Uma mulher indígena Puri, etnia presente nos estados da Região Sudeste, busca há quase quatro anos chamar-se oficialmente Opetahra Nhâmarúri Puri Coroado, em substituição ao prenome e sobrenome que recebeu ao nascer. O pedido para alteração de Registro Civil, iniciado em 2018 pela Defensoria Pública da comarca de São Fidélis, no Norte Fluminense, atravessou diversas instâncias e recursos judiciais até chegar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
— Esse Recurso Especial prima pela proteção constitucional aos povos indígenas, em respeito à ancestralidade como fator determinante sociocultural e aos princípios norteadores da autoidentificação e pertencimento identitário, que divergem dos regramentos do Registro Civil de não indígenas — explica o defensor público Pedro Carriello, responsável pelo caso junto ao STJ.
Nascida no município do Rio de Janeiro, Solange Souza Reis procurou a Defensoria em São Fidélis, cidade natal de seus pais e local da Aldeia Uchô Puri, depois de se aproximar da cultura indígena, adotar costumes e tradições e tornar-se líder comunitária. O pedido de retificação de Registro Civil foi negado pelo juízo de primeira instância, sob o argumento de que apenas “indígenas não integrados” teriam direito a serem chamados formalmente por nomes indicativos de suas origens.
A Defensoria levou a ação adiante, ajuizando recurso junto ao Tribunal de Justiça, que aludiu à “ possibilidade jurídica de apenas incluir seu nome indígena e a da etnia no Registro Civil”. A vontade de Opetahra porém, é de substituição integral do nome e sobrenome, e não de mero acréscimo, o que levou o caso ao Superior Tribunal de Justiça, onde tramita na Quarta Turma. O julgamento teve início em junho e foi interrompido por pedido de vistas de um dos ministros.
O pedido da Defensoria já tem parecer favorável do Ministério Público Federal e do ministro relator, Luis Felipe Salomão, para quem a pessoa autoidentificada como indígena pode ter substituídos prenome e sobrenome por outros, indígenas, de livre escolha.
"O direito à identidade étnico-cultural das pessoas e dos povos originários está umbilicalmente vinculado ao direito de liberdade de desenvolvimento e expressão da sua ancestralidade, o que não pode ser limitado por uma ótica registral que lhes negue o direito de usar o nome que verdadeiramente reflita a cosmovisão conexa à sua autoafirmação como um ser cujas diferenças devem ser prestigiadas e respeitadas", ressalta o ministro Salomão.
O defensor Pedro Carriello destaca a originalidade e a relevância jurídicas do caso, considerando que a modificação de registro civil já é possível a LGBTQIAP+, como garantia de direito à autoidentidade.
— A ideia central de identidade e a proteção da personalidade se completam como algo inerente à dignidade da pessoa humana, permitindo que a mudança no caso do gênero ou a substituição no nome no caso dos povos indígenas sejam tidos como paradigmas na construção de uma sociedade que contempla e protege as pessoas e os povos por mais diferentes que sejam — resume.
Carriello aponta ainda que a documentação básica para os povos indígenas é um direito e opção, e não requisito para acesso à cidadania. Além disso, a Constituição e o Decreto 5.051/2004, que promulga a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, pressupõe a consulta prévia e a livre escolha de seus nomes de acordo com as tradições.
Por fim, “a autodeterminação dos povos indígenas e a sua autoidentificação permitem a mutabilidade do nome em razão de um pertencimento identitário, sem que seja necessário o equívoco diferencial entre ‘indígenas integrados’ e ‘indígenas não integrados’ ”, contrariamente ao que havia decidido o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro