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O terno, a palha, o dente: Companhia Corpus entre Mundos no Festival do Teatro Brasileiro no Teatro Poeira

Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Professor da Escola de Teatro da UNIRIO

Em 19/05/2024 às 14:02:06

Tudo começa em uma caminhada de costas. Um itinerário no reverso. Dilo Paulo vai incorporando sutis movimentos ondulantes no pescoço, nos braços e passando para as pernas. Desde o início, portanto, o espectador já entra em contato com a forma condensada do tema do espetáculo Ekesa (do kikongo “herói”) San (do ganês “voltar”) ko (“ir”): o retorno do herói.

A caminhada começa a ser transformada. Para frente e para trás, um impulso começa a ser preparado numa “quarta allongée” desconstruída e um grande momento fotografável se materializa: um salto com expansão das pernas, o que poderia ser lido como um “grand jeté”, se o vocabulário e o padrão de movimento fossem do balé clássico. Aqui, um salto bastante alto, visto o espaço que Dilo teve para tomar o impulso. Uma força ancestral para cumprir essa trajetória de volta.

Os movimentos tornam-se deslizamentos e rotações da dança contemporânea, enquanto ouvimos uma música sobre Sankofa, a imagem do pássaro com a cabeça virada para trás, que tem sido bastante cultuado nos últimos anos. É um corpo mais fluido, lírico, que se harmoniza com a silhueta imposta pelo terno ocidental no corpo do bailarino.

Logo essa silhueta é transformada, com a retirada do paletó. Assim, outro corpo e outra sonoridade vão tomando o espaço por completo. Ouvimos a voz de Elza Soares cantando “é um navio humano, quente, negreiro” e esse herói retorna sobre o oceano atlântico, de volta ao continente africano.

O espectador já entendeu, a essa altura, que se trata realmente da jornada de retorno às raízes, à essência. Ele inicia tanto com movimentos da dança contemporânea, quanto com um figurino mais relacionado ao ocidente branco. À medida que vai se desfazendo dessas peças de indumentária, seu corpo vai se transformando, bem como as inserções sonoras. Nesse sentido, Dilo retira a calça e veste uma saia de palha. Suas pinturas corporais, que antes estabeleciam contraste com o figurino, agora são prolongamentos dessa saia.

O corpo em cena finaliza o espetáculo, portanto, africanizado, sem nenhum complexo de racialização. Pleno. E o que é mais interessante, na última coreografia, os elementos do contemporâneo, do lírico, voltam para jogar com o hip hop e o afro. As raízes estão ali, mas também toda a sua trajetória no além-mar.

Five score years ago

Enquanto a dança contemporânea de Dilo começa a ser contaminada por “jackings” da house e do hip hop, na sala começam a ressoar palavras em inglês: “Cem anos atrás, um grande americano, em cuja sombra simbólica nos encontramos hoje, assinou a proclamação da emancipação dos escravizados. [...] Mas cem anos depois, o negro ainda não é livre”. É um dos discursos mais famosos da história da humanidade, aquele de Martin Luther King proferiu em 1963 para uma multidão de 250 mil pessoas, diante do monumento a Abraham Lincoln, aquele que assinou “o fim da escravidão” (1861), fato diretamente relacionado à guerra civil norte-americana.

Os movimentos de coluna e de mãos sobressaem na dança de Dilo nesse momento. A coluna passa de um plano a outro com muita potência. As mãos começam a estabelecer um gesto que se tornará um “leitmotiv” ao longo do espetáculo: um fechamento gradativo dos dedos num movimento de leque, fechando a mão em punho. Ao mesmo tempo que parece uma composição coreográfica abstrata, Dilo parece traduzir, em gesto, as palavras de MLK. Mais do que apenas as palavras, a sonoridade da linguagem: a coluna estabelece suspensões de “cambrés” quando as vogais do líder-político-religioso se estendem, o corpo se direciona ao solo, com o punho serrado em finais de frases, etc...

Os cem anos mencionados por MLK, espelham nossos mais de 500 anos de escravização africana, nossos mais de 100 anos pós-lei-áurea; assim como os mais de 100 anos de divisa do território africano entre colonizadores europeus (fato que também está relacionado a grandes guerras no século XX, incluindo as quase 3 décadas de guerra civil em Angola, país do qual vem Dilo Paulo). O corpo que vemos em cena está, portanto, recriando a História no campo artístico, ao mesmo tempo que tenta se reconhecer no meio desse turbilhão de eventos humanos.

Esse discurso, conhecido pela frase que se repete “Eu tenho um sonho”, contrapõe o tempo todo a opressão à liberdade. O hiphop, a afrohouse, são danças que, como as danças contemporâneas de maneira geral, prezam pela liberdade do performer, o “freestyle”. É um contraponto às escolas que, durante séculos, detiveram a palavra final sobre o valor do bailarino: a execução era avaliada segundo um padrão criado num contexto que não dizia respeito a inúmeros corpos.

As danças chamadas “de rua”, ou “urbanas”, talvez sejam o mais contemporâneo que o contexto contemporâneo pode oferecer, posto que revelam corpos extremamente livres do padrão, mas com muita prática de dança. É possível ver a trajetória de uma vida inteira dançada naqueles corpos. Isso quer dizer que há muita técnica, porém, originada e trabalhada em uma lógica diversa das escolas tradicionais de balé.

O extrato do discurso de MLK escolhido para o espetáculo opõe a prosperidade da sociedade (norte) americana e o isolamento da pessoa preta em uma terra de pobreza dentro dessa terra rica dos Estados Unidos. No diálogo com esse extrato, está o corpo do performer, isolado no canto esquerdo da cena, como que enraizado, produzindo intensos gestos de coluna, como uma luta para sair do chão. Em seguida, ele desenvolve deslocamentos incríveis pelo espaço, e saltos extremamente vigorosos, como uma resposta a tanta opressão.

Free at last!

É preciso trazer à baila um momento sutil, porém importante. A primeira aparição dos dentes. Em uma boa parte da encenação, o performer está com a boca fechada. A primeira vez que um lábio se separa do outro, começa a reluzir a brancura dos dentes e essa abertura funciona como mais um refletor da iluminação. Não apenas por uma questão física, mas, sobretudo, pelo que o sorriso traz de significado.

A partir desse sorriso embrionário, até o fim da encenação haverá sorrisos cada vez mais abertos e isso cria sentido nessa trajetória de autoreconhecimento. A abertura para os dentes acontece quando a dança, além de encontrar sua africanidade, também começa a pincelar elementos de vários outros estilos.

O “popping” do hip hop, quer dizer, a alternância da tensão e relaxamento dos músculos, se combina com “wavings” no corpo inteiro, que, por sua vez, são combinados a saltos-piruetas, chaves, rotações sobre os joelhos, passos da dança contemporânea, culminando em um salto com queda sobre os joelhos. São movimentos de risco do equilíbrio alternados com sorrisos.

A perda do equilíbrio, a perda do eixo, as ondulações, tudo o que sai do controle, faz parte de um jogo. Dilo joga com essa vulnerabilidade para voltar à base, à precisão. Seu corpo parece rir do desequilíbrio, mostrando que pode brincar no precipício, mas sempre vai voltar à base, no alto da montanha, de onde pode observar o horizonte. Há uma estabilidade sendo comunicada ao espectador, uma resistência.

O retorno ao eixo fala da consciência de si, da potência de ser. É preciso “ser” diante das gigantescas ondas de opressão. A dialética está potencializada nesse retorno ao eixo em jogo com o “estilo livre”. É impossível não relacionar “freestyle” com o “free at last” de Luther King.

Ficha técnica

Direção artística: Lenna Siqueira

Coreografia e bailarino: Dilo Paulo

Parabéns à curadoria e produção do Festival do Teatro Brasileiro e à Companhia de Dança Corpus entre Mundos.

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