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Teatralidade, fragmento, abstração: Focus dança Piazzolla

Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Professor do Departamento de Estética e Teoria do Teatro da UNIRIO

Em 02/12/2023 às 15:49:37

Uma silhueta humana masculina em pé no centro do palco, iluminada por um foco solar vindo da rotunda: um corpo, só, em cena. Um corpo humano feminino sendo atravessado por uma guilhotina de correntes no fundo do palco: um corpo, só, em cena. Essas duas imagens que se complementam, funcionam como dois vetores opostos, que tencionam uma corda do princípio ao fim do espetáculo "Carlota – Focus dança Piazzolla".

Antes de um espetáculo começar, olhando cartazes e pequenos teasers na internet, conseguimos acessar a primeira camada do campo perceptivo, as referências mais fáceis que transitam em nossas cavidades biográficas. Para mim: duplas. E, em seguida, conexão entre troncos e peitorais. A primeira imagem do espetáculo quebra com essa expectativa do senso comum. O espectador tem diante de si um corpo só, tendo que lutar contra todas as regras do espaço cênico sozinho. As duas imagens fazem pensar no nome da companhia de dança.

Em consonância com a dança-tango, o espetáculo trabalha sobre o diálogo entre corpos e, em sua revisitação do tango pela dança contemporânea, trabalha sobre o diálogo do corpo consigo mesmo. Nesse texto que se constrói agora, vou tratar dos seguintes elementos verificados na apresentação do dia 01/12/2023: teatralidade, fragmento, abstração.


Teatralidade

Astor Pantaleón Piazzolla, um nome que traz consigo uma referência ao personagem Pantaleão, da commedia dell’arte, uma das bases do teatro popular. A Focus, sobretudo na última década, tem assumido uma teatralidade contemporânea nas encenações. Talvez em "As canções que você dançou para mim" isso tenha sido mais iluminado para o espectador do que nas criações anteriores.

Destaco três momentos dessa teatralidade em "Carlota". O primeiro, e mais evidente, é o jogo de dublagem que fazem os bailarinos com o poema "El Tango", de Jorge Luís Borges: ora em sincronia, ora deixando de dublar, ora insistindo sobre uma palavra. Trata-se de um instante de virada no espetáculo. O espectador é obrigado a se desgarrar da lógica da circularidade, a qual nos induz à cenografia e os cones construídos pelos focos de luz, e passa a lidar com a lógica do fragmento, sobre a qual falaremos mais para frente.

O segundo, menos evidente porque não se baseia em expressões faciais ou traduções de sentimentos, acontece quando todo o elenco suspende o bailarino nitidamente mais pesado e seu corpo parece levitar como uma névoa sem peso. A teatralidade se dá não apenas pelo efeito de leveza, mas, sobretudo, pelo trabalho coletivo. Em nosso contexto histórico neoliberal, sempre que se coloca em evidência o grupo de artistas trabalhando juntos em cena, em contraponto com o foco do indivíduo, atinge-se algum nível de teatralidade. Isso se dá porque o trabalho coletivo não é mais o terreno onde o cidadão está habituado a agir, visto que temos priorizado a tela do celular e expressões mais individualizadas.

Finalmente, o terceiro momento cuja teatralidade pode ser destacada, é aquele em que um corpo está estendido ao chão, na metade esquerda da cena, enquanto um pas-de-deux se desenvolve na metade direita. O corpo humano estendido no solo remete à queda e à morte, que são dimensões sempre presentes no teatro e em qualquer arte da cena. Entrar em cena é se colocar “no outro lado”, no lado da máscara, do boneco, do objeto observado pelo espectador. Mesmo em performances nas quais o espectador é trazido para o palco para compor a obra cênica, ainda assim existe uma dimensão extracotidiana no artista, dimensão “do além”. Portanto, uma dimensão de morte. Vale lembrar, ainda, que o tango (talvez) mais famoso de Piazzolla foi composto no leito de morte de seu pai. Para além disso, o corpo feminino estendido no chão (em atrito com uma dupla dançando ao lado) redimensiona teatralmente nossa relação com as mulheres (de todos os gêneros).

Em adição à questão da teatralidade, há uma expressividade que precisa ser destacada na relação com Piazzolla. Este último foi algumas vezes acusado de deturpar a essência do tango tradicional com influências do jazz. Há, dessa maneira, uma expressão jazzística em seu bandonéon, assim como há uma expressão jazzística na formação da Focus. Essa consonância se estabelece em diversos momentos em que se percebe, na qualidade do movimento, uma expressividade do jazz.


Fragmento

Comecemos pelo espaço, porque ele é uma dimensão muito concreta e precisa. O primeiro contato do espectador com "Carlota" é por meio do cenário: uma forma circular vinda do urdimento. Aos poucos, nos damos conta de que não é uma forma circular em sua unidade, mas se trata de fragmentos de círculo, curvas cortadas. É no olho do espectador que esses fragmentos ganharão uma impressão de continuidade.

De maneira análoga, mais para o fim do acontecimento cênico, dois ou três bailarinos entram com uma saia fragmentada, uma saia que não conclui a circularidade da cintura. O olho do espectador é conduzido diretamente ao círculo suspenso do cenário, sobretudo porque já houve diversas saias “completas” em cena, anteriormente.

Na dimensão temática, o fragmento também encontra lugar. O corpo que canta Piazzolla é um corpo urbano. Mais: um corpo da metrópole latinoamericana que, ao longo do século XX, buscou desenfreadamente sua industrialização. Não temos, assim, um corpo em diálogo com um espaço urbano coerente, que teve tempo de observar uma revolução burguesa, como em muitos dos países do hemisfério norte. Em cena, a justaposição desse corpo porteño com uma companhia de dança da metrópole carioca. Não sei se todos os bailarinos nasceram no Rio de Janeiro, mas acredito que alguns venham enriquecer esse coletivo com corpos de outros estados brasileiros.

Imagino que, assim como o(s) samba(s), o tango não exista como unidade, mas em uma diversidade de usos e origens. As manifestações culturais da América colonizada encontram uma potência na transformação profanadora das tradições europeias. Entre historiadores do tango, há os que afirmam uma origem suburbana e, mesmo, rural; por outro lado, há os que sustentam uma origem urbana e de bailarinos de famílias tradicionais. Essa discordância indica que música e dança vão se metamorfoseando e gerando o que chega como “tango” para Piazzolla, que viveu entre 1921 e 1992.

A lógica do fragmento também se encontra nas escolhas gestuais que Alex Neoral oferece a cada bailarino-criador. No espetáculo, os artistas passam por diferentes atitudes gestuais, mas parecem se aprofundar, cada um, no que trazem de mais potente: extensão de coluna, força, aterramento, extensão de virilha, equilíbrio do próprio corpo e sustentação do outro. Abro um parêntese para essa característica que, ainda que mais evidente em certos bailarinos, é trabalhada por todos. Para o tango, a relação frontal é bastante importante e revela uma confiança no outro. Dificilmente, numa dupla que dança, um peitoral “esquece” que o outro existe. Aqui, não se trata de um espetáculo tradicional de tango, mas de dança contemporânea e essa sustentação está presente em todos os fragmentos de coreografia. Não se trata apenas do equilíbrio do próprio corpo, mas de uma rede de sustentação do outro, do equilíbrio de outro corpo.

Abstração

Criar nos limites das artes pode significar um exercício de tradução de uma linguagem a outra, mas pode ser uma paisagem cujo horizonte vai mais longe. Uma música composta a partir de uma tela pictórica, um poema escrito do contato com um cantor, uma instalação levantada no diálogo com uma dramaturgia; podem significar o atravessamento do terreno da abstração. Não se trata apenas de conduzir o sentido de uma expressão a outras, mas de deixar estilhaçar uma linguagem para que ela tome forma em outro terreno, regido por outras regras. Para a criação coreográfica de "Carlota", então, foi necessário abandonar o que a música de Piazzolla oferecia de mais figurativo, e olhar para sua estrutura abstrata.

Para não descansar na coreografia, percebo a abstração na criação dos figurinos. De uma forma minimalista de segundas-peles e transparências (com destaque para a beleza plástica de um azul noturno valorizado pela iluminação), a indumentária vai adquirindo desenhos, pinturas e aquareladas. Há um momento, inclusive, que os corpos parecem rasgos de uma tela de Kandinsky (talvez o mesmo momento da saia fragmentada mencionada acima).

Os signos gráficos vão sendo substituídos constantemente e essa dinâmica leva a um outro nível de abstração. Há tantas trocas de figurino que é possível imaginar que a coxia seja um espetáculo à parte, bastante coreografado. Mereceria um filme apenas dos bastidores.

O traço se transforma em mancha e a primeira aparição de uma saia longa se dá em um ambiente bastante noturno. A iluminação estabelece parceira radical com o figurino: a luz saindo pelos furos do fundo do refletor promove manchas nas correntes que dialogam com as manchas aquareladas da saia. A bailarina, no centro da cena, levanta um dévéloppé à la seconde e o sustenta durante alguns segundos. Sua perna, apontada para o urdimento, cria a ligação material entre as manchas do refletor e as da saia.

Apesar de tudo o que foi dito sobre cada elemento da encenação, sempre a matéria mais básica da cena é o artista e é necessário destacar a entrega dos bailarinos. Na cena que antecede a imagem final, todos estão dançando face-a-face com o espectador, a luz está aberta e podemos ver o trabalho, o fôlego, os músculos e a expressão de cada um. A trajetória do espetáculo está ali. A trajetória da companhia está.

Um parágrafo para Bianca Lopes, Carolina de Sá, Cosme Gregory, Iure de Castro, Letícia Tavares, Lindemberg Mallí, Paloma Tauffer, Vanessa Fonseca e Wesley Tavares.

Ficha Técnica

Direção Artística e Coreografia: Alex Neoral

Direção de Produção e Gestão: Tatiana Garcias

Assistente Direção e Ensaiadora: Luisa Vilar

Produção Executiva: Giselli Ribeiro

Coordenador de Projeto: Taísa Diniz

Cenógrafa: Natália Lana

Figurinos: Maria Osório

Confecção de Figurinos: Jacira Garcias e Lucas Pereira

Iluminação: Anderson Ratto

Direção Palco: Pedro Júnior / Paulo Barbeto

Dançando com: Bianca Lopes, Carolina de Sá, Cosme Gregory, Iure de Castro, Leticia Tavares, Lindemberg Mallí, Paloma Tauffer, Vanessa Fonseca e Wesley Tavares.


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