Uma pesquisa na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) mostrou que profissionais de enfermagem vítimas da Covid-19 morreram mais jovens que os médicos também vítimas da doença. O estudo Óbitos de médicos e da equipe de enfermagem por Covid-19 no Brasil: uma abordagem sociológica, publicado pela revista Ciência & Saúde Coletiva, revelou que cerca de 80% dos enfermeiros e dos técnicos ou auxiliares de enfermagem mortos tinham até 60 anos. Já entre os médicos, 75% das vítimas estavam acima desta faixa etária.
Os principais motivos para a diferença apontados no artigo são os tipos de vínculos trabalhistas mais comuns em cada profissão e a média de idade dos profissionais no momento da entrada no mercado de trabalho. Para o estudo, foram considerados os dados de óbitos por Covid-19 de março de 2020 a março de 2021 e contabilizou 622 médicos, 200 enfermeiros e 470 auxiliares e técnicos de enfermagem. As análises foram feitas com base em dados dos conselhos federais de Medicina e Enfermagem (CFM e Cofen) e do estudo sobre o inventário de óbitos da Fiocruz.
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A desigualdade entre as regiões do país é outro destaque do estudo. Chama atenção que, no ranking dos óbitos das três categorias, a polarização dos estados da região com os maiores contingentes, o Sudeste, em contrapartida aos estados da região Norte, que tem a menor quantidade de médicos e profissionais de enfermagem do Brasil. Quatro estados das duas regiões foram os mais atingidos com as perdas profissionais – Pará e Amazonas (Norte) e Rio de Janeiro e São Paulo (Sudeste).
No Norte estão apenas 4,5%, 7,6% e 8,7%, respectivamente, do contingente de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem do país, porém as perdas profissionais foram de 16,1%, 29,5% e 23,2%. O desequilíbrio também ocorreu no Centro-Oeste, mas em menor intensidade. Com cifras superlativas na composição do contingente de profissionais, a região Sudeste concentra mais da metade (53%) dos médicos do país, 45,1% dos enfermeiros e 48,9% dos técnicos. No entanto, os percentuais de mortes desses trabalhadores na pandemia foram menores, proporcionalmente: 34,7%, 26,5% e 32,1%, respectivamente. Três estados se destacam nos óbitos médicos: Rio de Janeiro (15,8% do total), São Paulo (11,3%) e Pará (10,1%), sendo este último responsável por 63 das cem mortes da região Norte. Em relação aos enfermeiros, os três estados em destaque são Amazonas (12,5%), São Paulo (10,5%) e Rio de Janeiro (9,5%).
Maria Helena Machado classificou os dados como “uma fotografia real, crua e dura da desigualdade social que impera no país e no Sistema Único de Saúde [SUS]”. A autora destacou ainda a complexidade do Norte brasileiro. “É uma região com uma população grande, heterogênea e dispersa em sete estados. Uma extensão territorial grande, o que deveria gerar políticas especiais. É lá que tem o percentual gigantemente diferente das regiões Sudeste e Sul do país. É lá que se vê com clareza onde o genocídio dos profissionais se deu forma mais aguda. É onde tem piores condições de trabalho e maior aglomeração da população desesperada por atendimento. O Amazonas foi um exemplo vivo do descaso com que a Amazônia Legal vem sendo tratada no país. Ela ficou muito descoberta e desprotegida”, afirmou a pesquisadora da Ensp/Fiocruz.
“A enfermagem tem uma inserção mais institucional, assalariada e com tempo de trabalho pré-determinado. Boa parte da enfermagem no Brasil tem assegurado o direito formal à aposentadoria. Na medicina é exatamente o contrário, pois infelizmente os médicos estão cada vez mais de forma autônoma no mercado profissional. A outra questão é que as categorias da enfermagem tem inserção no mercado de trabalho em fases da vida bastante distintas. Os técnicos podem iniciar a jornada por volta dos 18 anos, por exemplo. Os enfermeiros, assim como os médicos, precisam primeiro se formar na universidade, mas o curso de Medicina é mais longo, fazendo que com que esses profissionais entrem mais tarde no mercado, o que também contribui para o prolongamento das suas carreiras”, explicou a pesquisadora da Ensp/Fiocruz, Maria Helena Machado, autora principal do artigo.
Condições de trabalho tornam pretas e pardas alvos preferenciais do vírus
Além de terem, em sua maioria, até 60 anos, os profissionais de enfermagem que morreram vítimas da Covid-19 eram mulheres, pretas e pardas. Entre os enfermeiros vitimados, 59,5% eram mulheres enquanto entre os auxiliares de enfermagem, elas somaram 69,1%. Sobre a correlação entre cor ou raça e óbitos dos profissionais da enfermagem, a pesquisa mostrou que 31% dos enfermeiros que morreram por Covid-19 eram brancos, e 51%, pretos e pardos. Já entre os auxiliares e técnicos, 29,6% eram brancos e 47,6% pretos e pardos.
No caso dos médicos, houve predominância absoluta de homens mortos por Covid-19: 87,6%, contra 12,4% de mulheres. A pesquisa explica que, apenas em 2009, as médicas passaram a ser maioria entre os novos registrados nos conselhos profissionais. Portanto, entre os médicos mais velhos, que foram maioria entre os mortos por Covid-19, predominam homens. Já o perfil das equipes de enfermagem é mais feminino, historicamente: as mulheres são cerca de 85% do total. Dados sobre cor e/ou raça não estão disponíveis no caso dos médicos.
Outro recorte da pesquisa mostra como as mortes por Covid-19 se relacionam com as especialidades médicas. Aqueles que atuam nas áreas de assistência e de atendimento contínuo de grandes populações foram os que mais morreram na pandemia. Os especialistas da ginecologia-obstetrícia, clínica médica, pediatria e cirurgia geral somaram 279 das 622 mortes de médicos. “Mesmo em tempos de pandemia não teriam como restringir suas atividades, sejam nos estabelecimentos públicos ou privado, inclusive em consultórios médicos, quase sempre sem o aparato de biossegurança necessário, portanto não foram alvo prioritário das políticas de biossegurança contra a pandemia”, apontam os autores num trecho do artigo.
Com grande importância técnica e estratégica, médicos e profissionais de enfermagem somam mais de 2,9 milhões de profissionais, o que representa 72,5% do total da força de trabalho em saúde do país. Esses números atestam a hegemonia e a perenidade desse contingente profissional estratégico para o SUS, e que se mostrou essencial e imprescindível na pandemia.
Confira trechos em destaque da pesquisa:
- "Existe no país uma ausência de fontes seguras e estáveis que possam determinar a dimensão da devastação de contaminados e mortos tanto na população como entre os profissionais. No entanto, sabe-se que as sequelas pós-Covid-19 já são observadas entre os trabalhadores e impactará no cotidiano institucional pelo volume de afastamentos por sequelas".
- "É preciso buscar soluções definitivas para uma grave questão: o cotidiano de vulnerabilidade dos profissionais de saúde é gerado em boa parte pela sobrecarga e precarização do trabalho e o difícil acesso aos equipamentos de proteção individual na quantidade e qualidade necessárias. Dessa forma, esses protagonistas da linha de frente ficaram ainda mais suscetíveis à contaminação, resultando em milhares de afastamentos e óbitos em decorrência da Covid-19".
- "Por fim, é importante assinalar que a escassez e, por vezes, a ausência sistemática de dados sobre óbitos de profissionais de saúde em geral durante a pandemia é um fato grave. Isso implica um apagão de fatos que aconteceram e estão acontecendo com esses trabalhadores, gerando um cenário de incertezas na pandemia e no pós-pandemia".