A reportagem do Portal Eu, Rio! teve acesso, com exclusividade, a uma troca de mensagens ocorrida em grupo de WhatsApp, envolvendo a diretora da Divisão de Vigilância em Saúde (DVS) da Coordenadoria de Ação Programática (CAP) 1.0, Giselle Santos, e uma servidora pública que trabalha na unidade. A CAP 1.0 é subordinada à Secretaria Municipal de Saúde (SMS-Rio) e cobre o Centro, exceto os bairros da zona portuária (Saúde, Gamboa e Santo Cristo).
A chefe do setor da CAP 1.0 repassou aos subordinados no grupo uma mensagem que ela indicou como sendo do secretário de Saúde, Daniel Soranz. No texto, Soranz cobrou quem trabalha na área para "ajudar na testagem, no cuidado e na vacinação para COVID-19". "Se algum funcionário da SMS acha que não é obrigação dele, está na secretaria errada", prosseguiu, para em seguida fazer uma ameaça.
"Este tipo de pessoa não pode estar na saúde. Se estiver em estágio temporário ou probatório, solicitem o desligamento imediato do funcionário. Se o mesmo for servidor, coloquem à disposição do RH, que abriremos um processo administrativo", acrescentou.
Enfermeira, Giselle endossa as palavras de Soranz, ao pedir que cada um dos SVS "sigam apoiando as unidades filhas", de onde se deduz que ela encaminhou a mesma mensagem em diferentes grupos do aplicativo. Uma servidora, que se disse "orgulhosa" de trabalhar há 30 anos no Sistema Único de Saúde (SUS), reagiu à mensagem e afirmou que "se ele, ainda, não reconhece nosso esforço e cooperação, ele é quem está na secretaria errada".
A sigla SVS corresponde ao setor incumbido pela vigilância epidemiológica e imunização da respectiva Região Administrativa (RA). No caso, a do Centro é a II RA.
A postura adotada pela SMS-Rio também foi contestada fora das redes. A enfermeira e presidenta do Sindicato dos Enfermeiros do Estado do Rio de Janeiro (SindEnfRJ) repudia o chamado da Prefeitura para que "seus profissionais façam trabalho voluntário".
"Com esses novos casos de covid-19, a Saúde, que já vinha numa situação muito ruim, que a gente há muito já denunciava - a falta de recursos humanos, o desmonte -, fica mais evidente ainda quando a gente tem o adoecimento muito grande também de profissionais de saúde. E essa falta a gente tem sentido no atendimento à população. É uma situação bastante séria e, para compensar, a Secretaria de Saúde está convocando os seus profissionais para que façam trabalho voluntário", denuncia.
"A gente sabe da gravidade da situação, mas todo trabalhador precisa receber pelo seu trabalho. Muito cruel, esses trabalhadores estão sendo assediados, e aqueles que não querem, convidados pelo secretário a sair da Prefeitura porque diz que ali não é o lugar deles".
Monica revela ainda que 20% do efetivo de servidores lotados na Secretaria estão afastados por algum problema de saúde.
Repercussão interna
Outra pessoa que trabalha na SMS-Rio e também reagiu no grupo à repreensão direcionada por Giselle, concorda com a colega e contesta a argumentação do gestor municipal.
"Como se não estivéssemos fazendo outra coisa, senão nos esforçando ao máximo desde que a pandemia começou. Continuamente, começamos a trabalhar antes do expediente e paramos após para tentar dar o melhor atendimento possível ao cidadão carioca. Nunca houve uma nota de reconhecimento, nem vou falar nos salários defasados há décadas", destaca.
Perguntada se já presenciou situação semelhante, garante que é a primeira vez. Adianta, no entanto, que outra reposição - a de pessoal - tem sido baixa e a tônica da atual gestão municipal.
"A questão é que muitos colegas estão afastados por covid-19, e o efetivo que já está defasado há décadas pelo modelo de privatização promovido por essa Administração, está ainda menor", esclarece. "Por conta da necessidade de testar, houve um aumento repentino em muitas unidades de profissionais para todo o processo, que envolve desde o acolhimento, passando pelo registro, até a execução do teste. Muitas vezes, o efetivo com atribuição direta não ser suficiente, é solicitado a profissionais de outros setores da unidade que atuem nessa atividade".
Presidenta da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), a cirurgiã-geral Rosylane Rocha explica que, no caso dos médicos, "a sobrecarga de trabalho não está relacionada a um aumento no contágio [por covid-19]", mas ressalva. "Prejudica o trabalhador, que muitas vezes faz horas extras, dobra turnos e apresenta maior esgotamento físico e mental", detalha ela, médica do trabalho das secretarias de Saúde e de Economia do Distrito Federal (DF).
"O nível de estresse da categoria, que tradicionalmente já é alto por conta dos longos turnos e das grandes responsabilidades, aumentou durante a pandemia. O risco [de contágio] existe para todos os profissionais que não podem trabalhar remotamente, especialmente profissionais da saúde que têm contato com pacientes possivelmente infectados. É importante que os empregadores estejam atentos a isso e busquem alternativas para diminuir o desgaste físico e emocional destes profissionais", complementa.
Procurada, a SMS-Rio não tinha retornado ao nosso contato até o fechamento desta reportagem.
De acordo com a mais recente edição do Boletim do Observatório Covid-19, atualizado pela Fiocruz e divulgado na quarta-feira (12), a taxa de ocupação em UTIs do município está em 12%.
Histórico anterior
Nos primeiros oito anos como prefeito (2009-2016), Eduardo Paes (PSD), então no Democratas e já tendo Daniel Soranz à frente da SMS-Rio, foi responsável por licitar empresas - as Organizações Sociais (OSs) - encarregadas de gerir unidades de saúde municipais de diferentes tipos: Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), Clínicas de Saúde da Família (CSFs) e parte de hospitais públicos, caso da Coordenação de Emergência Regional (CER) Professor Nova Monteiro, anexa ao Hospital Miguel Couto.
Porém, muitas são as vezes em que as OSs, um dos vetores da alegada privatização do setor, são contratadas de urgência, o que leva a dispensa de licitação.
Algumas delas têm sido denunciadas pelo Ministério Público por fraudes como superfaturamento, além de oferecerem melhor remuneração a profissionais de saúde, cuja verba resulta de repasse da Prefeitura, enquanto servidores concursados não recebem aumentos reais, acima da inflação.