O novo presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, anunciou nesta segunda-feira (06), durante a posse, que o banco vai apoiar a construção de um museu sobre a história da escravidão no país. Essa é uma demanda antiga da comunidade negra, e faz parte do projeto do Cais do Valongo, situado no Rio de Janeiro. O local foi o principal ponto de desembarque e comércio de pessoas negras escravizadas nas Américas e é patrimônio da humanidade pela Unesco.De acordo com Mercadante, a medida é de grande importância para o resgate da memória da escravidão.
O anúncio acontece poucos dias depois de uma reunião entre membros do Ministério Público Federal, que acompanham as medidas adotadas no Cais desde 2013, e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan. No evento, o MPF cobrou a adoção de providências para o que Estado Brasileiro cumpra as obrigações assumidas com a Unesco em 2017, quando o Valongo foi declarado Patrimônio da Humanidade.
Ouça no podcast do Eu, Rio! a reportagem da Rádio Nacional sobre o apoio do BNDES à construção do Museu da Escravidão e a importância do Cais do Valongo e da Pequena África para a História do Brasil.
O procurador Sérgio Suiama explica que, além da construção do Museu, é preciso revitalizar a praça onde o Valongo está localizado, com medidas para solucionar os constantes alagamentos e melhorias nas informações turísticas e na iluminação. Ele também defendeu a reinstalação do comitê gestor participativo do sítio, extinto em 2019.
O Cais do Valongo funcionou até 1831, ano em que foi proibido o tráfico transatlântico de africanos escravizados. Calcula-se que entre 500 mil e um milhão de negros desembarcaram no local. Os vestígios do antigo Cais foram revelados em 2011, durante as escavações arqueológicas para a implementação do projeto Porto Maravilha.
Responsável pela fiscalização do Patrimônio Cultural Brasileiro, o Iphan foi procurado pela reportagem para abordar a situação do Cais do Valongo, mas não respondeu até o fechamento da matéria.
Área da Zona Portuária, a 'Pequena África', foi a seu tempo a maior cidade afro-atlântica
O título de Patrimônio Cultural da Humanidade foi conferido ao Cais Valongo por seu valor universal excepcional como único exemplar íntegro e autêntico conhecido até o momento, que através de seu contexto material e imaterial, expressa de forma totalizante a história de diáspora africana no Brasil e nas Américas (Comitê Técnico da Candidatura do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo a Patrimônio Mundial, MRE, MinC, IPHAN 2018, , p.4). É testemunha material do tráfico de escravos para o Brasil, e das raízes da matriz africana no Brasil pela "presença ininterrupta de africanos e seus descendentes na região onde está localizado."(Ibid.) Foi o porto de entrada, entre c. 1775 e 1830, de possivelmente entre 500 mil a 900 mil africanos escravizados no Brasil.
Possuía desenho específico para atracagem de pequenos barcos que traziam os escravos após passagem pela alfândega. Além de ser porto de entrada era também ponto de parada de outros navios seguindo para outros destinos no continente sul americano, conectando o Brasil e as rotas da diáspora, onde contatos, trocas materiais e culturais aconteciam no cone sul (Ibid.). A escolha da localização do Cais do Valongo no seu tempo de funcionamento deu-se pelo afastamento da cidade oficial, e seu isolamento pela posição entre uma estrutura de morros.
Em 1831, com a proibição oficial do tráfico de africanos escravizados nos portos Brasileiros, o Cais do Valongo deixou de realizar esta função. Em 1843 construiu-se sobre ele o Cais da Imperatriz, porto para receber a Imperatriz Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, segunda esposa de D Pedro II. Entretanto o tráfico de escravos não deixou de acontecer no Brasil e a região continuou sendo local de comércio de escravos e local de moradia e trabalho de muitos africanos e seus descendentes, cativos ou libertos. Esta característica só começou a ser perdida com as reformas urbanas do séc. XX, e o aterro, e construção da Praça Jornal do Commercio.
Houve assim um apagamento simbólico desta história "porém permaneceu viva na memória da população local e de parte da cidade. Após as escavações da região portuária que revelaram o Cais do Valongo, além de outras intervenções e atrações culturais, esta região passou a ser local de turismo e memória, e lugar de referência para o estudo e aprendizado sobre a história e cultura negra da cidade. A coleção arqueológica que é fruto das escavações possui 466.035 peças e é excepcional pela concentração de materiais associados à diáspora africana (Ibid., p,8). Este é o material que está sendo tratado, e será guardado e exibido no Galpão B da Vila Olímpica, mesmo complexo em que se encontra o Galpão A.
Desde cemitério para chegada de escravos que pereciam na jornada ou ao chegarem, casas de comércio de escravos e lugares de resistência, a Pequena África, como foi denominada por Heitor dos Prazeres a região de entorno do Valongo, concentra um conjunto de sítios de memória que "remetem à dor e sobrevivência na história de nossos antepassados, bem como é o marco inicial de uma cidade negra onde nasceram desde casas de culto de matriz africana até o próprio samba. "Como outros sítios de memória sensível, o Cais do Valongo guarda, em sua materialidade, a dor e o medo dos seres humanos que por eles passaram, bem como sua força vital." (Comitê Técnico da Candidatura do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo a Patrimônio Mundial, MRE, MinC, IPHAN 2018, , p.8). Os sucessivos aterramentos que ocorreram sobre o Valongo acabaram por desconectá-lo da antiga linha do mar, na Baía da Guanabara, que está a 344 metros de distância. A zona de amortecimento do Valongo, que "tem como base a ocupação histórica do antigo complexo escravagista do Valongo abrigando um conjunto edificado que recebeu fachadas ecléticas no final do séc. XIX e início do séc. XX. E estende-se até a Avenida Barão de Tefé, e um trecho do porto, eixo visual entre o sítio arqueológico e a atual linha d'água.
O Plano de Gestão do Cais do Valongo é desenvolvido em parceria entre a UNESCO, o IPHAN e o Município do Rio de Janeiro, e é tratado em três dimensões: arqueológica, urbanística e na dimensão social, econômica e cultural: "nas ações de valorização do sítio na sua perspectiva social e cultural, especialmente na relação deste bem com a população e o turismo".
O IPHAN considera ainda que a antiga relação do Cais de Valongo com a linha d'água deve ser recuperada e interpretada para que o visitante possa entender no território a relação de seus diversos pontos com a Baía da Guanabara. Como um museu municipal, O MUHCAB contribui, através da gestão compartilhada com as demais entidades gestoras do Cais do valongo, com os compromissos estabelecidos assumidos pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e IPHAN junto à UNESCO, no Plano de Promoção do Cais do Valongo, enviado à UNESCO em 2017:
• Tratamento paisagístico e de sinalização do entorno do sítio arqueológico – compromisso gerido pelo IDG, para o qual o MUHCAB fornece conteúdo interpretativo.
• Projeto Educativo Sítio Arqueológico Cais do Valongo – difundir o valor universal excepcional do sítio arqueológico, através de ações educativas com as escolas públicas e privadas de nível fundamental e médio da cidade – compromisso que deve ser gerido pelo MUHCAB.
• Centro de Referência da Celebração da Herança Africana – é, junto ao sítio arqueológico, um centro de acolhimento turístico e espaço de reflexão sobre a importância do legado dos afrodescendentes na cultura das Américas. Este elemento fora inicialmente pensado para instalação no Edifício Docas D Pedro II, está a cargo do IPHAN e Fundação Palmares, por esses entes federais terem a posse do imóvel, contando com a colaboração do MUHCAB para o desenvolvimento do projeto.
Fonte: Agência Brasil e Radioagência Nacional