ergueu o palco de um de seus crimes mais atrozes nestas terras, junto com o genocídio das populações nativas. Neste vídeo, a antropóloga e professora da UFF, Simone Vassallo, percorre a Pequena África e conta sobre transformações em alguns dos principais pontos da região, como o Cais do Valongo.

A área geográfica conhecida como Pequena África, cujo batismo é atribuído ao compositor Heitor dos Prazeres, foi palco de outros eventos históricos, como o enfrentamento da população marginalizada contra o primeiro "bota-abaixo" promovido pelo prefeito Pereira Passos, durante a Revolta da Vacina (1904). Atualmente, exaltar seu nome é uma forma de reforçar no presente as identidades e os saberes que o poder monárquico tentou apagar ao longo de três séculos, por meio da colonização.

Depois do próprio Cais, duas expressões dessa iniciativa foram o mercado de escravizados, transferido da R. Direita (atual Primeiro de Março) pelo Marquês do Lavradio por volta de 1770, e o cemitério dos pretos novos, como eram chamados os cativos recém-chegados que morriam em seguida ao desembarque.

Patrimônio Mundial da Humanidade desde 2017, o Cais do Valongo foi descoberto durante as obras do Porto Maravilha, no ano de 2011. E apesar de ter recebido o reconhecimento, isso em nada alterou o descuido do poder público com a memória da escravidão.

“Mesmo com o reconhecimento internacional, a região ainda não conta com a infraestrutura acordada com a Unesco para receber, de forma adequada, os visitantes e turistas. Iremos solicitar medidas do Executivo quanto a esse descaso”, promete Thais, que cresceu entre os bairros de Vaz Lobo, Madureira e Irajá. Segundo o órgão, o antigo porto de desembarque é “a mais importante evidência física associada à chegada histórica de africanos escravizados no continente americano”.

No dia 12 de maio, os procuradores da República, Sérgio Suiama e Jaime Mitropoulos, convidaram diversos atores, entre instituições e sociedade civil, para a audiência pública virtual “Cais do Valongo, patrimônio mundial: o que está sendo feito?”, realizada pela seção fluminense do MPF. É possível ler um resumo sobre o encontro, aqui.

Mariana Gino é historiadora e pesquisadora do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP), já Wildson França trabalha como produtor cultural e integra o Conselho Estadual de Cultura. Ambos concordam sobre os males da marginalização imposta à região, envolta, na opinião dela, pelos “métodos e formas que a história oficial é narrada, destituindo as presenças e culturas negras no Brasil”.

França diz que o tombamento pela Unesco foi “um passo importante e tardio. Ao entrar para o Patrimônio, tiramos a cultura da marginalização e alçamos para outro patamar que será benéfico para futuras gerações”. Ele cita a importância do Terreirão do Samba, localizado na Praça Onze, cujo nome oficial é uma homenagem a Benjamin de Oliveira, primeiro palhaço negro do Brasil e enredo do Acadêmicos do Salgueiro em 2020.

Sobre esta parte mais afastada da Pequena África, a vereadora faz uma ressalva pensando no alcance dos trabalhos a serem realizados pela Frente Parlamentar.

“Já validamos algumas alterações na legislação existente sobre a demarcação da região que está inconsistente, não incluindo, por exemplo, a Praça Onze e a Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos no Circuito da Herança Africana”.

A importância da preservação da Pequena África é secular, sendo reivindicada por diferentes grupos que compõem o movimento negro brasileiro. Mas somente com o tombamento da Pedra do Sal pelo Inepac em 1984 e, 12 anos depois, quando foi descoberto o cemitério dos pretos novos, o tema despertou a atenção para que a memória coletiva não continuasse abandonada.

Foi Merced Guimarães dos Anjos, empresária que mora na zona portuária desde a infância, quem descobriu ossadas humanas ao se mudar para a R. Pedro Ernesto, na Gamboa. Cinco anos depois, ela e o marido abriram, por conta própria, o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN).

“Nunca tínhamos ouvido falar de um cemitério, então a gente se lembrou de pessoas conhecidas na Associação de Moradores e Amigos da Saúde (AMAS) que se juntaram na década de 1980 por conta de um projeto de revitalização chamado SAGAS”, rememora ela, que ajudou a mudar o destino do local. “Estava fadado a deixar de existir. A ideia era transformarem num modal, com indústrias, comércios. Seria o segundo bota-abaixo”.


Cais do Valongo, na zona portuária. Crédito: Tomaz Silva/Agência Brasil

No texto em que solicitou a criação da Frente, Thais Ferreira citou “a preservação da cultura como direito e o combate irrestrito ao Racismo”. Temas que atravessam a militância e a atuação profissional de Mariana, doutoranda em História Comparada (UFRJ).

“O racismo alimenta as relações de poder e é um dos braços da intolerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas”, argumenta ela.

Sedução pela descoberta

O cemitério encontrado ao acaso na Gamboa, há 25 anos, evidencia a multiplicidade de saberes bem como áreas de atuação e do conhecimento que emergem enquanto visitamos a Pequena África: arquitetura, artes e cultura, história, memória e patrimônio, turismo, comércio.

A partir de referências de sua terra natal, os africanos escravizados legaram ao povo brasileiro expressões artísticas, sociais, de religiosidade que resultaram no complexo sistema de afro-brasilidades pelo qual se busca reconhecimento a partir de iniciativas como a da Frente Parlamentar em Defesa da Pequena África.

Companheiro de partido de Thais, o também vereador Eliomar Coelho conseguiu aprovar em 2014 a Lei 5.781, que criou a Área de Especial Interesse Cultural (AEIC) do Quilombo Pedra do Sal. Dentre outros, estão incluídos como imóvel a sede do Afoxé Filhos de Gandhi RJ (R. Camerino, 9), fundado há 70 anos e desde 1968 considerado de utilidade pública pelo Governo do Estado; como logradouro, o Largo João da Baiana, homenagem ao sambista autor de clássicos como “Batuque na cozinha”.

Tais imóveis e logradouros, totalizando mais de uma dezena de endereços, receberam essa proteção “por conservar referências ao modo de vida e cultura carioca, necessária à reprodução e perpetuação dessas manifestações culturais”, de acordo com o que prevê o artigo 140 de outra legislação, a Lei Complementar 111/2011.

No seio da região, é possível se deparar e frequentar comércios baseados na promoção desse conjunto de memórias, histórias, trajetórias. Apesar das restrições pela pandemia, a confluência nos rumos da cidade, pensando a partir da região central batizada pelo parceiro de Noel Rosa em “Pierrô Apaixonado”, é a ponte que anula o distanciamento entre o livreiro Dudu Ribeiro, na Pedra do Sal, e o gerente de bar Viktor Gomes dos Santos, no Largo da Prainha. Até porque a caminhada não dura cinco minutos.

“A Livraria Casa da Árvore está na Pedra do Sal por convite da Casa Omolokum, para participar da reformulação do espaço. A livraria, ainda virtual, tinha um acervo muito conectado com a Pequena África. Temas como Rio de Janeiro, samba, boemia, antirracismo e negritude eram centrais no conceito”, afirma Ribeiro, também produtor cultural e morador da Barra da Tijuca.

“A Casa Porto nasceu há oito anos, como uma extensão da rua. Um centro cultural com todas as atividades gratuitas e posteriormente um bar com várias ações culturais. A biblioteca livre é um movimento pela leitura que se faz necessário, principalmente em lugares sem bibliotecas comunitárias, como o Morro da Conceição e seus arredores”, exalta Santos, que trabalha na Casa Porto, aos pés de onde mora há 13 anos. O proprietário do local, Raphael Vidal, ficou conhecido nas redes sociais por isso mesmo: ele abriu o bar-restaurante-biblioteca para músicos que se apresentavam no metrô e foram proibidos por decisão judicial em 2019.

Perguntado sobre a proximidade da escultura de Merced Baptista, enredo do Acadêmicos de Cubango em 2008, ele ressalta o significado da localização da Casa Porto.

"Estamos de costas pra ela. E isso é o simbólico: ela – e tudo que representa – deve estar à frente. Sempre".

Requerimento enviado ao prefeito Eduardo Paes pelo Quilombo Pedra do Sal (2015). Crédito: Facebook.

Outra contribuição à área tem sido no turismo, em especial o de viés cultural. Em 2004, o projeto global, multidisciplinar, multiétnico “Rota do Escravo” (em inglês), realizado pela Unesco, completava dez anos. Na ocasião, a proposta passou por uma avaliação implementada pelo braço da ONU para a educação, ciência e cultura, que priorizou temáticas pouco exploradas na primeira década. Duas das realizações naquele período incluíram o inventário para o desenvolvimento de um turismo de memória bem como apoio à criação e promoção de museus sobre a escravatura (leia o documento, aqui).

Foi com este espírito que a administradora de empresas Gabriela Palma trocou de ares ao sair de uma multinacional para fazer o curso técnico em Guia de Turismo no Senac RJ e se tornar sócia da Sou+Carioca, empresa de passeios presenciais e virtuais. Hoje, ela é uma das guias de turismo com melhor avaliação para conduzir tanto cariocas quanto viajantes em walking-tours pelo Circuito da Herança Africana.

“Quando comecei a guiar, ainda não tinham muitas pessoas que ofereciam esse circuito como um atrativo turístico”, recorda-se ela, que também é instrutora no curso do Senac RJ. “Notei que de 2016 a 2020, ficou muito abandonado pelo poder público. Com placas de identificação depredadas ou espaços subutilizados, caso do Jardim Suspenso do Valongo, da Docas Pedro II localizada em frente ao Cais do Valongo. A região é muito rica culturalmente, mas ainda pouco cuidada pelo poder público. Afinal, a gente só consegue valorizar aquilo que conhece”.

Voltando no tempo

Duas décadas atrás, um grupo de ativistas engajados no casamento entre samba e feijoada teve a iniciativa de continuar a preservar a carioquice que marca a cultura da Pedra do Sal. Ativo entre 2000 e 2008, o projeto Sal do Samba se reunia mensalmente aos domingos e fincou raízes nesse acesso ao Morro da Conceição. A inspiração veio, é claro, de uma bamba, a pesquisadora Ângela Nenzy, que foi casada com outro sambista: Wilson Moreira, apelidado Wilson Alicate, parceiro de outros bambas, como Candeia e Nei Lopes.

“A relevância dos encontros político-culturais da saudosa Ângela, nos anos 1980, na Pedra do Sal, se desdobrou no Centro Cultural Wilson Moreira. Todas as iniciativas ou ações locais, em torno da Pedra do Sal, são reconstituições, revisões e ressignificações africanas”, destaca o jornalista Mauro Viana, um dos fundadores do projeto.

Quarta edição do Sal do Samba. Crédito: Associação Cultural República do Samba.

Agora que chegou às duas décadas de vida, o grupo se reuniu outra vez para lançar o minidocumentário Sal do Samba 21 anos | A redescoberta da Pedra do Sal, realizado com recursos da Lei Aldir Blanc, também para divulgar a iniciativa e comemorá-la, apesar de um ano de atraso. Aqui, Viana detalha a programação, a ser realizada virtualmente nos dias 21/11 e 2/12.

Durante a pandemia, por sua vez o IPN começou a oferecer oficinas virtuais gratuitas através da plataforma Sympla, contando com patrocínio do Instituto Vale a partir de verba da Lei Rouanet.

“O sonho que a gente tinha era conhecer melhor essa história”, enfatiza Merced. “Até então, só dois livros falavam muito en passant [brevemente, em francês] sobre o cemitério dos pretos novos, ‘Lugares dos mortos na cidade dos vivos’ (1997), da Cláudia Rodrigues, e ‘Saúde, Gamboa e Santo Cristo’ (década de 1970), da Editora Index e João Fortes Engenharia, que fala desse complexo (mercado de escravos, porto, cemitério, lazareto) e depois resultou no Projeto Sagas (realizado pela Prefeitura na década de 1980)”.

Diz a autora do livro publicado nos anos 90, laureado com o Prêmio Carioca de Monografia (1995), que a transferência do mercado de escravos para o Valongo “dinamizou as atividades comerciais e portuárias do Rio de Janeiro.”. “Várias ruas foram abertas e novos trapiches foram instalados no Valongo”, prossegue ela em outro trecho, “sendo, por fim, para lá transferido definitivamente o cemitério dos ‘pretos novos’, para que a proximidade com o mercado facilitasse o transposte dos corpos dos que lá morriam”.

Outra obra de relevo na bibliografia da cidade está focada em duas personagens: “Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro” (1983), de Roberto Moura. De acordo com fragmento do livro, “a zona da Saúde é uma parte antiga da cidade. A administração colonial e a Igreja usariam a área para suas atividades menos ‘nobres’, relacionadas à lida com os subalternos. Assim, lá se instala o Aljube, prisão eclesiástica, depois cadeia comum, como o cemitério dos Pretos Novos. Seus primeiros largos abrigam as forcas e os pelourinhos da justiça municipal e, depois, o grande mercado de escravos do Valongo, para onde convergiria todo o comércio de homens, uma das atividades econômicas principais do Rio colonial.”.

Na última quarta-feira (19), a vereadora Tainá de Paula (PT), que contribuiu com a sua assinatura para a criação da Frente Parlamentar em Defesa da Pequena África, rebateu o secretário municipal de Urbanismo, Washington Fajardo. Em uma postagem no Facebook, ela, arquiteta e urbanista de formação, lamentou que o gestor tenha recorrido a “supostos ‘fatos e fakes’ para legitimar a implementação do projeto.”.

O projeto a que ela se refere é o “Reviver Centro”, detalhado no Decreto 48.343/2021, que carece de aprovação na Câmara Municipal antes de ser executado pela Prefeitura. O texto elaborado pelo governo de Eduardo Paes estimula a ocupação residencial de todo o Centro, porém, segundo a parlamentar, de maneira indiscriminada e perigosa. “Explicando: se você tem uma construção pequena, de dois andares, por exemplo, em uma região que tem prédios de sete andares, essa construção menor passa a poder expandir também para sete andares, ampliando possibilidades de moradia num mesmo espaço construído.

Postagem da vereadora Tainá de Paula (PT) em seu Facebook. Acervo pessoal.

Quando foi prefeito da primeira vez, Paes (2009-2016) conseguiu remover cerca de 100 mil pessoas em toda a cidade, inclusive de áreas centrais, cujos moradores foram realocados em condomínios do programa Minha Casa Minha Vida. A expectativa, agora, está na possibilidade de ele voltar a passar por cima de decisões desfavoráveis a várias das remoções que foram realizadas em nome de melhorias para a cidade durante a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.

Pelo menos, está formada a Frente Parlamentar para defender a Pequena África e evitar que o prefeito protagonize o terceiro "bota-abaixo" no Rio em quase 120 anos.

Por Daniel Israel
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