A professora universitária Michelline de Resende Angelim, de 45 anos, é mãe do Felipe, de 13 anos. O adolescente nasceu em Brasília com mielomeningocele — fechamento do tubo neural, que faz com que a medula, as raízes nervosas e as meninges fiquem expostas — e depende da cadeira de rodas para se locomover. Michelline reconhece a importância do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146, de 2015), que completou sete anos, na quarta-feira (6), mas destaca que faltam campanhas para educar as pessoas sobre o direito à mobilidade dos cadeirantes.
Enquanto outras mães podem deixar o filho em frente à escola e seguir direto para o trabalho, Michelline precisa planejar cada detalhe do seu dia.
— Eu tenho que descer, eu tenho que estacionar. Estacionando, eu tiro a cadeira, a mochila, preparo meu filho e vou ao banheiro para fazer um cateterismo, porque ele não consegue urinar sozinho. Então, eu preciso estacionar.
A professora relata que falta conscientização sobre a importância de respeitar as vagas reservadas aos deficientes.
— As pessoas não entendem, elas acham que é um privilégio, no sentido pejorativo, como se fosse um bônus. Elas não entendem que o cadeirante está sempre atrasado.
Michelline também denuncia que boa parte dos equipamentos essenciais para a locomoção dos portadores de deficiência não funciona.
— Locais sem rampa de acesso. Banheiros localizados no segundo piso. Locais, como o Planetário, a Torre de TV, o metrô, em que os elevadores não funcionam — detalha.
Dificuldades assim são compartilhadas por 17,3 milhões de brasileiros. Essa é a estimativa da parcela da população que possui algum tipo de deficiência no país, de acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019. O número representa 8,4% do total de pessoas com mais de dois anos. O percentual de homens é de 6,9% (6,7 milhões) e o de mulheres, 9,9% (10,5 milhões).
O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146, de 2015) determina que o direito ao transporte e à mobilidade seja assegurado em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
De acordo com o texto, em todas as áreas de estacionamento aberto ao público devem ser reservadas vagas próximas aos acessos de circulação de pedestres, devidamente sinalizadas, para veículos que transportem pessoas com deficiência.
Mas nem sempre esse direito é respeitado, segundo o servidor público Marcos José Zufelato, que assim como a esposa, Natália Gonçalves, é cadeirante. Com a falta de transporte público acessível, os dois têm que usar o carro diariamente. E sempre se deparam com a falta de vagas. Para eles, estacionar o carro, na maioria das vezes, demanda tempo e paciência.
— Os idosos muitas vezes usam a vaga de deficiente. Pior ainda é quando uma pessoa que nem é idosa usa a vaga. Então a falta de vagas é um problema complicadíssimo no nosso dia a dia.
Marcos explica por que o espaço reservado a deficientes no estacionamento é tão importante.
— Você precisa ter um espaço depois que abre a porta, para poder montar e desmontar a cadeira. Aquele espaço entre um carro e outro a gente sempre precisa usar. Por isso é muito complicado quando você chega em um shopping e tem uma moto parada na faixa zebrada ao lado da vaga. A faixa zebrada é justamente para ter o espaço da manobra.
Para garantir o cumprimento da norma e impedir que mais pessoas sejam afetadas pela falta de vagas preferenciais, tramita no Senado o PL 1.445/2022, que aumenta a multa cobrada em caso de reincidência de infração de trânsito por estacionar nas vagas reservadas às pessoas com deficiência. De acordo com o texto, a punição para infratores deve variar do dobro até o quíntuplo do valor.
A proposta, da senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), também prevê o pagamento de indenização por dano moral difuso. Atualmente, a infração é considerada gravíssima e prevê multa de R$ 293,47, além da inclusão de sete pontos na carteira de habilitação e possibilidade de reboque do carro.
Na justificativa do projeto, Daniella ressalta a importância de investir na fiscalização do cumprimento das normas. A senadora afirma que as multas têm o objetivo de atingir a devida educação no trânsito, já que intimidam eventuais infratores.
“Como consequência, a finalidade da multa de trânsito é a de inibir o condutor ou proprietário de veículo quanto à prática de determinadas condutas proibidas, e não a de arrecadar recursos financeiros”, explica a parlamentar.
Daniella também lembra que existem outras propostas garantir o direito ao portador de deficiência. Um deles é o PL 601/2019, do senador Fabiano Contarato (PT-ES), que reconhece o registro de infrações de trânsito feito por qualquer pessoa, física ou jurídica, como meio de prova apto à lavratura do auto de infração.
— O projeto prevê que o cidadão acione o órgão de trânsito para autuar os infratores caso seja possível — diz a senadora, para quem não há como agravar a multa para o reincidente. Ela explica como deve funcionar o pagamento de indenização por dano moral difuso.
— Além do agravamento da multa, a pessoa também poderá ser condenada por danos morais coletivos, com mais uma pena pecuniária. O valor destes recursos será voltado para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD). A ideia é fazer com que o motorista infrator sinta o peso da infração no seu bolso — diz.
O estatuto concede passe livre às pessoas portadoras de deficiência no sistema de transporte coletivo interestadual. No entanto, mesmo quando têm acesso ao direito, muitos cadeirantes encontram barreiras que desestimulam o uso dessa categoria de mobilidade.
O presidente da Organização Inclusiva das Pessoa com Deficiência, Silvestre Araújo, alerta que até numa cidade planejada, como Brasília, a falta de acessibilidade é generalizada.
— Nós estamos com um problema seríssimo em Brasília, os sinais sonoros estão desligados desde 2018, nos principais pontos turísticos da cidade. Temos a situação da Rodoviária do Plano Piloto, que não tem acessibilidade. Os elevadores estão quebrados, as escadas rolantes estão quebradas. Com relação às cidades satélites [regiões administrativas], hoje a mobilidade é muito reduzida porque muitos pavilhões não têm o nível para os elevadores baixarem e os cadeirantes entrarem no ônibus. No mês passado, dois cadeirantes sofreram acidentes, ao tentar entrar no ônibus.
O desafio é grande não só nas ruas. O estatuto obriga a instalação de sanitários para pessoas com deficiência em estabelecimentos públicos e privados. Mas a norma não é cumprida em boa parte do país.
— Além da rua que não é acessível, com desníveis e degraus, alguns restaurantes não têm banheiros acessíveis. Muitos restaurantes criam banheiros para deficientes e colocam trocador de bebê dentro. Não cabe uma pessoa cadeirante. Não faz sentido ter um trocador dentro do banheiro de deficiente — afirma Michelline.
Pessoas com deficiência física, visual, auditiva e mental — severa ou profunda — ou com transtorno do espectro autista têm direito a isenção de IPI na compra de automóveis, de acordo com a Lei 8.989, de 1995.
No entanto, dados da Receita Federal mostram que de 2020 a 2021 houve queda de 52,2%, na venda de carros para pessoas com deficiência. Em 2020 108.560 veículos adaptados foram comercializados. Em 2021 foram apenas 51.651. Se faltam carros, aumenta a demanda por por transporte público adequado.
De acordo com a regulamentação de normas e critérios para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência (Decreto 5.296, de 2004), todo o sistema nacional de transportes já deveria estar acessível desde 2014, incluindo frota de veículos, terminais rodoviários, metroviários e ferroviários. Mas num país pouco inclusivo, como o Brasil, a lei está longe de se tornar realidade. Para a senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), que é tetraplégica, a isenção do IPI é uma medida compensatória pela falta de acessibilidade no transporte público.
“Por conta da falta de acessibilidade no transporte público, utilizar um veículo é, muitas vezes, a única opção para uma pessoa com deficiência”, afirma Mara, autora do PL 1.238/2019, aprovado no Senado no início de junho.
Em análise na Câmara, o projeto assegura à pessoa com deficiência uma nova isenção de IPI na compra de carro em caso de roubo, furto ou perda total do veículo comprado anteriormente, com a mesma isenção, em período inferior a dois anos. A legislação atual permite a isenção do IPI somente uma vez a cada dois anos.
O relator da proposta na CAE, senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), lembra que não só a Lei 8.989, mas também uma instrução normativa da Receita Federal determinam o prazo de três anos para isenção às pessoas com deficiência.
— Há uma interpretação literal e contraproducente da letra da Lei 8.989, que nega à pessoa com deficiência o exercício do direito à isenção em período inferior a três anos na hipótese de perda do bem por motivos completamente alheios à sua vontade — afirma Bezerra.
Zufelato se queixa de outra limitação na hora de comprar um automóvel com isenção. No caso dele, o carro deve ser amplo o suficiente para transportar a família — ele, a esposa e duas filhas — e ainda as duas cadeiras de rodas no bagageiro. O preço de um carro assim é muito superior permitido por lei.
— Eu tenho 25 anos de lesão e utilizei esse benefício duas vezes. Porque sempre que a gente precisa, acaba limitado ao valor. E às vezes a pessoa tem uma necessidade que o tipo de carro que ela precisa comprar não está incluso nesse valor. Principalmente no momento em que estamos vivendo, com a alta dos preços nesse período de pandemia. Eu tenho um carro que eu não contei com isenção, eu tive que arcar com os custos, inclusive os custos com IPVA.
Mara também reforça que o Estatuto da Pessoa com Deficiência prevê a obrigatoriedade da acessibilidade em diversos setores, como saúde, educação, transporte, moradia, trabalho, esporte, cultura, lazer e turismo.
“Temos uma das melhores legislações do mundo nesse quesito. O que precisamos cada vez mais é trabalhar para tirá-la do papel.”
A senadora critica o caráter assistencialista de muitos legisladores e gestores públicos, que veem o portador de deficiência como incapazes, quando na verdade o que eles buscam é igualar oportunidades. Mara destaca que “trazer esse olhar mais inclusivo e progressista para a política é fundamental para trabalhar em pautas realmente transformadoras.”
Em relação ao processo de conscientização sobre a importância dos direitos das pessoas com deficiência, Mara afirma que não adianta apenas aplicar multas e criar leis. "A sociedade se conscientiza quando entende de fato o seu papel para melhorar a vida do outro”.
O PL 4.396/2019, do senador Paulo Paim (PT-RS), foi criado para corrigir um erro de redação no Estatuto da Pessoa com Deficiência. Originalmente, a proposta determinava que os veículos adaptados oferecessem comando manual de acelerador.
Segundo Paim, a norma impõe a oferta de um comando manual desnecessário — o de embreagem — mas não exige a oferta de outro item necessário — o acelerador.
O projeto recebeu relatório favorável com três emendas do senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB). Uma das alterações obriga as locadoras a oferecerem um veículo adaptado para uso de pessoas com deficiência a cada conjunto de 20 veículos da frota.
Veneziano também propõe que as adaptações nos veículos sejam determinadas em regulamento próprio, já que o “rápido avanço tecnológico no setor automotivo arrisca tornar essa correção proposta por Paim obsoleta em alguns anos”.
O relator lembra que os carros elétricos (que são o futuro do setor) em geral dispensam por completo a própria caixa de câmbio.
A proposta está, neste momento, na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), com relatoria da senadora Mara Gabrilli.
Segundo Paim, “é importante que existam carros adaptados aos novos tempos e que a norma contemple essa evolução, de forma que atenda as necessidades das pessoas com deficiência”.
Autor do primeiro projeto que originou o estatuto, quando era deputado, em 2000, Paim ressalta as conquistas, mas lembra que ainda há um grande caminho a ser vencido no país.
— Ao longo deste período, vários princípios de acessibilidade já começaram a ser incorporados pela sociedade. O uso de vagas exclusivas, a construção de rampas de acesso e os sistemas de transportes mais acessíveis são alguns exemplos positivos. Avançamos, não restam dúvidas, mas ainda temos muito que fazer, tanto na área de mobilidade quanto nas demais dimensões que o estatuto alcança.
Reportagem: Mateus Souza, sob supervisão de Paola Lima
Edição: Maurício Müller
Infografia: Cássio Costa
Edição de fotos: Ana Volpe e Bernardo Ururahy
Foto de capa: NAMPIX/Adobe Stock
Fonte: Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)