Depois das máquinas, da reprodutibilidade da imprensa, dos cortes do cinema, dos arbustos esculpidos do jardim neoclássico, e da inteligência artificial, o que resta de humano é a vulnerabilidade, a imprecisão e a possibilidade da queda e da dor.
A inteligência artificial não sente o tremor diante do diagnóstico médico e da possibilidade de fim. A máquina humana é vulnerável.
Nos últimos meses, não apenas para os que seguem páginas relacionadas à cantora Madonna, tem sido possível ler uma tsunami de comentários negativos a respeito tanto de sua aparência física, quanto da performance técnica da pop star, em turnê com seu show “The Celebration Tour”. Qual será o real incômodo? Como fã, fui conferir ao vivo, e é desse mirante que falo.
Brevíssimo elogio da traição
A proposta da coluna "Dança Além das Fronteiras", do Portal Eu, Rio!, é indicar olhares sobre o corpo em espetáculos em cartaz no Rio de Janeiro. Dessa maneira, não caberia discutir um produto artístico apresentado fora do território fluminense, menos ainda em solo estrangeiro. Por outro lado, a repetição exige a diferença. Portanto, em arte, é incontornável trair a regra. Que delícia trair!
Para além disso, foi anunciado pelos jornais e sites mais conhecidos do país que Madonna apresentará, gratuitamente, nas areias de Copacabana sua “Celebration Tour”. Nem a artista, nem o patrocinador anunciaram oficialmente em suas páginas. Contudo, se isso se confirmar, esse texto fica validado dentro da proposta original da plataforma porque o leitor poderá conferir o espetáculo no mês de maio em solo carioca.
Desvio (nada) aleatório no caminho do show
Para pensar a vulnerabilidade no corpo da Rainha do Pop, é preciso fazer um rápido desvio por outros espetáculos que, possivelmente, podem ter direcionado meu olhar a uma discussão sobre a proximidade e o afastamento dentro da sala de espetáculo. Quando assisti à “Celebration Tour” no Kia Forum (Los Angeles), no dia 4 de março de 2024, tinha acabado de passar por uma sequência de cinco espetáculos em Nova Iorque: dois musicais da Broadway, uma performance, uma peça-contemporânea-entre-teatro-e-performance e uma peça contemporânea mais tradicional e calcada na dramaturgia. Nessas cinco experiências, minhas posições geográficas na plateia potencializaram a percepção sobre o erro: tanto quando era imperceptível, quanto quando era evidente.
A primeira foi “MJ, the musical”, grande musical sobre a vida de Michael Jackson. Por um problema no site de compras, me colocaram na poltrona A1, quer dizer, na primeira fileira, com os pés tocando o proscênio. Era impossível, ao meu olhar, dar conta da globalidade da encenação, o que me conduziu a perceber os detalhes mais ínfimos e íntimos. Foi um susto ver os bailarinos e cantores de tão perto, seus pés procurando a marca, o olhar buscando o foco, mínimas imprecisões incapturáveis para o espectador a partir da 3ª ou 4ª fila. Eles são pessoas de verdade! Eles se confundem! Nunca imaginei.
O maior sucesso dos últimos anos é “Hamilton” e eu o assisti do meio da sala, quer dizer, pude ter a noção do palco, do grupo de atores, da encenação. Dessa maneira, tive a impressão de que não há erros, tudo está milimetricamente ensaiado e reproduzido a cada dia. Entretanto, depois da experiência de “MJ”, fiquei me perguntando se, novamente sentado na poltrona A1, veria o olharzinho humano de insegurança. Aposto que sim, por mais treinados que os artistas de “Hamilton” sejam.
Na performance “METCH”, do búlgaro Ivo Dimchev, no La Mama Experimental Theatre Club (sala histórica que carrega ao longo das décadas a fama de avant-garde), sentei-me na última fila. Mas ali já não existia a possibilidade da perfeição, trata-se de um performer que trabalha sobre o escárnio e a sujeira, com improvisos e que leva parte do público para a cena. Mesmo estando na última fila, tudo o que existia era a possibilidade de erro.
Em “Existentialism”, peça que também vi no La Mama, da famosa diretora Anne Bogart, me sentei novamente na última fileira, mas era uma encenação bem mais limpa, com marcações e palavras bem cuidadas. O que colocava a vulnerabilidade em destaque era a idade do ator e da atriz, ambos com mais de 60 ou, mesmo, 70 anos. Os corpos dançavam, andavam, gesticulavam, falavam e cantavam. Tudo preenchido por uma fragilidade comovente.
Por fim, Cynhtia Nixon (famosa pela série “Sex And The City”) voltou a trabalhar com o New Group e apresentou a peça “The Seven Year Disappear”. Onde sentei? Primeira fileira. Recebi os cuspes de Nixon logo na primeira cena, já que ela começa sentada no proscênio. Seu companheiro de cena estava com o nariz entupido. Trata-se de uma peça bem ensaiada, tudo no timming, mas a primeira fila é implacável. O olhar dos atores cruza com o seu e logo é desviado, há aquele instante humano de vulnerabilidade.
Nutrido de formas e pensamentos, depois dessas manifestações cênicas, saltei da costa leste para a oeste e parei em Los Angeles, no Kia Forum. Os figurinos dos fãs, cada um fazendo um cosplay de alguma fase da trajetória de Madonna, evidenciavam o desejo de cristalizar a diva pop em determinada época, sobretudo entre 1983 e 2006, quer dizer, as fases mais vigorosas de sua juventude. São apelos angustiados contra a impermanência da forma. No palco do Kia, quem se materializa, no entanto, é a mulher de 65 anos, saída de um coma induzido causado por infeção de uma superbactéria.
Encontro do corpo de 1990 e de 2024
Essas fases do que parece ser considerado o auge da trajetória de Madonna, exibidas nos figurinos dos fãs, reaparecem no palco, redimensionadas nos corpos de bailarinas e bailarinos. Eles vestem máscaras de silicones nos tons de suas peles que retiram suas expressões individuais e os transformam em manequins vivos, para vestirem figurinos que sintetizam um momento icônico imediatamente reconhecível. A forma cristalizada ali está, porém num outro corpo. A Madonna de 65 anos olha para esses corpos, conversa com eles, manipula seus gestos, dança junto.
O momento mais fotografável, aquele que mais rapidamente é capturado nas camadas perceptivas do espectador, é o encontro da Madonna atual com seu duplo mascarado, vestido de “Like a Virgin” (na versão da tournê “Blond Ambition”, de 1990). Essa turnê teria tido um enorme patrocínio da gigantesca empresa Pepsi, que retirou seu apoio à cantora, devido à polêmica do videoclipe “Like a Prayer” (1989). Efeito reverso: tornou-se um trampolim que levou a cantora a patamares muito mais altos do que estava. Ao invés de fugir da controvérsia, Madonna performou (na turnê de 90) uma cena de masturbação em “Like a Virgin”, seguida de uma voz off “vinda do além” que dizia “God!” e introduzia o número “religioso” de “Like a Prayer”. Aquele corpo jovem de Madonna era atravessado por milhões de vetores, em 1990: as culturas, o dinheiro, os cancelamentos avant la lettre, a influência.
No palco, em 2024, dessa jovem Madonna resta uma representação quase morta, coberta por uma máscara de silicone bege. Ela é reavivada pela mulher de 65, que se põe à sua frente e a guia numa rápida coreografia, com o mesmo gestual do show de 1990, ao som da introdução de “Papa don’t preach”. Por fim, a jovem mascarada abraça a sexagenária e ambas deitam na grande cama vermelha de “Like a Virgin”, e ali ficam um tempo, deitadas e abraçadas. Isso é trabalho de corpo, é coreografia, é fragmento de movimento registrado na cavidade biográfica do espectador.
Acrescento que não é por um acaso que esse é o momento mais fotográfico do espetáculo, há uma preparação cênica para que ele aconteça. Madonna abandona uma coreografia coletiva (a mais precisa do show e a qual me refiro no próximo subtítulo) e olha para seu lado esquerdo, como uma epifania. Ela se vê. Ali está, sozinha (em contraste com o coletivo de bailarinos que a rodeiam), a jovem Madonna atingida por tantos vetores, na cama vermelha. Madonna atual vai deixando a coreografia, como hipnotizada, na direção de sua representação mascarada, qual uma Bela Adormecida encontrando a roca envenenada. E o encontro acarreta, como no conto de fadas, um sono profundo na cama vermelha. Para o espectador que viveu a era “Blond Ambition” é profundamente emocionante.
Contágio de vulnerabilidade
A vulnerabilidade do título aparece justamente porque é um trabalho cuidadoso de precisão e é nesse mesmo bloco do show que esse contraste mais se torna agudo, sobretudo na coreografia de “Erotica”. Três ringues de box aparecem no palco e, no ringue central, seis homens (ou corpos que o senso comum reconhece como “homem”), milimetricamente sincronizados, dançam com gestos de golpes de luta, porém com luvas de boxe cobertas de strass (uma versão marcial das inesquecíveis luvas de Michael Jackson). Os golpes são secos e precisos ao extremo, parecem um só corpo esquartejado em pequenos corpos.
Não se pode recalcar que “Erotica” é a música-título de um álbum (de 1992). Por isso, entre os fãs, muitos usam a expressão “a era Erotica”. Pode parecer, para os mais jovens, que se trata apenas de uma fase sexy de Madonna, mas é preciso iluminar algumas referências dessa que foi a “era” mais sombria da rainha do pop. O álbum é lançado no auge das mortes do que se chamava “a epidemia de AIDS”. O sexo gay era proferido como uma danação divina para a geração que estava morrendo, e entendido como um monstro assombroso para a geração que estava começando a pensar a sexualidade. Podendo aderir à cultura conservadora dos Estados Unidos da passagem dos 80’s para os 90’s (e tirar proveito da proteção do governo e de grandes empresas), Madonna toma o sentido oposto, lançando esse álbum, seguido do livro “Sex” e da turnê “The Girlie Show”. Ela comemora a cultura queer num gesto de luta, como os bailarinos lutando box.
“Erotica” é uma luta. Corpos sexualizados lutando para ter prazer. Corpos estigmatizados lutando para viver. Corpos cidadãos lutando por direitos civis, deliberadamente negados pelos governos. Uma luta contra a equivalência entre sexo e sentença de morte.
Voltemos ao show de 2024. Quando Madonna ultrapassa as linhas do ringue (feitas de laser) e invade o espaço dos bailarinos-lutadores, o espectador beira o medo de que ela leve um daqueles socos. Sua movimentação é inevitavelmente menos precisa do que daqueles jovens bailarinos-lutadores, mas é ela quem passa a reger a coreografia, indicando direções e gestuais. Por fim, certa vulnerabilidade passa a contaminar os lutadores, que abandonam a postura “fechada” do box (para proteger o rosto e o peito com os braços) e passam a fazer movimentos ondulantes com os quadris.
Essa proposta de corpo dançante que passa da precisão marcial para a vulnerabilidade da curva e da languidez, dialoga, ainda, com sua referência original, qual seja, a primeira criação coreográfica para a música “Erotica”, na turnê “The Girlie Show” (1993), a primeira trazida ao Brasil pela pop star. Na cena dos anos 90, havia dois boxers lutando, porém enquadrados em uma vitrine suspensa. A cantora não invadia o espaço, ficava orquestrando a cena à distância, com um chicote de domadora de circo. É muito interessante que, hoje, a domadora esqueça um pouco a precisão e, de maneira mais inteligente e sutil, coordene a cena por meio de um contágio. Não se trata do tenebroso contágio viral que estigmatizou os homossexuais na era “Erotica”, mas um contágio de curva e vulnerabilidade. Todos os corpos terminam contagiados.
Corpos (im)precisamente teatrais
A primeira de todas as turnês de Madonna (“Virgin Tour”, 1985) conclui a encenação com um minúsculo esquete teatral. Ela está terminando de cantar “Material Girl” e decide que não é uma garota material e vai arrancando todos os signos de consumismo de seu próprio corpo (colares de pérolas, pulseiras de strass, lenço, etc...). Eis que uma “voz do além” (sim, é recorrente que ela brinque com a voz de Deus) começa a lhe falar e ela responde “Papai, é você?” e a voz do pai “Você pode voltando pra casa agora mesmo, mocinha” e a voz gravada de Madonna pede: “Mas papai, eu tô me divertindo”, e o pai dá o ultimato: “Você ouviu o que eu disse”. Se não fosse uma menina de 20 e poucos anos, eu diria que se trata de um diálogo com a morte imposta por um deus. Mas, para não causar polêmica, vamos ficar com a camada do pai e da filhinha: um ator, muito parecido com o real pai de Madonna, entra no palco e arranca a jovem de lá. Fim, acaba o show assim.
Desde então, interlúdios dialogados, ou rápidas cenas teatrais, podem ser encontradas em quase todos os seus shows. O que as une é certa comicidade e um pouco de imprecisão, me refiro a certa “sujeira” em cenas que remetem ao improviso (apesar de serem ensaiadas) vide “Causing a commotion” (“Blond Ambition”), “I’m goind bananas” (“The Girlie Show”), “Beautiful Stranger” (“Drowned World Tour”), “She’s not me” (“Sticky and Sweet”), etc...
Em 2024, visto que se trata de uma turnê de comemoração, há várias representações de momentos da vida de Madonna. A que mais me marcou é completamente “bagaceira”, imprecisa e vulnerável. Bob the Drag Queen assume o papel de um door de boate, um porteiro cruel que escolhe quem vai entrar. Madonna (representando-se a si mesma jovem e anônima em Nova Iorque) tenta entrar na boate e Bob confunde o nome dela “Madalena?”, “Como é mesmo seu nome?”. E ela, bem jovial e informal responde “My name is Madonna”, e a plateia inteira do Kia Forum vai abaixo em risos e aplausos.
A mulher de 65 anos, em sua auto-representação, realmente parece mínima perto de Bob, uma menininha insegura na frente dos arranha-céus de Manhattan. Lembra a cena de “A Gaivota”, de Anton Tchekhov, quando a velha atriz Arkadina diz que ainda é uma franguinha no palco se quiser, podendo fazer o papel de uma “menina de 15 anos”. A cena da porta da boate termina com a coreografia de “Holiday” e o diretor de movimento aproveita que a imprecisão é a não-contenção do movimento e coloca a cantora e o coletivo de bailarinos no palco giratório, quer dizer, movimento non-stop. A imprecisão vira forma e conceito.
Celebração
Esse não é um texto de descrição da nova turnê da Madonna, não se quer completo em nada. É apenas uma reflexão sobre um incômodo evidente nas redes sociais em relação a um corpo que não tem mais a mesma precisão de outrora e de como isso pode ser o verdadeiro poder corporal e um motivo para assistir ao show. Ao invés de camuflar a idade e recalcar o fato de que esteve internada em coma dois meses antes de começar a turnê, a Rainha do Pop adiciona essa matéria à forma de seu show.
Uma turnê, normalmente, acontece para promover um ou dois álbuns. Ela tem a cara dessa fase do artista. A “Celebration” é a festa de 40 anos da carreira de Madonna e o mestre de cerimônias, Bob the Drag Queen, anuncia isso aos gritos no início do show: “Isso não é só um show, isso não é só uma festa. É uma celebraçããããããão!”. Dito isso, um alçapão vai descendo e retirando a drag até ela sumir, enquanto Madonna vai aparecendo no palco cantando “Nothing really matters” (título engraçado para começar uma celebração de 40 anos de carreira).
Precisamos de erros e imprevistos para nos lembrar que há humanos produzindo aquele acontecimento cênico. A lógica neoliberal da produtividade maquinal (a qual as performances da diva pop sempre estiveram atreladas, é preciso dizer) se dissolve, agora, numa vulnerabilidade humana que nos conecta à performer. Os pop stars sempre tomaram o caminho que os tornava ídolos, quer dizer, imagens do inalcançável. O performer está, necessariamente, no terreno do presente e da possibilidade de queda. A “Celebration Tour” oferece à Madonna a possibilidade de transitar entre o ídolo e a performer.
É necessário a força da própria raiz para se mostrar vulnerável.