Na última quinta-feira (21), dois homens foram presos nas redondezas do Colégio Pedro II, em São Cristóvão, na Zona Norte carioca. Eles foram flagrados distribuindo panfletos que continham conteúdo preconceituoso e fundamentalista. O material distribuído era intitulado de "Alcorão de Maomé" e trazia incitações ao ódio, além de incentivos ao estupro e a morte de pessoas não-mulçumanas.
De acordo com a assesoria da Polícia Civil do Rio de Janeiro, o caso foi registrado na 19ª DP, na Tijuca. Diego Luiz Ribeiro de Figueiredo, 29, e Carlos José de Carvalho Gomes, 35, foram detidos em flagrante e indiciados no artigo 20 da Lei 7.716/89, que envolve crime de preconceito.
O caso parece inimaginável, mas aconteceu e não é uma realidade tão distante. Em tempos de movimentos que caminham contra o progresso da sociedade, é cada vez mais comum encontrar pessoas que optam pelo extremismo e pelo fundamentalismo para expressar as suas ideias. Por tal motivo, a linha tênue entre a ação e o pensamento pode ser bem perigosa.
Cláudia Souza é mãe de uma aluna do Campus São Cristóvão III. Ela também participa da Comissão de Mães, pais e responsáveis de alunos dos Campi São Cristóvão e do Coletivo Diverso e Democrático, que é formado por Mães, pais e responsáveis do Colégio Pedro II. Cláudia contou que ficou sabendo do fato por meio de um grupo no Whatsapp.
"Os homens foram abordados por alguns pais que estavam no local e perceberam a situação. Eles verificaram que os panfletos distribuídos pelos indivíduos continham incitações ao ódio e incentivo à realização de crimes como estupro, assassinato, extorsão e roubo. A princípio, o material fazia referência aos seguidores de Maomé, tipo uma religião ou alguma coisa nesse sentido. Na ocasião, a polícia foi acionada e levou os dois rapazes", explicou Cláudia.
Ela ainda revelou que casos como esse são motivo de preocupação entre pais e responsáveis da instituição. Isso porque, segundo Cláudia, o Colégio Pedro II vem sendo alvo de inúmeras agressões, por parte de setores conservadores, nos últimos tempos.
"Parte da sociedade não aceita ou não se conforma com a existência de uma escola pública de qualidade que trabalha com uma orientação diversa e democrática. Isso tem gerado muitas movimentações desses setores, não somente contra o colégio, mas também contra a educação pública. Não foi a primeira vez que os seguidores de Maomé se apresentaram na porta do CPII. Em 2017, eles já haviam aparecido com o slogan: Bíblia sim, Constituição não. É realmente preocupante. Acho que movimentos assim devem ser imediatamente barrados, pois seus idealizadores não podem achar que tal postura tem espaço na nossa sociedade", alertou.
Cláudia ainda chamou a atenção para que as pessoas não confundam tais pensamentos com liberdade de expressão ou liberdade religiosa.
"Esse tipo de conteúdo vai contra a tudo o que pensamos sobre liberdade de expressão e religiosidade. Hoje em dia, a incitação ao crime e ao ódio vem sendo recorrente. Talvez, isso seja o reflexo da onda conservadora que tomou o país. Porém, devemos enfrentar essas assombrações e mostrar que tais posturas consideradas fascistas não têm lugar no nosso meio. Elas são criminosas", concluiu.
Vale destacar que nos panfletos distribuídos pelos presos havia uma referência ao Pastor Tupirani. Em 2017, o nome do líder religioso ficou conhecido depois que um vídeo passou a circular nas redes sociais. Na época, Tupirani da Hora Lores afirmava que os homossexuais deviam ser discriminados. Ele se proclamou o último Elias e reuniu fiéis radicais em torno da denominação "Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo". No mesmo ano, o pastor e sua trupe organizaram uma marcha no Arpoador disseminando o preconceito contra os muçulmanos.
Nos folders também havia uma alusão ao site "restauracao.net". Essa é a página oficial da Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo. Desse modo, os seguidores presos estavam espalhando uma tradução distorcida do que seria o "Alcorão" da religião islâmica.
A trajetória de Tupirani é controversa. Ele já foi preso e se envolveu em inúmeras polêmicas sobre intolerância religiosa. Inclusive, ele foi o primeiro caso de prisão por tal motivo, no ano de 2009. No ano passado, os discípulos do pastor voltaram a cena no Rio de Janeiro quando passaram a pixar patrimônios públicos com a seguinte inscrição: "Bíblia sim, Constituição não. Jesus voltará em 2070". A igreja de Tupirani é contra o islamismo. Em 2018, no bairro de Copacabana, em uma confusão com guardas-municipais devido as tais pinturas, um homem ficou gravemente ferido. O portal Eu,Rio! tentou contato com algum representante da denominação, mas não obteve resposta.
Fase negra
Há algum tempo, o país está atravessando um período de acontecimentos carregados de preconceitos, intolerância política e incitação ao ódio. A divisão entre esquerdistas e direitistas mostra-se bastante acentuada nas redes sociais. O discurso acalorado e muitas vezes agressivo ganhou voz e parece fora do controle. O fascismo ronda as regras da boa convivência e cria um clima constante de tensão social.
São inúmeros os casos noticiados pela mídia brasileira. Temos desde a morte da vereadora Marielle Franco até a facada no atual presidente da república, Jair Bolsonaro. No Congresso, um deputado quebrou uma obra artística, pois não concordava com a crítica sobre o genocídio da população negra. No cinema, produtores e cineastas denunciam o cerceamento ideológico sobre as obras audiovisuais.
Diariamente, polêmicas que nascem no ambiente virtual invadem as discussões familiares. Não dificilmente, assistimos parlamentares invocarem atos institucionais antidemocráticos que marcaram a história e juristas ultrapassarem os limites éticos das suas posições. O acervo de notícias é vasto.
Por isdo, o historiador e pesquisador carioca, Phillipe Moreira, acha importante linkar os atuais movimentos de ódio com outros processos históricos já consolidados. Para ele, os brasileiros ainda não curaram algumas chagas.
"Não tivemos uma ruptura histórica. Nossos modelos de exclusão conviviam em meio à violência urbana. Agora, eles se colidiram. O bolsonarismo, por exemplo, é ódio, e ódio é um ótimo combustível para ditaduras. Olha o número do novo partido do presidente: 38, a numeração de um revólver. Isso é a legitimação de um partido de extrema direita, branco, hétero e assumidamente conservador. Aonde isso vai parar? Não dá pra saber. Vai depender se as instituições vão se manifestar contra, como no caso do A15.", alertou Phillipe.
Ele ainda ressaltou que há uma resistência muito forte que vai contra essa onda. Para o historiador, aos poucos, as esquerdas estão se reconectando.
"O bolsonarismo vai entrar em crise. A sociedade brasileira não quer saber de cerceamento das liberdades. Hoje, o governo está funcionando em alas. Mais à frente será o parlamento que vai dar as fichas. São eles que detém o poder de equilibrar, se isso não freiar, caminharemos para um lugar desconhecido, pois será uma ditadura civil. O bolsonarismo nada tem a ver com o núcleo de generais progressistas, mas creio que a ideia morre antes. Por isso, é preciso lutar contra o obscurantismo no campo das ideias até isso passar. Existe uma guerra cultural e de narrativas. Nós, jornalistas, historiadores cientistas sociais e filósofos temos a obrigação de lutar no campo das ideias", sugeriu.