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Inauguração de estátua de Marielle Franco é marcada por debate entre mulheres negras

Realizada no mesmo dia em que a vereadora completaria 43 anos, programação incluiu missa e atividades culturais à memória dela

Por Daniel Israel em 28/07/2022 às 22:58:46

Irmã, filha, mãe, pai, viúva: família posa ao lado da escultura, em tamanho natural. Fotos: Daniel Israel

Há quatro anos, antes que começasse uma campanha eleitoral como a de 2022, o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSoL) e do motorista dela, Anderson Gomes, mutila até hoje a democracia no Brasil. O cenário político do país, de "muito ódio espalhado por aí", conforme apontou a irmã dela, a professora e diretora-executiva do Instituto Marielle Franco, Anielle Franco, durante debate com outras mulheres negras, sob o tema "A Memória é a semente para novos futuros", realizado ontem (27). Não por acaso, na data que seria o aniversário de 43 anos de Marielle, a conversa foi parte de um evento focado na inauguração de estátua à memória da parlamentar, realizado na Praça Mário Lago, incluindo missa pela manhã na Igreja de Nossa Senhora do Parto e, para encerrar as homenagens, atividades culturais à tarde e à noite.

Na antevéspera (25), tinha sido comemorado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Com representantes da negritude feminina, a partir de falas voltadas à resiliência e força criativa dessas mulheres, no Centro do Rio o protagonismo reverberado pela estudante Fatuh, a bailarina Tula Pires e a jornalista e escritora Eliana Alves Cruz foi mediado por Anielle.

"Desde que mataram a minha irmã, eu fiz uma promessa que não sabia como cumprir: todo 14 de março e todo 27 de julho eu ia fazer alguma coisa. É de onde vem o sonho do Instituto, a nossa luta nesses quase cinco anos para fazer acontecer. Nesse ano difícil, de muito ódio espalhado por aí, que a gente possa se cuidar. A pauta do autocuidado é tão cara para a gente, que precisa estar junto, se cuidar. Então, cuidem dos seus, das suas e de vocês sempre", destacou ela, na abertura do debate.

Lotada, a Praça Mário Lago, mais conhecida como Buraco do Lume, foi por anos o palco onde parlamentares do PSoL prestaram contas de seus mandatos, sempre às sextas-feira. À luz do meio-dia, no horário em que era possível o diálogo com milhares de pessoas que passavam pela região da Carioca e paravam para ouvir discursos, pautas que foram ou seriam votadas tanto na Câmara dos Vereadores (CMRJ) como na Assembléia Legislativa (Alerj). Inclusive de Marielle, que assumiu como vereadora em 2017 e era apontada como possível candidata ao Governo do Estado no ano seguinte. O monumento, em tamanho natural, mede 1,75m e foi esculpido pelo artista Edgard Duvivier, autor de estátuas de outras figuras proeminentes, como o escritor Lima Barreto, os engenheiros abolicionistas André e Antônio Rebouças e o ex-atacante Garrincha.


"Semente" que germinou nesse período do luto à luta, Fatuh comentou que o pioneirismo de sua geração se alimenta de memória e ancestralidade. "É a primeira geração que está conseguindo atingir um público vasto na palma da mão e introduzir os debates raciais que muitas vezes ficavam restringidos ao ambiente da academia. Mas ao mesmo tempo é uma geração que precisa olhar para trás, porque quando a gente fala de memória, está falando das vivências que vieram antes da gente", disse a jovem, de 17, para aplausos dos presentes. "Porque a gente não percebe que está fazendo história, até voltar para trás".

Na opinião de Tula Pires, que também é professora de balé e poetisa, "essa memória tem várias maneiras de destacar aspectos importantes". "Um deles é aquele que vai pensar a memória como a possibilidade de dizer a verdade, estabelecer a justiça, promover a reparação e dizer o que a gente não quer que se repita. A gente não está falando de inventar uma verdade, mas fazer com que a trajetória e todas as lutas travadas pela Marielle sejam contadas a partir do sentido que ela atribuiu a cada uma das suas ações", pontuou.

A reflexão de Tula dialoga com uma iniciativa que aliados de Marielle Franco tiveram logo que, de acordo com as autoridades investigativas, o policial militar reformado Ronnie Lessa, em veículo clonado dirigido pelo ex-PM Élcio Queiroz, atirou e matou a então vereadora, na noite de 14 de março de 2018. Até hoje, porém, a execução não teve apontados mandante nem motivação, pelas autoridades à frente da investigação - Polícia Civil (PCRJ) e Ministério Público (MPRJ).

São esses os cinco Projetos de Lei (PLs) de autoria dela, aprovados menos de dois meses após seu assassinato:

    • Espaço Coruja (PL 17/2017)

    Institui o Espaço Coruja, programa de acolhimento às crianças no período da noite, enquanto seus responsáveis trabalham ou estudam. É também essencial para conquistar igualdade entre homens e mulheres, permitindo que mães com dupla jornada continuem seus estudos ou permaneçam em seus empregos

    • Dia de Thereza de Benguela no Dia da Mulher Negra (PL 103/2017)

    Inclui no calendário oficial da cidade o Dia de Thereza de Benguela como celebração adicional ao Dia da Mulher Negra, em homenagem à líder quilombola Thereza de Benguela, símbolo de força e resistência

    • Assédio não é passageiro (PL 417/2017)

    Cria a Campanha Permanente de Conscientização e Enfrentamento ao Assédio e Violência Sexual no município do Rio de Janeiro, nos equipamentos, espaços públicos e transportes coletivos

    • Efetivação das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto (PL 515/2017)

    Prevê que o Município se responsabilize por suas obrigações legais, garantindo que as medidas socioeducativas do Judiciário sejam cumpridas pelos adolescentes em meio aberto e, eventualmente, dando-lhes oportunidades de ingresso no mercado de trabalho

    • Dossiê Mulher Carioca (PL 555/2017)

    Cria o Dossiê Mulher Carioca, para auxiliar a formulação de políticas públicas voltadas para mulheres através da compilação de dados da Saúde, Assistência Social e Direitos Humanos do Município do Rio de Janeiro

Programação na Carioca foi uma forma de reavivar a relação da vereadora - e seu partido - com essa região do Centro. Imagem: Divulgação

"Transformar em letras a memória"

Jornalista especializada na cobertura esportiva, com uma coluna no UOL, Eliana Alves Cruz é, hoje, uma das mais renomadas escritoras de sua geração. Autora de quatro romances, sendo o de estreia "Água de barrela" e o mais recente, "Solitário", ela enfatizou a importância da estátua - "é documento, é preciso deixar vestígio, lutar para ter a nossa história escrita e registrada" -, e a alegria como ingrediente indispensável à política.

"O desaparecimento dela significou muito para o país, o Rio de Janeiro e a minha família em particular. Sou uma escritora que começou na literatura com um romance que mapeou a história da própria família, da África até o Brasil, um recorte de 170 anos e que vem até os nossos dias. Sou alguém que precisa beber na fonte da memória. Se não fossem as pegadas de quem veio antes, eu jamais estaria aqui", afirmou. "Uma pessoa como Marielle, que exercia a política da forma mais alegre que eu pude até aquele momento verificar, nunca tinha visto felicidade nas pessoas que falavam comigo ou buscavam meu voto".

"Uma morte dessa, tão brutal, mostra uma desconexão do país com ele mesmo. Eu estou aqui para trocar uma experiência que é transformar em letras a memória, e quando faz isso a gente devolve dignidades solapadas. Cada vez que a gente reafirma uma memória dessa, cada vez que a gente se une em torno da vida, a vida se estabelece e se impõe. E a vida se imporá, a partir do momento que a gente não esmorecer, não desistir e, principalmente, não esquecer. Mas a gente está aqui para dizer que fazemos parte, que esse país é nosso também. E que não iremos esquecer", finalizou.

Assista, no vídeo abaixo, a um resumo do debate realizado durante a tarde e noite de ontem (27).


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