No lugar de espectadora que realmente sou, me permito dessa vez não falar sobre iluminação, figurino ou cenário. Não que eu esteja desmerecendo, mas o que não sai da minha cabeça são duas cenas as quais considero uma das mais preciosas que assisti no teatro.
O espetáculo "Caralâmpias" trouxe três mulheres que se encontraram em um determinado lugar. Ivone Lara e Maura Cançado, eu já conhecia suas histórias, inclusive no teatro. Nise, eu apenas conhecia através de algumas reportagens.
São três mulheres de êxito profissional, reconhecidas no tempo vivido por elas. Merecem que suas histórias sejam contadas, ainda que para entendermos um pouco das razões dos seus atos. O teatro tem esse poder: de nos fazer entender certas situações, de nos colocarmos no lugar do outro quando existe uma pesquisa intensificada dramaturgicamente, o que é o caso.
A primeira cena é quando a atriz Aline Borges explica, com um tomate em uma das mãos e uma faca em outra, o que é consciência e o que é o ego.
Uma cena inesquecível, pois se fez através de uma dramaturgia que visivelmente foi construída com profundidade. Há tanta beleza na atuação da atriz que ficamos hipnotizados com a narrativa dela. A voz convence, até mesmo se preciso for, o Papa de que Deus é brasileiro. É uma voz que entra e faz morada em nós. Posso dizer que é extremamente convincente. Cada palavra que a atriz solta da boca se converte no convencimento, levando em consideração a assertividade científica do texto. Mas isso não é suficiente. A atriz, através do corpo, nos permite assistir a uma admirável postura corporal, traz uma força descomunal que presenteia a cena. Seu corpo plaina, como um avião de papel no vento, mas com a direção certa. Nada over, embora haja potência no texto. A delicadeza feminina da atriz implica em discordar do que fala, porque são direções contrárias. Uma faca em mãos e um corpo que não se entrega ao texto impactante, mas encontra um equilíbrio perfeito. O olhar da atriz te consome, te engole, te seduz, te leva com ela aonde ela quer chegar, aonde ela quer que você chegue, que também te conduz à verdade das palavras esboçadas um dia para ela em inúmeras horas de ensaio. A cena é trazida pela personagem Nise, que humanizou o tratamento psiquiátrico no Brasil, sendo contrária às formas agressivas de tratamento de sua época. Acreditava que a arte era uma forma de comunicar e mostrar o afeto. Aliás, defendia o afeto deles e para eles. Sendo assim, a arte era uma forma de tratamento. Defendeu o tratamento também através de animais. Nise percebeu o afeto dos pacientes no tratamento de um animal abandonado no hospital.
A segunda cena começa quando três atrizes utilizam três colares de pérolas. Mas eu jamais imaginaria que, pela primeira vez, eu fosse entender a cabeça de um esquizofrênico. Algo quase que impossível de entender. Se fosse fácil teríamos menos pessoas atingidas por essas doenças mentais que atordoam as pessoas covardemente, bem como suas famílias. Digo "covarde" porque ficamos com as mãos atadas diante do caos. Quando as atrizes Alice Morena, Aline Borges e Lisa Eiras se auxiliavam a colocar os colares, fiquei tentando entender o que viria, qual seria a próxima cena. E fui presenteada com ela!
Essa cena desenha a cabeça de Maura Cançado. Quem foi Maura? Internada diversas vezes para tratar problemas psiquiátricos, foi praticamente esquecida depois de sua morte, em 1993. Aos 22 anos, chegou na cidade do Rio de Janeiro querendo ser escritora. Mandou contos e crônicas para escritores e jornalistas, começando a publicá-los no Jornal do Brasil e no Correio da Manhã.
Maura passaria por diversos hospitais psiquiátricos durante a década. Todos eles lhe renderam experiências que influenciaram sua escrita. Mesmo internada, a escritora enviava sistematicamente contos para publicação nos periódicos. Até que, em 1972, Maura estrangulou e matou uma paciente na Clínica de Saúde Doutor Eiras, em Botafogo, sendo acusada de homicídio. A justiça carioca, porém, a considerou inimputável do crime e a internou no Hospital Penal da Penitenciária Lemos de Brito, em um cubículo sujo e infestado de percevejos. Maltratada, quase cega e desnutrida, Maura exigiria cuidados psiquiátricos para o resto da vida.
Depois de seis anos de reclusão no hospital psiquiátrico, Maura foi solta em 1980. Passou por várias outras clínicas nos 13 anos seguintes e morreu em 19 de dezembro de 1993, no Rio de Janeiro, depois de um infarto. Não escrevia mais nesta época.
Depois das três atrizes vestidas com os colares, as três sentam em três cadeiras. E a cabeça de Maura é desnudada para nós. São três vozes que conversam, as três conversam na cabeça da Maura. Mas que maravilha de cena! Maura é vivida pela atriz Lisa Eiras. A "voz inconsciente um" é da atriz Aline Borges e a "voz inconsciente dois" é mais inquieta e intensamente interpretada pela atriz Alice Moreno. Fica até mesmo impossível tentar pontuar qual delas tem melhor performance. São maravilhosas, cada uma em um papel diferente. Ousadas ou tímidas, levam à cena um dos melhores delírios que assisti. Elas descrevem os fios de pensamentos de Maura. Se uma voz persiste em medicação, a outra persiste viver com toda a abundância possível. A voz da atriz Aline, que também faz a personagem de Ivone lara, é enérgica, simpática e sexy. A vontade que temos é que a cena não acabe. Aliás, a meu ver, a peça poderia correr neste ato, poderia ser só ele. Somente quem entende um pouco do esquizofrênico entende a importância da cena! Saber desvencilhar dessas vozes é praticamente impossível .
Se uma voz é espevitada, uma mistura de sensualidade e sede de vida, a outra é menos provocante, mais depressiva, preocupada em se medicar para que a voz dois não tome espaço. Não a tire da zona de conforto para ser amortecida! É uma cena muito marcante!
Isso fica muito em evidência na cena que tem superpoderes. Pensamentos e fala confusos: pessoas com esquizofrenia podem ter dificuldade em organizar seus pensamentos. Isso fica claro na cena, que explica tanto como tudo acontece. É um desaguar da capacidade artística de cada atriz da sua forma, com a sua potência que eleva a cena, com identidades bem constituídas, que nos deixam ssurpreendids. O ato nos leva a reconhecer a grandiosidade das dramaturgas, uma sacada de alto nível. Óbvio que, se não tivesse a performance de atrizes que sabem atuar muitíssimo bem, nada seria possível. Porque é do conjunto da cena que falo.
Que loucura mais concisa que assisti na vida!
Ficha Técnica
Idealização: Mariana Kaufman
Dramaturgia e direção: Luisa Espindula e Mariana Kaufman
Atuação: Alice Morena, Aline Borges e Lisa Eiras
Argumento: Mariana Patrício
Figurinos e cenografia: Ticiana Passos
Direção de movimento e coreografia: G’leu Cambria
Direção musical: Claudia Elizeu
Iluminação: Lara Cunha
Identidade Visual: Priscila Lopes
Consultoria teórica: Gabriela Serfaty
Canção original “Lobotomia”: Felipe Pacheco Ventura e Mariana Kaufman
Pesquisa: Luisa Espindula
Supervisão de fotografia: Ilana Bessler
Operação de luz: Rodrigo Leitão
Operação de som: Mauro Araujo
Programação de bases: Jordi Amorim
Costureira: Irene Leal
Direção de produção: Lisa Eiras
Produção executiva / Captação de Apoios: Bruno Paiva
Ass. de Produção: Juliane Cruz
Coordenação Geral: Mariana Kaufman
Realização: Fagulha Filmes
Serviço
Caralâmpias
Data: Até 19 de novembro de 2023
Dias da semana: de quinta a domingo
Horário: 19h
Local: Sala Multiuso do Sesc Copacabana
Ingressos: R$ 7,50 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira)
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana
Informações: (21) 2547-0156
Bilheteria – Horário de funcionamento:
Terça a sexta – de 9h às 20h;
Sábados, domingos e feriados – das 14h às 20h.
Classificação indicativa: 14 anos
Duração: 80 min
Lotação: 45 lugares (Sujeito à lotação)
Gênero: drama