'Aqui é Beija-Flor/doa a quem doer'. O refrão marrento do samba deste ano combina com a trajetória da caçula entre as grandes campeãs do Carnaval, que estreou no Grupo Especial em 1975. Chegando na disputa quase meio século depois da primeira disputa, a Beija-Flor acumula 14 títulos, atrás apenas da Portela e da Mangueira. A confiança, marca da escola de Nilópolis, ajuda a explicar a capacidade de traduzir na passarela um enredo complexo, baseado nos delírios de um personagem desconhecido fora de Maceió, Rás Gonguila.
Negro e marginalizado, o engraxate Benedito não poupa nos sonhos. Na imaginação dele, a capital alagoana se torna uma mistura do Quilombo de Palmares, também em Alagoas, com a distante Etiópia. O traço comum aos dois lugares é a recusa à submissão. A Etiópia resistiu a diferentes invasões imperialistas ao longo da História, e com isso Benedito busca se transformar na representação viva dessa soberania, como o Ras Gonguila, vivido na avenida por Samuel Assis, da novela Vai Na Fé. Rás, origem do termo rastafari, é a designação do monarca da Etiópia.
Benedito não deixou registros escritos de sua saga imaginária. Com isso, a equipe do pesquisador Rodrigo Hilário teve que entrar em contato com a sobrinha de Benedito, de 68 anos, para recuperar as lembranças do tio. Com base na História oral, como nas tradições ancestrais dos griots africanos, o carnavalesco João Vítor Araújo, que estreia na Sapucaí, misturou realidade e fantasia, navegando por mitos africanos e gregos, como Netuno.
Araújo, estreante abusado, pôde contar com muito método para um enredo baseado em uma loucura. A escola fechou o desfile dois minutos antes do prazo limite, sem correr em momento algum. A evolução seguiu um ritmo uniforme, sem lacunas entre as alas. Nem sinal dos problemas no som que afetaram o desfile da Série Ouro, permitindo que a voz potente de Neguinho da Beija-Flor, 74 anos, e o canto dos componentes ocupasse a avenida por igual.
A bateria optou por uma condução sem floreios, sem paradonas nem maiores inovações rítmicas. A opção facilitou a harmonia e a evolução. O 'feijão-com-arroz' pode custar o Estandarte de Ouro, mas pavimentar o retorno da escola da menor cidade em extensão do estado ao Sambódromo para mais um Desfile das Campeãs. As escolhas da Soberana, nem sempre ousadas como os ratos e urubus de Joãozinho Trinta, no mais das vezes revelam-se vitoriosas, como este bom desfile.