“A manada de búfalos é impenetrável”, é uma das frases que ecoam nos ouvidos do espectador em “O corpo que eu habito”, em cartaz no Teatro Cacilda Becker.
Penetrável
A dura frase sobre os búfalos não ressoa apenas porque é bem dita em cena, mas também porque há um gestual que remete ao búfalo e que reaparece ao longo do espetáculo. As mãos colam um pouco acima das têmporas e tornam-se chifres. Os bailarinos olham o chão e formam um aglomerado que avança pesadamente.
Isso contrasta com toda a dinâmica cênica, que é a do penetrável e do atravessável. O espaço cênico, de Gisele Batalha, está delimitado por paredes de elástico, que permitem serem atravessadas pelos bailarinos. O cenário opera tanto a transparência e a sugestão de corpos do outro lado do limite, quanto o rasgo e a penetração. A iluminação (Paulo César Medeiros) e a encenação (Sueli Guerra e Alessandro Brandão) exploram de maneira interessante as possibilidades dessas paredes.
No fluxo desses atravessamentos, as células coreográficas individuais são penetradas umas pelas outras e, assim, transformadas. É fácil reconhecer os solos de cada bailarino, a cena ensaiada individualmente; porém toda essa gestualidade é metamorfoseada pelo coletivo de performers em cena, como empréstimos e reconstruções.
O figurino de Patrícia Muniz possui manchas (a interferência de uma substância sobre a outra), dégradés (que vão transformando uma cor em outra) e transparências (que permitem que o olhar penetre o tecido). A saxofonista Ana Paula Cruz penetra a trilha sonora gravada (Rodrigo Russano) cena com seu som ao vivo. Uma parte do elenco é nova em cada cidade, quer dizer, atravessa a equipe permanente e sua partitura ensaiada. Tudo é atravessado pelo outro.
Vejamos alguns recortes:
Quedas, espirais, festa e grito mudo
O coletivo de performers passa por muitas nuances (um tomando emprestado do outro cada tema ou técnica), mas quero destacar alguns pontos individualmente.
Edney D’Conti trabalha a movimentação dos pés no chão sem que as plantas se soltem do palco. Seu gesto espiralado do deslocamento contagia os braços que ora acolhem amorosamente a matéria invisível do ar, ora parecem pedir socorro (num grito mudo que remete a Helène Weigel em “A Mãe Coragem”, de Bertolt Brecht). A espiral também preenche o gesto de Renata Reinheimer e uso o termo “gesto” porque trata-se de um movimento para além da estrutura física, mas que preenche o texto dito por ela com repetições e, a cada repetição, a “mesma” frase já é outra, como em uma espiral.
Alessandro Brandão e Andreia Pimentel desenvolvem gestos dialéticos entre alto e baixo. Ele, por um lado, revela uma queda violenta ao espectador, por outro, tem os braços suspensos por balões de ar que dão a delicada impressão de vôo: balões-asas. Ela, desloca-se no plano baixo sobre todas as articulações de pernas e pés (uma trajetória bastante interessante), ao mesmo tempo revelando o vetor para o alto ao ser suspensa por três homens.
Destaco, no trabalho de Saulo Eduardo e Jefferson Almeida, a relação com o objeto. Saulo, com as serpentinas metalizadas, veicula tanto a festa da carne, quanto certo sacrifício da carne. Se, por um lado, as cores e o brilho de seu objeto remetem ao carnaval e ao desbunde, esses fios aparecem como um vômito, como vísceras e secreções de um corpo dissecado. Jefferson faz a ponte com o objeto cotidiano por meio do figurino. Seu relato e sua indumentária reforçam a ideia de memória individual, tornando sua figura em pé no palco uma célula de um coletivo (materializado pelos bailarinos em cena consigo). Quando coloca seu figurino deitado no chão, remete à queda do corpo vivo de Brandão, no início do espetáculo.
Sueli Guerra ora observa a cena (em uma abertura para a escuta), ora se entrega ao contato do outro, em apoios e sustentações. Enquanto alguns bailarinos permanecem mais tempo em movimentos de expansão, ela leva o espectador a observar os detalhes, dos quais, destaco o coup de pied no ar, na direção da plateia. Essa relação com o pé me remeteu imediatamente ao espetáculo “Suite Jazz”, de Renato Vieira, no qual Sueli, num rápido momento, destacava o toque de seu pé no chão, como em câmera lenta. Aqui, em “O corpo que eu habito”, é o dedo do pé “em ponta” que propõe uma continuação do movimento, além do limite do corpo.
O corpo coreográfico, entretanto, está expandido, não se limita aos bailarinos. Enquanto um bailarino corre com balões de gás, a saxofonista Ana Paula Cruz recebe esses balões contra seu corpo tantas vezes quantas foram as voltas dadas pelo bailarino. Além disso, a musicista entra no meio das movimentações dos bailarinos, interferindo na coreografia. No que diz respeito à interprete de libras, as pontas de seus dedos “falam” ao tocar o peito (em inúmeras palavras) e isso estabelece um jogo com o bailarino que, enquanto fala no proscênio, toca o próprio peito com as pontas dos dedos. Da perspectiva do espectador, os corpos da saxofonista e da intérprete também estão em cena dançando.
Vulnerabilidade do eu e do outro
Escolhi comentar por último o início do espetáculo. Tudo começa com performers que não fazem parte da ficha técnica permanente. A cia faz uma oficina em cada cidade em que se apresentará e, fruto desse trabalho, um elenco temporário se forma para esse início de espetáculo. É preciso dizer que se trata de uma tomada de posição e afirmo isso porque, do ponto de vista comercial, poderia ser considerado um erro deixar o primeiro contato com o espectador para um elenco que não tem a vivência do processo de criação, periga não criar uma real conexão. Me pareceu a escolha mais radical e, por isso, a mais interessante. Numa criação sobre o atravessamento do individual no coletivo (e vice-versa) nada poderia ser mais vulnerável (e, portanto, sincero) do que pessoas menos “ensaiadas” dando início ao acontecimento artístico.
No dia que vi, eram todas mulheres. No entanto, com corpos muito diversos uns dos outros. Um grito coletivo “acorda” a plateia no momento em que a performer Marili pega todo o volume dos dreads de seu cabelo e enrola no pescoço, como uma forca. Mariana da Costa Pinto, então, desenvolve um gestual (belo e angustiante) na frente da companheira de cena. O coletivo de mulheres se agrupa no extremo oposto da diagonal que todas formam. Essa tensão é quebrada pela entrada do elenco permanente, aos poucos, através da parede penetrável, com flutuantes balões de festa nas mãos.
“O corpo que eu habito” merece ser visto por todos os públicos nesse último fim de semana da temporada carioca.
Ficha técnica
Idealização: SUELI GUERRA
Pesquisa, Concepção e Direção Artística: SUELI GUERRA e ALESSANDRO BRANDÃO
Intérpretes Criadores: SUELI GUERRA, ALESSANDRO BRANDÃO, EDNEY D’CONTI, ANDREIA PIMENTEL, RENATA REINHEIMER, SAULO EDUARDO e JEFFERSON ALMEIDA.
Músico: ANA PAULA CRUZ
Trilha Sonora Original: RODRIGO RUSSANO
Cenografia: GISELE BATALHA
Figurinos: PATRICIA MUNIZ
Iluminação: PAULO CESAR MEDEIROS
Direção de Produção: CACAU GONDOMAR
Realização: CLG - CANTEIRO DE IDEIAS e CIA DA IDEIA