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“Nunca Maioridade”: o corpo histórico da Mãe na periferia do Rio de Janeiro

Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Professor do Departamento de Estética e Teoria do Teatro da UNIRIO

Em 11/08/2023 às 13:50:37

Momento grávido:

Isadora Duncan, mulher branca e norte-americana, criou a coreografia “A Mãe” na sequência da morte trágica de seus dois filhos e da perda de um terceiro filho, que morreu assim que nasceu. Trata-se de uma dança em uma diagonal do palco, na qual a bailarina parece estar acariciando, ninando e, aos poucos, a criança imaginária vai virando chão, até que Isadora termina com um gesto de adeus. A partir de um infortúnio pessoal, Isadora evoca todas as mães que perderam seus filhos.


Taís Feijão dá voz a uma das mães que perdeu seu filho antes dos 18 anos. Foto: Reprodução Instagram

No espetáculo “Nunca Maioridade”, em cartaz no Sesc Copacabana, fala-se (e se canta e se dança e se toca) a respeito de filhos mortos antes da idade de 18 anos. Aqui, porém, a separação entre mãe e filho se dá num evento coletivo e histórico: são muitas crianças mortas nas periferias do Rio de Janeiro e, mais grave: não se trata de uma questão pessoal de um policial contra uma criança específica, mas de uma desumanização daqueles corpos, mata-se por nada. Se, em 1913, Isadora Duncan acolhe seus filhos afogados nas águas do rio Sena, no Sesc ouvimos o depoimento de uma mulher que acolhe seu filho abandonado sobre a poça de seu sangue. Corpos molhados em líquidos diferentes.

Em “Nunca Maioridade”, portanto, os gestos de acolhimento da mãe para o filho se transformam em uma travessia do espaço cênico, sem gestual de ninar. O corpo de Maria da Lapa se arrasta por um corredor estreito atrás das cadeiras da plateia, enquanto Tais Feijão canta que é preciso ser forte na dor. Se, por um lado, há uma grande solidão nessa ausência do corpo do filho morto, por outro, a presença de outra mulher preta acalenta, dá suporte, evidencia que aquela mãe não está sozinha em seu luto. Esse momento sintetiza bastante o projeto. O “momento grávido”.

Lá atrás, no século XVIII, Denis Diderot pensou o “quadro”, assim como Lessing pensou o “momento pregnante”: ambos se referem ao ápice de um instante que resume, em imagem, o acontecimento inteiro (como uma fotografia que se fixa na percepção do espectador). Eisenstein e Brecht, além de vários outros artistas, se utilizaram desse momento pregnante em suas criações. O interessante é que “pregnante”, significa “grávido”, e, com isso, voltamos às mães de “Nunca Maioridade”.

A travessia da mãe nas costas do público é, definitivamente, um instante grávido. Trata-se do momento mais evidente de mudança espacial no espetáculo. O primeiro código dado ao espectador (de que o espaço cênico é o corredor central) é subvertido. O espaço da cena é transferido para as costas do espectador. Ele sente a presença arquetípica da “dolorosa”: a mãe que chora a morte do filho, que é uma das bases do Cristianismo. Quando, mais tarde, Maria da Lapa puxa espectadoras para dentro da cena, o acontecimento está além da plateia. Aqui, atrás do público, o acontecimento está aquém. Aquém porque está atrás e, por isso, contém uma subtração: a cena não acontece “diante”, ela nos força a contorcer nosso corpo para ver a passagem daquele corpo de mãe, do qual subtraíram uma parte. Do qual, não apenas indivíduos, mas o Estado, subtraiu uma parte.

Camadas de corpos:

A exploração dos recursos cênicos é bastante audaciosa nesse espetáculo e será tratada ao longo de todo esse texto. Seria interessante começar, entretanto, pelas imagens de corpos. Além da presença física de Tais Feijão e Maria da Lapa, seus corpos (re)aparecem nas projeções das duas extremidades do corredor central. Em seguida, também na projeção, mulheres que dão depoimentos sobre seus filhos surgem para dar corpo às vozes que já estávamos ouvindo. Um corpo-imagem que traz presença para a voz. Por fim, os vídeos trazem corpos vivos de crianças. São camadas sobrepostas de presença e ausência que desorientam o espectador.

Depoimentos em cena. Dança em cena. Música ao vivo em cena. São camadas de corpos femininos. O espectador de “Nunca Maioridade” tem que lidar com essas sucessivas camadas de corpos presentes e ausentes. Em primeiro lugar, as artistas em cena dialogando com corpos “virtuais” das mães que dão depoimento. Em outra camada, filhos ausentes fisicamente, mas que estarão presentes eternamente na vida dessas mães. Para além disso, corpos presentes na cena e corpos presentes na periferia carioca. E, ainda além, um corpo-tempo, presente na música.

Como efeito da exploração dessas camadas de corpos, o espectador precisa trabalhar em diferentes camadas de recepção: a cena, a dança, a música, o cinema-documento, a vídeoarte e a sociologia (importante mencionar a pesquisa de Natália Stoco).

O corpo vivo em cena:

Em relação à performance das duas artistas dentro da cena, o espetáculo se inicia com gestos e cantos que expressam a delicadeza e o conforto materno. Inevitavelmente, esses corpos passam a expressar um incômodo de mulheres que não podem usufruir integralmente do esplendor da maternidade por medo de colocar no mundo uma criança no contexto social da periferia carioca/fluminense. O gestual de braços que acolhem transforma-se em músculos estressados. O vocalize suave transforma-se em grito que arranha a garganta.

Maria da Lapa, em boa parte do espetáculo, trabalha minuciosamente as possibilidades de movimento da coluna, de onde é reverberado movimento para o resto do corpo, com destaque para as mãos. Suas mãos ora conduzem os membros e compartimentos musculares, ora chamam o olho do público para pequenos detalhes gestuais de dedos. Em outro momento, trabalha as espirais e rolamentos, acionando radicalmente seu fôlego. Quase no fim, um canto e uma dança de resistência, de vida. Eis que, então, as pernas ganham protagonismo, vivas, selvagens, acordando as energias da terra e as entidades femininas da água. E um sorriso é esboçado no rosto.

É importante chamar atenção para o corpo de Tais Feijão. É bastante recorrente que se use musicistas em cena apenas com seus talentos técnicos, num canto reservado, evitando que experimentem as variadas dimensões cênicas. Feijão, aqui, está no palco tanto quanto sua companheira bailarina. Além disso, oferece uma sucessão de recursos musicais: corda, teclado, percussão, voz e beat box.

Ambos os corpos, sob os refletores, tornam-se esculturas e a iluminação explora, no melhor sentido, cada volume, reentrância e brilho da pele. A parceria de Feijão e Da Lapa evidencia que, numa cidade que desumaniza corpos periféricos e pretos, a maternidade está, também, em uma dimensão de medo e revolta. Mas, igualmente, apontam a vida, a alegria do corpo vivo e a luta de resistência.

Desdobramentos da encenação:

O conjunto da encenação (Carlos Laerte e Igor Corrêa) não pode ser desconectado de tudo o que já foi dito e o que virá a seguir. Trata-se de um projeto audacioso e bastante trabalhoso porque solicita muitos profissionais, posto que são muitas mídias juntas ao mesmo tempo.

O espaço cênico (Wanderley Gomes) presenteia a encenação com uma sucessão de formatos: além dos já mencionados corredor central e corredor atrás da plateia, o espaço da plateia é explorado no momento em que se convidam espectadores para a cena e Maria da Lapa dança com essas presenças. Indo adiante, um refletor acende e foca em um espectador sentado na arquibancada e a bailarina interage com ele, com o mesmo repertório gestual com o qual interagiu, antes, com as espectadoras retiradas do espaço da plateia. Em adição, as duas artistas invadem o espaço da plateia e andam entre os espectadores: a arquibancada vira espaço cênico.

O figurino, também de Gomes, dialoga por contraste. Um corpo é revestido com malhas sóbrias e lisas, com modelagem minimalista, lembrando inúmeras montagens de tragédias gregas: uma “mulher de Atenas”. O outro corpo tem modelagem, costura, estampa, duas cores, franzidos, silhueta bem brasileira: uma “mulher do fim do mundo”.

O som (Bernardo Gebara) é um elemento espacial, tanto quanto o cenário. As vozes e passos das crianças compõem a paisagem sonora do espectador, equivalendo a um video mapping, em forma de som.

A luz (Fernanda e Tiago Mantovani), para além do que já foi mencionado em relação aos corpos das performers, nos mostra fragmentos de espaço, fragmentos de infância. É uma luz bastante afetiva.

Para além da apresentação:

É necessário comentar um espetáculo suplementar. O teatro não repete o mesmo, é sempre a repetição da diferença, quer dizer, cada noite é um outro espetáculo. Quis o destino que eu estivesse no mesmo dia em que as mães reais (aquelas que dão seus depoimentos sobre seus filhos assassinados, no vídeo projetado) estavam na plateia. Os aplausos trazem o suposto fim do espetáculo, mas, neste dia específico, houve um outro espetáculo, cheio de horror e beleza: as mães reais estavam presentes.

Tal presença fez de “Nunca Maioridade” um outro espetáculo porque, de fato, se deu algo ali. A presença das mães é, também, um acontecimento cênico. Não vou comentar a reação emocional que isso ocasionou na plateia, porque ela é evidente. Mas quero indicar as muitas referências artísticas brasileiras com as quais essa presença dialogou. Destaco que uma delas trouxe um enorme cartaz com as fotos dos menores assassinados e o estendeu no palco, ali onde as artistas pisaram, dançaram e cantaram. Aquelas crianças e adolescentes enfileirados no chão remeteram, imediatamente, à performance “Ginástica da pele”, de Berna Reale (artista paraense com projeção nacional e internacional). Nas ruas de Belém do Pará, jovens que já foram abordados pela polícia estão enfileirados e devem reagir aos comandos de uma policial com um apito. Da visão de um drone, é possível ver a palheta de cor dessas peles: os primeiros são pretos retintos, seguidos de tons que vão clareando, até chegar em algumas peles brancas. Durante a criação, um dos jovens foi assassinado.

O acontecimento, no Sesc Copacabana, foi único e muito poderoso. O espetáculo segue em cartaz de 5ª a domingo, sempre às 20:30, até 20 de agosto de 2023.


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