Um novo relatório de um grupo de especialistas da ONU mostra o dramático impacto do racismo sistêmico na aplicação da lei no Brasil e apresenta recomendações para políticas de segurança pública que defendam os direitos humanos e protejam a todos.
O Mecanismo Internacional Independente de Especialistas para o Avanço da Justiça Racial e Igualdade na Aplicação da Lei (EMLER, na sigla em inglês) — criado em 2021 em resposta às manifestações após o assassinato de George Floyd pela polícia nos EUA no ano anterior — ouviu mais de 100 depoimentos de vítimas de violência policial, seus familiares, e comunidades afetadas durante uma visita de 12 dias ao Brasil em 2023.
A Human Rights Watch trabalhou junto a diversas organizações para instar sucessivas gestões do governo a convidar o grupo de especialistas para visitar o Brasil. O governo posteriormente afirmou que convidou o EMLER em resposta a pedidos da sociedade civil.
O relatório do EMLER é uma leitura angustiante, pois evidencia as estruturas do racismo que milhões de brasileiros negros dolorosamente vivenciam a cada dia. Mas também mostra um caminho a seguir, apontando para a adoção de uma abordagem de direitos humanos para a segurança pública.
Em 2 de outubro, os especialistas compartilharam suas conclusões durante a 57ª sessão do Conselho de Direitos Humanos em Genebra. Em uma declaração durante a sessão, a Human Rights Watch pediu ao governo brasileiro a adoção de medidas urgentes para acabar com o histórico de brutalidade policial contra a população negra.
O representante do governo brasileiro disse na sessão do Conselho que o relatório era “uma oportunidade” para “coordenar esforços e encontrar soluções” no enfrentamento da violência policial, e prometeu examinar minuciosamente as recomendações dos especialistas.
O relatório final do EMLER, que cita a pesquisa da Human Rights Watch, ecoa nossas recomendações de longa data para que se adote uma estratégia nacional para “reduzir drasticamente o número de mortes causadas por policiais” e para garantir “investigações rápidas, eficazes e independentes” em todos os casos de uso excessivo da força.
A cada ano, policiais matam mais de 6.000 pessoas no Brasil, sendo que pessoas negras têm três vezes mais chances de serem vítimas do que pessoas brancas. Os casos de violência não são isolados, observaram os especialistas, mas mostram um “padrão alarmante” e têm resultado em uma “erosão sintomática e generalizada” e “profunda falta de confiança” nas forças policiais, particularmente entre as “comunidades marginalizadas”.
A Human Rights Watch documentou como o abuso policial e a consequente quebra de confiança prejudicam a segurança pública no Brasil. A desconfiança alimenta um ciclo de violência que coloca em risco tanto a população quanto os policiais e prejudica a colaboração de comunidades com as investigações. A impunidade generalizada nos casos de abusos policiais agrava o problema.
Citando nossa pesquisa, os especialistas da ONU destacaram “sérias lacunas” nas investigações. No Brasil, as mortes causadas por policiais são investigadas pela própria polícia, o que, segundo eles, “compromete a credibilidade e a imparcialidade das investigações”. Além disso, as perícias por vezes são parte da própria polícia civil — um modelo que também prejudica a independência.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos também determinou que as mortes causadas pela polícia devem ser investigadas por “um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente”, com o apoio pericial “alheio” à força de segurança que supostamente cometeu o abuso. A Human Rights Watch instou o Conselho Nacional do Ministério Público a aprovar uma resolução a fim de garantir que promotores liderem as investigações de todas as mortes causadas por forças de segurança.
Em uma submissão por escrito ao EMLER, a Human Rights Watch descreveu práticas policiais para encobrir o uso ilegal da força letal, como a remoção das roupas das vítimas, provas plantadas, a intimidação de testemunhas e o falso socorro de vítimas, que consiste em levar corpos sem vida ao hospital a fim de destruir as provas na cena do crime. Também explicamos como os investigadores frequentemente deixam de fazer a perícia no local dos fatos, de entrevistar testemunhas e de interrogar os policiais envolvidos adequadamente, além da má qualidade das autópsias.
Um importante passo seria o Brasil implementar o Protocolo de Minnesota sobre a Investigação de Mortes Potencialmente Ilícitas e outros parâmetros internacionais, uma recomendação endossada pelo EMLER. O relatório dos especialistas também pede a criação de unidades especializadas de promotores, com recursos suficientes, para melhorar o controle externo da atividade policial no Brasil. A Human Rights Watch entende que essas unidades permitiriam adquirir expertise em casos de mortes cometidas por policiais e protegeriam promotores naturais do risco de retaliação por investigações de abusos de policiais na sua jurisdição.
As necessárias reformas na polícia também devem incluir apoio adequado aos policiais no cumprimento do seu dever de proteger a população. Conforme observado pelos especialistas independentes, o número de policiais que morreram por suicídio aumentou 26% em 2023 em comparação com o ano anterior. A Human Rights Watch também recomenda um melhor atendimento psicológico para policiais.
Os especialistas independentes também destacaram a abusiva “guerra às drogas” no Brasil, que tem sido usada como justificativa para operações letais em comunidades de todo o país, alimentando a super-representação da população negra nas prisões e as más condições de detenção — preocupações que a Human Rights Watch há muito tempo compartilha.
As autoridades brasileiras deveriam enfrentar a “discriminação arraigada [que] existe na polícia e no sistema de justiça criminal”, identificada pelos especialistas da ONU. O relatório oferece recomendações importantes para implementar políticas de segurança pública que sejam não apenas justas, mas também mais eficazes.