Famílias não conseguem matricular suas crianças de 0 a 3 anos em creches públicas, mesmo em municípios com polpuda dotação orçamentária. Os indicadores de obesidade infantil revelam que o fenômeno tem características epidêmicas. Mais da metade das pessoas acima de 18 anos não completou a educação básica. Parte expressiva da população de rua é composta por crianças e adolescentes, que não frequentam a escola regularmente. Taxas de violência doméstica contra crianças e adolescentes seguem sem dar sinais de arrefecimento. A crueldade do trabalho escravo ou infantil ainda se faz presente em certas empresas, algumas delas beneficiárias de isenções fiscais concedidas pelo poder público. Adolescentes internados em unidades do sistema dito “socioeducativo”, verdadeiras masmorras infanto-juvenis, são tratados como rebotalho da sociedade, que sequer é capaz de assegurar processos efetivos de ressocialização. Jovens negros, pobres e favelados são presos com base em frágil dispositivo de reconhecimento fotográfico ou, pior ainda, são assassinados com frequência pelo crime ou pela polícia.
Trata-se de sombrio mosaico que revela o desprezo de parcela significativa da sociedade brasileira em relação aos direitos de crianças e adolescentes, notadamente daqueles de origem popular. Ora, é exatamente esse extrato da infância e da adolescência, submetido a situações de extrema vulnerabilidade, que mais precisa da presença do Estado, de suas políticas e das garantias que lhe podem ser asseguradas, na forma da lei.
Para enfrentar quadro tão desafiador, o Brasil decidiu, na esteira do processo que culminou com a promulgação da Constituição de 1988, adotar potente legislação infraconstitucional: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Na data de sanção, é quase uma “Bastilha”, mas seu caráter revolucionário, no que se refere à garantia de proteção integral à criança e ao adolescente, infelizmente ainda não se concretizou. Mais de 30 anos depois de sua entrada em vigor, quem se preocupa com a observância dos dispositivos fixados no ECA? Quem fiscaliza o seu cumprimento? Quem é efetivamente punido por descumpri-lo?
Em decorrência desse quadro, os conselhos de direitos da área da infância e da adolescência são frequentemente desconsiderados, inclusive o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), criado por lei federal, no ano de 1991. Em sucessivas resoluções, desde 2010, o CONANDA fixou o parâmetro de um conselho tutelar para cada cem mil habitantes, olimpicamente desrespeitado por inúmeros municípios brasileiros, inclusive por municipalidades que dispõem de recursos para fazê-lo. A propósito, nada acontece com prefeitos que tratam com indiferença ou desprezo aquele parâmetro. Não é apenas grave o descumprimento de resoluções do CONANDA, mas a demonstração de indiferença quanto ao seu conteúdo, que versa sobre proteção e garantia de direitos de crianças e adolescentes. A gravidade do fato é sobre isso! Sem falar nas condições, no mais das vezes, inadequadas para o funcionamento dos conselhos tutelares, responsabilidade do poder executivo municipal: faltam sedes dignas com locais para atendimento privado de crianças, adolescentes e seus responsáveis; insumos básicos como papel, computador, conexão à internet; veículos em bom estado para as diligências e atendimentos de campo, que constituem parte expressiva da agenda cotidiana de conselheiros e conselheiras tutelares. Além da questão de seus vencimentos, que deveriam estar à altura da elevada responsabilidade de que estão investidos, cumprindo mandato em nome do conjunto da sociedade.
É nesse contexto que chegaremos, no próximo dia 1º de outubro, a mais uma eleição para renovação dos conselhos tutelares nos municípios brasileiros e no Distrito Federal. Neste pleito, o exercício do voto é facultativo, fator que, somado ao descaso contumaz que o Brasil vem demonstrando em relação aos direitos de crianças e adolescentes, tem resultado em pífia participação de eleitores. É uma lástima, pois o conselheiro tutelar exerce uma das funções públicas mais importantes, no âmbito do Estado Democrático de Direito. Além do primado do direito, absolutamente fundamental, tem o caráter humanitário desse debate, que se refere à proteção de vulneráveis, no caso, crianças e adolescentes, especialmente os mais pobres, diretriz a ser valorizada em qualquer sociedade com padrões minimamente solidários e igualitários. E mais: ainda tem a visão estratégica do futuro. Com efeito, se deixamos de lado parcela significativa de crianças e adolescentes, preteridos e abandonados à própria sorte, que futuro podemos imaginar, não apenas para eles, mas para toda a coletividade?
Pouco a pouco, o desinteresse da sociedade abriu espaço para desvirtuamentos: disputas partidárias e religiosas passaram a falar mais alto na escolha de conselheiros tutelares. Ocorre que os conselhos tutelares são órgãos de Estado, laicos, não professam fé religiosa nem ideologia partidária: nem à direita nem à esquerda; nem católica nem neopentecostal. Essa distorção por vezes conduz a práticas de campanha e de aliciamento de eleitores condenáveis, que adulteram o significado da própria eleição e o sentido da representação exercida pelo conselheiro.
Por isso, no próximo domingo (1° de outubro), se fizer sol, adie um pouco aquele mergulho na praia e passe antes no local de votação. Ou volte mais cedo, a tempo de pegar as seções eleitorais ainda abertas. Pesquise sobre candidatos e candidatas da sua região de residência. E confira onde está a sua seção eleitoral. Não é um favor votar na eleição para o conselho tutelar, mas um direito a ser exercido. E um dever cívico e civilizatório. Afinal, se não cuidamos de nossas crianças e adolescentes, o que podemos esperar do futuro?