Contadores de histórias estão em extinção, principalmente aqueles que decorrem de uma tradição. Independente do tempo, a ancestralidade emana, segue o seu percurso como um rio, desaguando em algum espaço acolhedor.
Ao entrar no CCBB do Rio de Janeiro, eu esperava assistir a um espetáculo teatral, afinal a produtora Sarau, de Andrea Alves, tem deixado sua marca no teatro carioca. Posso ir além: no teatro brasileiro, sempre com transbordo cênico de excelência.
Mas confesso que a montagem me levou a um lugar muito específico. Eu me vi ouvindo uma história de uma mulher, de uma mulher indígena. Uma história rica em tradições, uma história genuína de um povo originário.
Mas uma história não seria tão interessante como foi se não houvesse quem soubesse contar com a destreza precisa, esmero e convicção. Zahy Tentehar é a atriz que nos levou com ela, em um texto dela. Uma história sem ódio, sem discursos que acusam o outro. Muito pelo contrário, tudo com muita poesia. Poderia ser diferente, pois houve matança, extermínio dos indígenas brasileiros. Aliás, tivemos recentemente as mortes de quase 500 crianças yanomamis e isso é difícil esquecer. Mas a narrativa da atriz causa mais análises do que discussões não profícuas. Eu não preciso dizer que o homem branco exterminou os indígenas. Isso já sabemos. Mas posso dizer que o homem branco perdeu quando matou os indígenas. Isso torna tudo muito mais atraente. Discussões acirradas tem se tornado a base de verdadeiras guerras. Fato!
Zahy tem um dom lindo, ela enfeitiça, sua voz, seus movimentos corporais, seu canto ou lamentação melódica, parecem orquestrar sua arte, sua forma de falar sobre seu povo, sobre sua cultura e isso é prazeroso.
Confesso que faz um bom tempo que não ouvia aplausos tão calorosos e demorados, uma sequência de aplausos merecidos a essa jovem atriz. Ela de fato é apaixonante, não sei se ela ou o dom dela, herdado por sua mãe indígena. Zahir conta a sua história alternando entre seu idioma natal e o português. Inclusive, ela ensina a plateia a cantar em seu idioma, tudo muito belo. Inclusive, julgo esse fato importante enquanto lutamos para não deixarmos que se apague a história desse país.
Ela é delicada, simpática, honesta e generosa ao compartilhar com a plateia sua história. A docilidade que corre da atriz é, de fato, uma das mais belas que já assisti. Seu jeito de falar com o púbico é cativante, sutil e se faz compreender, por ter habilidade, por ser uma verdadeira contadora de história.
É a ciência no palco, explicando o que é o DNA (é um ácido nucleico que apresenta todas as informações genéticas de um indivíduo. O DNA (ácido desoxirribonucleico) é um tipo de ácido nucleico que possui papel fundamental na hereditariedade, sendo considerado o portador da mensagem genética.
Sua beleza é originária: cabelos escorridos, tom de pele indígena, traços que nos levam ao nosso povo. E ainda mais definida quando pintada. Não sei se com urucum ou jenipapo, talvez nenhum deles, mas que aponta sua identidade.
Ela também entende que não precisa gritar, a aspereza está longe dela. Ela conta a vida, as intempéries ao chegar na cidade. Se antes o rio passava em frente à sua casa, em outro momento o esgoto toma o lugar do belo. Foi quando ela e sua família deixaram o interior para a cidade grande e deixaram de ver a quantidade de estrelas como antes viam.
Uma história que nos seduz.
A iluminação de Ana Luzia Molinari de Simoni, mais uma vez, é certeira. Ana tem sido exímia em seu ofício.
A direção de arte tem a assinatura do grande Batman Zavareze, que atua com os maiores artistas do Brasil.
A direção e dramaturgia são do intenso Eduardo Rios. Não poderia ser diferente: o espetáculo é um carinho, tem uma concepção banhada em poesia e etnia. Eduardo e Zahy Tentehar são nordestinos e, obviamente, o resultado resume-se em sutileza. Sabe-se que os indígenas, no Nordeste, foram massacrados. Mais um motivo dessa contação estar tão bem desenvolvida. Ambos carregam a história desse Brasil que, com o tempo, parece reconstruir suas histórias com mais ética. Denise Stutz também abraça a direção. Segundo Eduardo, todo o projeto foi pensado em conjunto, nada foi criado separadamente.
As cenas teatrais embutidas no espetáculo são uma mostra da cultura indígena, que é admirável, porque Zahy é indígena e guarda em sua memória afetiva até o canto dos pássaros. Com atos de gentileza, nos faz ouvi-los também através da sua ostentosa voz.
Uma vez eu me vi seduzida por ela. Foi no espetáculo "Macunaíma", com direção de Bia Lessa. Volto a ter a mesma sorte. No entanto, eu jamais imaginaria vê-la na íntegra, me emocionando, me fazendo chorar.
Penso que todos os brasileiros deveriam assistir essa obra para guardarem, em suas memórias, a nossa história, a simplicidade do indígena. A dramaturgia, em momento nenhum, me trouxe dúvidas, levando em consideração as histórias que um dia ouvi do meu amigo Fernando Cruz, que mora em Dourados/MS, como os indígenas reagem à cultura dos brancos. Incrível como essas duas histórias se cruzaram em minha cabeça.
Zahy traz à cena sua dança, seu corpo indígena, suas memórias, suas dores, sua poesia. Ela pousa no Centro Cultural do Banco do Brasil com um maracá em mãos (instrumento musical indígena mais conhecido, sendo seu nome muitas vezes utilizado como uma designação genérica para chocalhos. Consiste numa cabaça seca e oca com pequenas pedras, caroços ou sementes em seu interior, colocada na extremidade de um bastão, normalmente feito de madeira), coroada de gentileza. Seus pés pisam hora com firmeza, hora com maciez naquela caixa cênica, pronta para nos ensinar quem ela é, como a vida a construiu, mas que de nenhuma forma apagou sua identidade, essa que deverá ser preservada por cada um de nós que a assistimos.
Afinal, o ritual de pajelança está lá envolvendo a plateia.
A carta de Pero Vaz Caminha é apenas o começo da nossa história. Sua continuidade está nos registros históricos, um dia economizados pelos historiadores. Histórias como a de Catarina Paraguassú, Moema, Zahy e muitas outras indígenas. Basta abrir as escutas e entender quem realmente são os filhos dessa terra.
Sinopse
"Azira'i" é um espetáculo sobre a relação entre uma filha e sua mãe. Com a dramaturgia construída a partir das memórias da atriz Zahy Tentehar, este solo autobiográfico resgata a sua vivência com a mãe, Azira'i Guajajara, a primeira mulher pajé da reserva indígena de Cana Brava, no Maranhão, onde ambas nasceram. Zahy alterna cenas em português e também em Z'eng eté, sua língua de origem, trazendo também para o centro da cena o debate sobre os processos de aculturamento aos quais foi submetida.
Ficha Técnica
Um solo de Zahy Tentehar
Dramaturgia: Zahy Tentehar e Duda Rios
Direção: Denise Stutz e Duda Rios
Direção de arte e design gráfico: Batman Zavareze
Trilha sonora original: Elísio Freitas
Iluminação: Ana Luzia Molinari de Simoni
Direção de produção e produção artística: Andréa Alves e Leila Maria Moreno
Serviço
Data: Até 5 de novembro
Local: Teatro I
Endereço: R. Primeiro de Março, 66 - Centro – Rio de Janeiro - RJ.
Horário: Quinta a sábado às 19h e domingos às 18h.
Classificação etária: 12 anos
https://ingressos.ccbb.com.br/teatro-azirai__1140