Corria a década de 1980, o futebol brilhava, cheio de ídolos, um verdadeiro desfile. Zico, Roberto Dinamite, Assis, Washington e tantos outros. As pessoas se conheciam na rua, nos jornaleiros, no futebol de rua.
Bastava um portão, uma bola e já se criava uma partida. Esta durava horas. As bancas de jornal, cheias, com a troca de figurinhas dos álbuns.
Foi numa banca que conheci Luís, flamenguista doente, que herdou o amor da família pelo Flamengo. Andava sempre com a camisa do clube e secava todos os jogos, ganhando quase todas as apostas. Sabia o time do Flamengo de cor, inclusive os reservas. "Hoje não tem pra ninguém! É Mengão na cabeça!", dizia. E, invariavelmente, com o time que o Rubro-Negro tinha àquela época, ganhava facilmente.
Ficamos bons amigos, tínhamos uma grande afinidade. Na realidade, ele até ficava triste por mim quando o Flamengo atropelava, mas não demonstrava. Só que grandes amizades percebem.
Nos inúmeros campeonatos de botão, era sempre Flamengo, não admitia outro time e sempre reivindicava para si o rubro-negro.
Depois das aulas, sempre me ligava e não titubeava: "hoje tem futebol na rua, você está no meu time, te espero lá!" E as partidas iam até escurecer.
Num desses jogos, Luís foi me passar a bola, mas ficou pálido, tonto e desmaiou. Ficamos desesperados, corremos até sua casa, chamamos a sua mãe, que correu com ele para o hospital.
De noite, quando meu pai chegou, insisti que ligasse para a casa de Luís. Seu pai atendeu e falou que ele estava melhor, mas que já tinham a causa do desmaio: seu filho estava diabético.
Numa época em que a medicina engatinhava, com seringas de vidro e controlando o açúcar pela urina, o controle se tornava muito difícil. Luís já não era mais o mesmo, mas continuava secando as partidas de futebol e tentava a felicidade, em busca voraz.
Logo depois desse episódio, meu pai, que era militar de carreira, me chamou um dia e falou: vamos ter que nos mudar, fui transferido para outro estado. Chorei muito, mas não havia jeito.
No dia seguinte, fui me despedir dos meus amigos com um nó na garganta. Abracei a todos, mas particularmente Luís. Tínhamos convivido por cinco anos, uma grande amizade. Ele me disse que tem certas coisas que não adianta secar, é o destino, mas tão certo quanto a partida é o retorno e iríamos nos encontrar no futuro. Nada disse, mas concordei. Como ele poderia saber?
Os anos passaram, cresci, me casei, constitui família e me tornei, como meu pai, militar. E não é que o destino me colocou de volta na mesma cidade da minha infância?
Um belo dia, resolvi ir até o bairro que morei. Pouco havia mudado e fiquei curioso sobre os meus amigos de infância. Fui até o bar do Seu Pedroso, um comerciante português, vascaíno doente, que morava e trabalhava ainda ali. Perguntei por vários amigos e muitos já não mais moravam ali. Então ele falou: quem ainda mora por aí é o Luís. Reside com a mãe, na mesma casa. Tenho o telefone dele, espera aí. E, antes que eu falasse, me forneceu o número e disse: ele quase não sai, vai ser fácil encontrá-lo.
Retornei para minha casa com o coração aos saltos: ia rever meus amigos de tantos anos. Telefonei. Sua mãe atendeu e falou: "claro, pode vir! Ele vai adorar!" Pedi pra falar com ele e um longo silêncio se fez até que ele atendeu. Uma voz fraca e cansada, mas feliz. "Meu grande amigo, estou te esperando no domingo! Vai ter Fla-Flu!" Concordei que iria, que seria muito legal nos reencontrarmos, e desligamos.
Então, dúvidas sobressaltaram: havia algo errado. Mas não desmarcaria com meu amigo, ainda mais com a possibilidade de secá-lo num clássico.
No domingo, saí de casa bem animado e fui até sua casa. Toquei a campainha e olhei a residência, a mesma de tantos anos, com tantas recordações da minha infância. Estava algo desbotada, precisava de uma pintura. A porta se abriu, e, em vez de meu amigo, sua mãe, uma senhora agora mais velha, foi quem me recebeu e falou: "Luís está te esperando no quarto dele, com a TV ligada". Mas antes me advertiu: "ele está diferente, o tempo passou..." Na hora não entendi. Andei até seu quarto, o mesmo de tantos anos, a TV em frente à cama e ele sentado, de costas para porta, perguntou: "quem está aí?"
Respondi, meio desconfiado: "sou eu, Luís, seu velho amigo de tantos anos!" Ele se virou e, então, percebi tudo. Seus olhos estavam foscos, sem vida. Luís ficara cego pelo diabetes. Mas me recebeu sorrindo e disse: "agora você vai me contar lance por lance, e eu vou secar bastante!"
Sorri. Liguei a TV. Tinha meu amigo de volta.