O que seria uma reportagem sobre pedido de doação feito por um jovem trans, de 16 anos, que deseja realizar cirurgia de mastectomia, se tornou uma entrevista com a advogada Maria Eduarda Aguiar. Presidenta do Grupo Pela Vidda Rio e integrante do Conselho Estadual LGBT, ela é uma das vozes mais ativas na defesa dos direitos constitucionais da população trans.
No entanto, o fim de 2021 não traz boas expectativas para esse grupo populacional, discriminado e destituído das garantias mais elementares à vida em plenitude. Ainda assim, Maria Eduarda avisa que a luta continua no próximo ano. "Temos participado de um grupo de trabalho para entrar com ação civil pública contra o Ministério da Saúde, o estado do Rio de Janeiro, por conta da deficiência na política pública voltada à população trans. Vamos levar isso para o Conselho na retomada dos trabalhos, vai ser o primeiro ponto de pauta", promete.
Confira a íntegra a seguir.
Estamos às portas de 2022, quase dois anos desde o início da pandemia de covid-19. Nesse período, quais têm sido os principais desafios enfrentados pela população trans no Brasil? Sobre as conquistas recentes, qual é a expectativa em relação ao avanço e à promoção para a garantia de direitos?
A pandemia da covid-19 afetou consideravelmente as mulheres trans e os homens trans, uma vez que muitos tiveram que recorrer a apoio de cestas básicas. Com relação aos desafios, os mais comuns são acesso à cidadania e saúde de qualidade. Ainda hoje, temos o sucateamento do processo transexualizador no SUS, com pessoas trans amargando para ter acesso a terapia hormonal e cirurgias previstas na Portaria 2803/2013. O acesso à cidadania, à retificação civil e ao trabalho e renda continuam sendo os mais difíceis de superar, em que pese iniciativas de grupos da sociedade civil, como CAPACITRANS, Casa Nem, Grupo Pela Vidda Rio e Grupo Arco-Íris, todos com projetos voltados à empregabilidade.
Em que medida a aliança entre falta de transparência, escassez de recursos e discriminação da população trans significa a continuidade na marginalização desse grupo na sociedade brasileira?
Essa política da morte faz com que mulheres trans não consigam o uso do silicone durante o processo transexualizador e acabem optando por utilizar um material de silicone industrial causando dano muitas vezes irreversível à saúde. Como dito antes, sequer têm acesso a medicamentos que fazem parte da terapia hormonal. E mais, a falta de políticas de trabalho e renda, com a necessidade de combater estigmas e preconceitos, tem sido um grande fator de perpetuação da população na vulnerabilidade social. A falta de um programa de combate à transfobia nas escolas é uma vergonha para o nosso país, que diz quais vidas importam e quais têm valor social, excluindo pessoas trans dos espaços institucionais. A chamada violência simbólica e institucional.
Além de advogada e membro do Conselho Estadual LGBT, você é a atual presidenta do Grupo Pela Vidda – RJ, entidade com 32 anos de atuação. A instituição assiste financeiramente pessoas trans, por meio de campanhas, quando se trata de fazerem cirurgias, como mastectomia e redesignação sexual? Pelo serviço público de saúde, há relatos de que esses procedimentos podem demorar até dez anos para serem feitos.
Infelizmente, não. As instituições da sociedade civil amargam anos de estrangulamento de suas ações. Desde 2018, vemos tanto os incentivos por meio de editais como os espaços de controle social sendo desmontados. O que a ONG oferece é apoio jurídico gratuito para os que precisem de orientação quanto aos seus direitos. Por outro lado, o papel das ONGs é fiscalizar, e não assumir o do estado. Em 2021, fizemos duas campanhas – Outubro Rosa, voltada a mulheres e homens trans, e Novembro Azul, para mulheres trans.
No mais, a população trans sempre é lesada de direitos básicos, mera distribuição de medicamento para terapia hormonal. Se o dinheiro vem do Ministério da Saúde, a gente não tem ideia de quanto, nem qual recurso é destinado para a saúde da população trans ou o processo transexualizador. Quando chega nos estados, pior ainda, porque falta transparência sobre o dinheiro que é recebido e o que é utilizado. O governo do Rio de Janeiro precisa ser denunciado, chamado à responsabilidade, para que mostre os números do investimento que tenha feito em saúde da população trans e onde. Nós do movimento social precisamos exigir uma prestação de contas do governo do Rio de Janeiro.
Pode falar sobre outras ações dos espaços institucionais onde você está envolvida e as parcerias no sentido de garantir o cumprimento do que está previsto na lei?
Temos participado de um grupo de trabalho para que se possa obter informações e entrar com uma ação civil pública contra o Ministério da Saúde, o estado do Rio de Janeiro, por conta da deficiência na política pública voltada à população trans. Esse tipo de prestação de contas vai se iniciar no Conselho Estadual LGBT e vai para o Rio Sem Homofobia. Vamos levar isso para o Conselho logo na retomada dos trabalhos, vai ser o primeiro ponto de pauta.
Numa conversa recente, você comentou sobre o abandono que se estende ao Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), vinculado à Uerj.
Hoje, infelizmente, o Hospital Pedro Ernesto, que deveria ser uma referência na cirurgia para as pessoas trans, está completamente abandonado. Não realiza os procedimentos que precisavam ser realizados, fazendo com que mulheres e homens trans fiquem alijados de finalizar o processo transexualizador com cirurgias.
Há alguns meses, o deputado estadual Anderson Moraes (PSL), da base bolsonarista na Alerj, propôs a extinção da Uerj e transferência do patrimônio para instituições privadas. Mas políticas como as defendidas por ele começaram a tomar corpo quando o atual presidente da República apoiou a candidatura do deputado federal Marco Feliciano (Podemos) à presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Com Feliciano eleito, foram incutidas na sociedade brasileira palavras-chave que nunca existiram, como “kit gay” e “ideologia de gênero”. De que forma esses ataques respingam no enfraquecimento da Constituição e em políticas destinadas a minorias como a população trans?
Na verdade, o programa de combate à homofobia nas escolas é urgente. Ocorre que pessoas como Marco Feliciano querem impor sua ideologia em espaços que são para debates constitucionais. Não se pode admitir, nos tempos em que vivemos, que pessoas trans sejam privadas dos espaços escolares por pura discriminação racial-social (transfobia). O que deve prevalecer é a Constituição, que consagra, dentre o rol dos direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana e determina que o País proteja as pessoas de toda forma de discriminação, incluindo a comunidade LGBT. Ademais, a Opinião Consultiva n. 24 orienta que o Brasil edite leis de combate à discriminação a pessoas LGBT. Assim como o artigo 5 da Carta recomenda aos estados que editem leis para o livre exercício da orientação sexual e identidade de gênero.
Em 2019, você foi uma das responsáveis por defender, no Supremo Tribunal Federal (STF), a equiparação da LGBTfobia ao crime de racismo (Lei 7.716/1989). Mas se nos 30 primeiros anos de vigência da lei, ninguém foi condenado por racismo no Brasil, qual é a sua esperança para o enquadramento jurídico em tese benéfico à população trans? Já é possível perceber alguma diferença, nesses dois anos e meio?
A maior dificuldade é que a grande maioria das ofensas se dá no campo da injúria racial, porque muitos promotores e juízes têm entendido que a decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 não a teria abarcado. Entretanto, a questão já foi dirimida pelo parecer no Habeas Corpus do Ministro Edson Fachin, que afastou a diferenciação de que racismo se dirige a um grupo determinado e que a injúria afeta o indivíduo singularmente. Pelo simples fato que se tem o indivíduo como vítima racial, que só ocorre por ele se amoldar ao grupo social ao qual pertence, portanto, nada mais do que racismo.
Na sua opinião, como a eleição de homens e mulheres trans, em 2020, em capitais como São Paulo (SP) e Belo Horizonte (MG) e cidades do porte de Niterói (RJ), poderá contribuir para aumentar o investimento de recursos públicos em áreas que dizem respeito ao processo transexualizador, à educação de gênero e à promoção da diversidade sexual?
Eu penso que é importante para representação política e defesa das pautas da comunidade trans, na medida que existimos e precisamos ser representadas e representados dentro desses espaços.