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"O Carnaval bagunça quem quer negar o Brasil", exalta autor de livro sobre a festa pós-gripe espanhola

Em "De Sonho e de Desgraça", jornalista carioca David Butter aborda a apoteose no Rio em fevereiro de 1919, lamenta o descaso com a folia na atual pandemia e se orgulha do pertencimento familiar a essa forma peculiar de compreender a cidade

Por Daniel Israel em 25/02/2022 às 05:16:20

Autor de crônicas sobre o Flamengo em coletânea, escritor lança seu primeiro livrorreportagem em 2022. Foto: ESPM/Divulgação

O Rio de Janeiro pode até ter sido palco de dois carnavais, e para o folião carioca em 1912 parece que estava tudo bem, diferente de 110 anos depois: pelo menos de hoje (25) até a próxima Quarta-feira de Cinzas (2/3), há blocos se organizando extraoficialmente para desfilar em diferentes pontos da cidade, pretendendo repetir a dose daqui a dois meses, no mesmo fim de semana da Alvorada de São Jorge. Pela segunda vez na história do Rio, a festa foi incluída em abril.

O problema, além do adiamento neste ano, foi ter ficado sem festa em 2021. Ainda assim, é em meio às indefinições da covid-19 que o jornalista David Butter, vasta experiência no telejornalismo e jornalismo digital com mestrado em religião na contemporaneidade, está lançando "De Sonho e de Desgraça" (Mórula Editorial, 2022): para rememorar o tempo de outra pandemia - a de gripe espanhola - e saudar "outros carnavais". Melhor, outro carnaval, o de 1919.

Para ele, que estreia como autor de livros-reportagem, a principal lição da pesquisa e da escrita da obra foi a "capacidade de retrabalhar as chagas de uma tragédia em arte, no contexto de uma festa". Confira abaixo na íntegra a entrevista exclusiva que o Portal Eu, Rio! fez com o escritor. E, claro, feliz carnaval.

Lançamento em fevereiro não é ocasional: viva o carnaval! Imagem: Mórula Editorial/Divulgação

O que o motivou a escrever sobre certo carnaval que ocorreu há um século? O livro foi pensado antes da pandemia ou a partir dela?

Uns dois anos antes do centenário da Gripe Espanhola, em 2018, eu havia desenvolvido projeto de documentário sobre a passagem daquela pandemia pelo Rio de Janeiro, em 1918. A ideia inicial era contar a história daquele flagelo a partir das memórias dos contemporâneos. Na busca de material para esse projeto, topei com a história do Carnaval de 1919 e de figuras como o Lord Jamanta, um folião famoso do início do século, que havia desempenhado um papel heróico na pandemia. Passada a janela para fazer o projeto vingar, engavetei a ideia. Em fevereiro de 2020, com a iminência da chegada do Covid-19 ao Brasil, eu revisitei aquela pesquisa, provocado pela pergunta de um amigo: "Qual é seu enredo dos sonhos?". Nem titubeei: "Carnaval de 1919", à luz do que a gente estava para viver lá por aquele fevereiro de 2020. Retomei o trabalho daí, pensando em enredo, correndo para saber mais e, quando vi, já tinha reunido material suficiente para pensar num livro.

Qual foi a mais importante lição que você apreendeu enquanto escrevia "De Sonho e de Desgraça"? Teria algum episódio do carnaval carioca de 1919 para destacar?
A capacidade de retrabalhar as chagas de uma tragédia tão recente em arte, no contexto de uma festa. Fica muito claro o aspecto de catarse envolvido nesse retrabalho. Isso surge em vários momentos no Carnaval de 1919. Destaco uma série deles: o figurar da lembrança da pandemia em carros alegóricos que desfilaram pela Avenida Rio Branco.

E como essa descoberta permite a você refletir, 100 anos depois da gripe espanhola - além da I Guerra Mundial -, sobre o carnaval ser adiado pelo segundo ano consecutivo devido à covid-19?
São fotografias de momentos diferentes. Conhecia-se menos sobre a Gripe Espanhola às vésperas do Carnaval de 1919 do que sabíamos às vésperas do Carnaval (cancelado) de 2021 e do Carnaval (adiado) de 2022.


"A ideia inicial era contar a história daquele flagelo a partir das memórias dos contemporâneos. Na busca de material para esse projeto, topei com a história do Carnaval de 1919."

Voltemos um pouco mais no tempo. Quinze anos antes do fim da gripe espanhola, a cidade do Rio de Janeiro se viu às voltas com a Revolta da Vacina (1904). A obrigatoriedade da vacinação contra varíola, no entanto, passou à história como episódio descolado do "bota-abaixo" promovido pelo então prefeito Pereira Passos. Na saúde e na doença, como dizia o sambista Laudenir Casemiro, mais conhecido pelo apelido de Beto Sem Braço, você acha que até hoje "o que espanta miséria é festa"?
Se Beto Sem Braço falou, eu não desminto. A alegria e a tristeza estão num contínuo, sempre. Mas não podemos perder de vista as misérias "espantadas" naqueles dias. Além de assolado por epidemias, o Rio de Janeiro de 1919 era (já) uma cidade desigual e brutal, uma cidade por onde, apenas 31 anos antes, escravos ainda caminhavam pelas ruas.

Homem fantasiado de 'Carlitos' (agachado, à esquerda), no Flamengo: personagem criada por Charlie Chaplin surgira cinco anos antes. Foto: Acervo do autor

Agora, avancemos. Passados mais 15 anos, quando já havia desfile das escolas de samba, na extinta Praça Onze, o compositor André Filho lançou "Cidade Maravilhosa" (1935) e ao longo das décadas a música foi transformada em hino não oficial da cidade do Rio. De que maneira as disputas, entre o Rio "real" e o "idealizado", estão presentes no seu livro?
Nos encontros entre o carnaval chique dos cursos e os ranchos que desciam dos subúrbios para visitar o Centro. Tentei ao máximo falar de uma festa tão diversa quanto a própria cidade.

Enquanto pesquisava e escrevia o livro, você conseguiu identificar qual era a proporção do carnaval no calendário da cidade? E alguma referência se já era percebido como negócio, envolvendo atração de patrocínios e investimentos?
O Carnaval se desenrolava, na prática, em quatro dias. Num sábado de abertura, num domingo de esquenta, numa segunda-feira de relativo respiro e numa terça-feira de apoteose, com as grandes sociedades. Esses dias eram precedidos por semanas de bailes nas sedes das agremiações. Do revéillon em diante, a cidade já girava o compasso. E, sim, o Carnaval já atraía investimentos. O Poder Público já subvencionava as grandes sociedades. A Light, também. As cervejarias disputavam espaços e clientela (e não só no Carnaval: também na Festa da Penha, em outubro).

Mudando um pouco de assunto, uma das principais pesquisadoras do país no enfrentamento à atual pandemia, a pneumologista Margareth Dalcolmo afirmou no último mês de janeiro que os primeiros pacientes de covid-19 tratados no Brasil tinham frequentado os desfiles das escolas de samba, em 2020. Mas não havia temor de pandemia no país naquele momento, tanto que a primeira pessoa foi diagnosticada com o vírus dias antes do início da festa - última semana de fevereiro -, e a OMS decretou a pandemia em meados de março daquele ano. A que você atribuiria essa associação?
A Dra. pode certamente responder melhor, assim como apresentar indícios.


"A alegria e a tristeza estão num contínuo, sempre. Mas não podemos perder de vista as misérias 'espantadas' naqueles dias."

Diferente de outras festas - públicas e particulares -, jogos de futebol, festivais de música e outros eventos que promovem aglomerações, liberados para contar com presença de público de maneira irrestrita, em todo o Brasil, o carnaval foi a única manifestação popular repensada e adiada. Por quê?
O Carnaval não é bagunça. O Carnaval bagunça a autoimagem de quem quer negar o Brasil. Por mais que existam e restem motivos de preocupação por qualquer ajuntamento, o que me parece estar sendo combatido é a própria ideia da rua, ou de um espaço sem porteira.

Há pessoas que vivem do carnaval, como jornalistas que cobrem o evento, garantindo que os desfiles das escolas de samba foram adiados a pedido da TV Globo, que não teria vendido todas as cotas de patrocínio no Rio e em São Paulo. No seu livro, você fala da celebração que conhecemos hoje a partir do que aconteceu 100 anos atrás, então quais eram os interesses na ocasião e o que permitiu a realização do carnaval carioca de 1919 em meio aos temores de contaminação pela gripe espanhola?
Em primeiro lugar, os temores eram mais abafados do que no presente. Entre outubro e novembro de 1918, o Rio de Janeiro foi atingido de forma brusca e catastrófica pela Gripe Espanhola. Num raio de, se muito, seis semanas, a doença produziu um cenário de morte e desarticulação da vida da cidade. O Rio efetivamente parou -- mais por calamidade do que por método. Mas, da mesma que forma que veio, a doença foi. Entrado dezembro, a pandemia já dava sinais evidentes de recuo. Àquela altura, a cidade já havia retomado grande parte da sua atividade, a partir de uma espécie de "ensaio" não-planejado, ainda em novembro, quando a população saiu às ruas para festejar o fim da Primeira Guerra Mundial. Na prática, na virada para 1919, a Gripe Espanhola era tratada mais como memória do que ameaça presente (apesar do temor constante em relação à chegada de embarcações com novos doentes). A realização do Carnaval em si não esteve em questão nas semanas anteriores à festa. O paralelo aqui não se aplica. Não houve uma "queda de braço" pela sua realização. Os "interesses", por óbvio, já existiam: o Poder Público subvencionava as grandes sociedades, as cervejarias já patrocinavam grupos carnavalescos, o comércio funcionava até mais tarde, as confeitarias lotavam, as lojas de tecidos e de artigos de Carnaval fervilhavam.
O carnaval foi tema também do seu mestrado em Religião na Sociedade Contemporânea, na Inglaterra?
Não. O meu tema de pesquisa foi o tratamento pela imprensa das narrativas públicas de conversão ao pentecostalismo. Se tivesse seguido na pesquisa acadêmica, talvez topasse com o Carnaval como tema. Um tema que me interessa é o discurso religiosamente inspirado de rejeição às formas populares de Carnaval. Esse discurso tem uma longa linha do tempo no Brasil, como a própria pesquisa para o livro comprova.

Luís Cordeiro, o Lord Jamanta, se dividia entre os trabalhos como jornalista e na Polícia: escritor descobriu que o integrante do Clube dos Democráticos e do Cordão da Bola Preta passava de bonde recolhendo cadáveres de mortos pela gripe espanhola. Foto: Acervo do autor

Para divulgar o livro, você tem postado, em pelo menos um de seus perfis nas redes sociais, recortes de jornal obtidos durante a pesquisa. Como foi esse processo nos últimos dois anos? A título de comparação, você já tinha publicado outro livro e percebeu alguma diferença substancial no momento atual?
É meu primeiro livro solo. Já havia assinado como cronista em uma compilação de textos sobre o Flamengo.

Antes de saber que estava escrevendo "De Sonho e de Desgraça", conheci-o por uma sequência de postagens em que você contava o envolvimento dos seus bisavós com o carnaval como comerciantes da finada Casa Sparta, localizada na Saara e que vendia artigos para os dias de Momo, além de itens de uso cotidiano. Pode resumir a trajetória deles ligada ao carnaval do Rio de Janeiro?
Meus bisavós chegaram ao Brasil perto da virada para os anos 1930. Haviam se conhecido e se casado ainda na Polônia. Saíram da terra natal por conta do recrudescimento do antissemitismo depois da Primeira Guerra Mundial e resolveram se estabelecer no Rio de Janeiro quando aportaram por aqui, por preferirem o calor (o resto da família da minha bisavó, que veio junto, seguiu até Porto Alegre). No Rio de Janeiro, meus bisavós se estabeleceram na região da Praça Onze, de forte presença judaica à época, e passaram a atuar no comércio. Depois de alguns anos, abriram um negócio de venda de plásticos, couros e revestimentos, além de objetos como passadeiras, tapetes e pastas. Também vendiam couros para instrumentos de percussão. Por conta da combinação de revestimentos (para os carros alegóricos) e de couros para percussão (para as baterias), passaram a ter algumas escolas de samba como clientes. Na memória da família, conta-se que os dirigentes de algumas escolas iam à loja dos meus avós (a Casa Sparta, na Rua Regente Feijó, 84, no coração da SAARA) para apresentarem com antecedência plantas de carros e outras alegorias, para negociar a compra de materiais. Essa história, contada há décadas pela minha mãe, eu pude confirmar com a pesquisa em jornais antigos: a venda de artigos de Carnaval era uma fonte de receita importante para a Casa Sparta, sobretudo perto da festa, quando a frequência de anúncios do estabelecimento em periódicos como o "Jornal dos Sports" explodia. Minha bisavó, conta a família, pegou gosto pelos desfiles e chegou a acompanhar de perto as escolas, a convite dos clientes do samba.

De que maneira a experiência dos seus bisavós repercutiu em você para escrever este livro? A oportunidade funcionou como esteio das suas memórias de família?
Meus bisavós não estavam no Brasil ainda em 1919. De qualquer forma, o papel que o Carnaval teve como indústria no soerguimento econômico deles por aqui me orgulha demais. Eles cruzaram mais do que um oceano para fazer essa conexão: cruzaram culturas e, nisso, fizeram pontes.

Se os seus bisavós fossem vivos, você consegue imaginar o que eles diriam sobre a condução das diferentes instâncias - poder público, Comitês Científico municipal e estadual, transmissora, patrocinadores - a respeito dos embates para a realização do carnaval em 2022?
Minha bisavó, que eu conheci e com quem convivi, estaria mais preocupada em saber se eu ando agasalhado ou comendo sanduíches de pão com queijo.


"Minha bisavó, conta a família, pegou gosto pelos desfiles e chegou a acompanhar de perto as escolas, a convite dos clientes do samba."

Ficha técnica
"De Sonho e de Desgraça: o carnaval carioca de 1919"
Autor: David Butter
Editora: Mórula Editorial
Revisão: Marília Alves Gonçalves
Design: Patrícia Oliveira
Páginas: 328
Dimensões: 140 x 210 x 15mm
ISBN: 978-65-86464-84-9
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