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"Espero morrer com dignidade"

Morte de Antônio Cícero reacende debate sobre eutanásia

Dogmas religiosos impedem discussão no país, dizem especialistas


Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

"Queridos amigos, encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer…”. As palavras do poeta Antônio Cícero, de 79 anos, na carta que deixou, comoveram o Brasil. "Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade". Ele morreu na Suíça, na última quarta-feira (23), onde o suicídio assistido é permitido.

A história do imortal da Academia Brasileira de Letras, autor de versos como “melhor se guarda o voo de um pássaro do que pássaros sem voos”, além de emocionar, também reabriu o debate sobre assuntos polêmicos como eutanásia, suicídio assistido e dignidade da morte.

Um imortal decidiu morrer, mas pode despertar o debate sobre suicídio assistido no Brasil. Outros brasileiros vivem o mesmo drama, mas, sem dinheiro para buscar uma solução em outros países, enfrentam barreiras legais no Brasil.

“Dores insuportáveis”

A estudante de veterinária Carolina Arruda, de 27 anos, da cidade de Bambuí (MG), sofre desde os 16 anos com neuralgia do trigêmeo, uma doença que afeta os nervos do rosto e provoca dor intensa, descrita por profissionais de saúde como tão forte que é impossível de ser ignorada. Mesmo em um cenário dolorido e complexo, ela fez campanha para conseguir recursos para realizar o suicídio assistido na Suíça. Convivendo com essas "dores insuportáveis”, Carolina estima que precisaria mais de R$ 200 mil para viabilizar o procedimento.

“Meu sonho é ainda ver minha filha se formar. Ela tem 10 anos ainda”. Por isso, não sabe se será possível. “A minha rotina de vida hoje é praticamente o dia inteiro na cama porque, se eu faço qualquer esforço físico, eu já desmaio de dor”.


Com doença grave e dores intensas, a estudante Carolina Arruda tenta reunir dinheiro suficiente para realizar suicídio assistido na Suíça, país onde o poeta Antônio Cícero decidiu interromper sua vida na última semana. Foto: Arquivo Pessoal Carolina Arruda

Ela explica que foi muito difícil pensar em um procedimento que colocasse fim à vida. “Eu ainda não tinha coragem de expressar. Minha família não aceita, mas entende”. Foram os amigos e a família que viram os dias se transformarem em experiências de dores lancinantes para Carolina. Ela sabe que a documentação exigida levará bastante tempo para ser aceita na Suíça. “Mais de quatro anos. Sei que no Brasil esse assunto nem é discutido e nem tão cedo será tratado. Há uma venda nos olhos para isso”.

Apenas para ricos

Ouvidos pela Agência Brasil, pesquisadores referências em bioética no país consideram o assunto complexo. Mas também apontam que tabus morais e religiosos impedem um debate mais amplo sobre legislação e até sobre os cuidados em um momento indissociável da experiência humana, a preparação para a morte.

Autoridade internacional nas pesquisas em bioética, o professor emérito Volnei Garrafa, da Universidade de Brasília (UnB), avalia que longas internações sem o suporte do Estado mostram que a dignidade da morte para situações insuportáveis fica restrita a quem tem privilégio financeiro. “O país é conservador e não avança nesses temas morais, o que é lamentável, porque isso aí realmente traz prejuízo para a cidadania, principalmente das pessoas mais pobres”.

Ele entende que todos os temas que envolvem questões morais no Brasil, incluindo dogmas religiosos, geram resistência no Legislativo brasileiro para uma eventual formulação que abarque o tema da eutanásia ou suicídio assistido.

A diferença básica entre eutanásia e suicídio assistido é que, na eutanásia, o médico realiza o ato que vai levar à morte. E no suicídio assistido é o paciente que faz o ato final.

Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, a professora Maria Júlia Kovács considera que a história de Antônio Cícero é comovente também por causa da sinceridade. “De contar a sua história, e de tomar a decisão por uma morte digna. Houve uma comoção bastante importante (para redução dos tabus a respeito do tema)”.

No Brasil, essas práticas são proibidas e podem levar profissionais da saúde à condenação penal. “O panorama legislativo, no campo de regulamentação das ciências relacionadas com a vida humana, no amplo sentido, é um verdadeiro deserto”, critica Garrafa. Ele entende que o tema da “terminalidade da vida” tem sido constantemente afastado do debate brasileiro. “Tem sido um tabu no para a sociedade brasileira, para a cidadania, tudo o que se refere ao final da vida”.

Pesquisadora em direito e docente da pós-graduação em bioética da UnB, Aline Albuquerque esclarece que tanto a eutanásia e suicídio assistidos ainda são crimes do ponto de vista do Código Penal. “Nós não temos nenhuma modificação legislativa nesse sentido do Brasil. É um tema complexo não só no Brasil. Atualmente há um projeto de novo Código Penal, que está no Senado, em relação à eutanásia com a possibilidade do juiz não aplicar a pena”.

Outros países

Estudiosos avaliam, no entanto, que o crescimento do número de idosos (pessoas acima de 65 anos representam 10,9% da população) e a evolução das tecnologias que mantêm pessoas vivas em situações irreversíveis devem tornar as discussões sobre o tema mais recorrentes.

Garrafa afirma que as ações de cuidados paliativos para pessoas com doenças avançadas, com respeito à dignidade do paciente, têm sido positivas. O professor cita que nos estudos de mestrado e doutorado em bioética na Universidade de Brasília, a terminalidade da vida tem sido um tema de fundamental interesse e que trabalha com classificações.

“A distanásia, por exemplo, é o prolongamento artificial da vida sem necessidade. É uma vida que vai ter muita dor. O suicídio assistido é uma forma que vem sendo discutida e implantada em países europeus, como Holanda, Bélgica e Suíça”. Ele diz que nesses países os casos são cuidadosamente analisados.

A professora Maria Júlia Kovács acrescenta que países da América do Norte e também do Sul têm outras resoluções sobre o assunto. “Os europeus estão mais avançados e a América do Norte também. Seja nos Estados Unidos, com suicídio assistido, seja no Canadá, com morte assistida. Aqui na América Latina, a Colômbia, Uruguai e Chile estão discutindo a questão”.

Ela identifica que uma eventual legislação poderia abordar a morte assistida, como no caso do Antônio Cícero. “Eu acho que o primeiro passo que o Brasil deveria dar seria discutir o tema”.

Para ela, os cuidados paliativos favorecem uma morte digna. “Outra possibilidade de morte digna no nosso país são as diretivas antecipadas de vontade em que a pessoa expressa aqueles tratamentos que ela gostaria que tivesse no final da vida e principalmente os que ela não gostaria”. Ela explica que essas diretivas são chanceladas como resolução pelo Conselho Federal de Medicina.

Além das questões morais

Os pesquisadores entendem que se trata de tema que precisa ser abordado desde a escola de alguma forma, incluindo mais atenção por parte da imprensa. Aline Albuquerque explica que a universidade tem levado o tema para o campo da educação e pondera que se trata de assunto complexo e que requer olhar amplo. Segundo ela, a inclusão do Sistema Único de Saúde (SUS) no debate é importante.

“As pessoas podem falar em descriminalizar (a prática da eutanásia), mas deve-se observar que seria necessário, por exemplo, estruturar o sistema de saúde pública para isso”. Para ela, há também um imaginário infundado que uma eventual aprovação da eutanásia possibilitaria que o procedimento fosse realizado em casa. “Isso não existe. Elas têm que ser assistidas por profissionais de saúde”.


O poeta e letrista Antonio Cícero decidiu pela eutanásia após se deparar com o avanço do Alzheimer. "Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade". Foto: ABL/Divulgação

Volnei Garrafa, que foi o delegado brasileiro em 2005 para a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, elaborada pela Unesco e aprovada por 191 países, diz que o documento enfatiza o respeito à dignidade humana e aos direitos humanos. “É difícil, porque muitas vezes as decisões a serem tomadas são duras, como é o caso de interromper uma vida”. Ele lamenta que o Brasil até hoje não tem um Conselho Nacional de Bioética que poderia colaborar para o assessoramento e formulações de um regramento sobre o tema.

Sociedade plural

O tabu da morte está ligado ainda ao fato que os últimos momentos da vida passaram, em geral, a ser uma experiência em hospitais. Antes, as pessoas morriam mais em casa e as crianças viam as despedidas.

A professora de direito avalia que o tema da morte não está enfatizado nem na formação dos profissionais de saúde. “Em razão disso, muitos procedimentos que são infrutíferos ocorrem porque os profissionais não sabem lidar com a morte e com a perda dos pacientes”, explica.

Aline Albuquerque contextualiza que o Brasil vive hoje uma sociedade plural, também do ponto de vista moral. Uma sociedade que tornou a morte um tabu, independente de religião, e que traz uma formação de pensamento na sacralidade da vida porque seria concebida por Deus. Por outro lado, há outro senso de que a vida é de autonomia do indivíduo. “É muito difícil o Estado tomar uma posição diante de um desacordo moral tão complexo”.

Agência Brasil

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