TOPO - PRINCIPAL 1190X148

23 de novembro, um dia para sempre rubro negro

N, no aniversário da conquista da Libertadores pelo Flamengo, jornalista conta história pessoal com a qual flamenguistas e mesmo rivais podem se identificar

Por Gustavo de Almeida em 23/11/2020 às 16:32:15

A primeira vez a gente nunca esquece. Mas quem disse que a segunda não pode ser inesquecível, mesmo que se precise esperar 38 anos entre uma e outra: Foto Conmebol

Futebol é só a mais importante das coisas sem importância, conta um jornalista esportivo atento às coisas do mundo e da vida. Em tempos de pandemia, de 58 atletas contaminados, de mais de 120 mil brasileiros e 21 mil moradores do Rio mortos, isso salta aos olhos. Mas, mesmo em estádios sem público, com times por vezes longe de seus melhores momentos ou tempos de glória, o jogo segue capaz de renovar lembranças, consolidar amizades, curar desavenças, reaproximar pais e filhos.

Essa magia que congela e acelera o tempo ao sabor de memórias a um tempo personalíssimas e coletivas, está presente no texto de Gustavo de Almeida, jornalista e blogueiro. Velho o suficiente para ter visto a primeira conquista da Libertadores, sob a batuta de Zico. E jovem o bastante para esperar, se necessário, outros 38 anos para festejar a terceira, com alguma ajuda dos avanços da Medicina. E o consolo das palavras de Camões, ao contar a história de Jacob, condenado a viver todos os dias, na esperança de um só dia, o de consumar seu amor:

'Começa de servir outros sete anos/Dizendo: Mais servira, se não fora/para tão longo amor/tão curta a vida'.



Ouça a narração do gol decisivo de Gabriel Barbosa, o Gabigol, por Alberto Jesus Lopez, na adolescência um 'nove' como Gabigol, na chilena Rádio Trovador, no podcast do Eu,Rio! (eurio.com.br)


PAIS E FILHOS

Gustavo de Almeida

Faz um ano hoje, e é a primeira vez que eu falo sobre isso. Calma. Não vou revelar nada de mais. É sobre aquilo que está todo mundo falando mesmo: 23 de novembro, um ano da Libertadores impossível do Flamengo.

Não escrevi nada no dia, nem na semana, nem no mês. Simplesmente porque eu não conseguia pensar - na verdade, ainda hoje não consigo. Não encontro uma palavra adequada para definir aqueles quatro minutos.

Vários me convidaram para saudáveis aglomerações a fim de ver o jogo. Recusei, polidamente, todos os convites. Porque eu sabia o que devia ser feito.

For the record: meu sobrinho Matheus tinha uma apresentação de baixo às 11h daquele sábado. E eu declinei de ir.

Não havia como acordar e fazer qualquer outra coisa a não ser andar de um lado para o outro. Acho que joguei FIFA no PS3, algo que faço quando quero não pensar em nada (na pandemia entrei no modo Carreira).

A hora do jogo chegou, e eu sóbrio.

A dez minutos do começo, separei gelo, uma garrafa de uísque Green Label que havia ganho, e alguns amendoins. Fui para a TV Philips 42 polegadas do escritório, coloquei a garrafa, o copo e os amendoins no rack e esperei. Em silêncio. Mal entrava no WhatsApp.

Só quem é Flamengo poderá chegar perto de entender esse estado psíquico.

O restante da família - Marcele e João - ficou vendo na sala. João ainda não tinha idade para ficar absorto em jogo, mas já comemorava e torcia.

E logo aos 15 minutos de jogo, a facada no peito, com o gol do colombiano Borré, depois de um baita vacilo de Arão e Gérson. Coloquei uma dose dupla de uísque.

Nessa hora, a mente humana se enche de presságios e experiências anteriores. A gente se vê no futuro breve, triste pela perda, de saco cheio. O primeiro tempo pavoroso do Flamengo (pelo menos é o que eu lembro) nos mostrava um beco sem saída: um chute a gol apenas, nem lembro de quem. O River perdendo várias chances.

Eu não me levantava da cadeira giratória sem um braço que fica em frente à TV. Veio o intervalo, e fiz o ritual Maracanã: levantei, fui ao banheiro, bebi uma água, voltei e me sentei antes do reinício.

E tome sufoco, e tome medo de sofrer mais um gol, que possivelmente acabaria com tudo. Com tudo mesmo - essa era a sensação. A de que não haveria vida ou mundo se o Flamengo perdesse essa Libertadores.

Lembrei mais uma vez de 1981. Quanta diferença, o Zico fazendo logo no primeiro tempo e finalizando com um golaço de falta, a pancadaria no fim com Anselmo desferindo justíssima porrada no canalha Mario Soto, a festa no Rio, a festa na minha casa - na minha primeira família, pai, mãe, irmão. Eu era o filho. Os anos passaram, 38 deles, e agora eu era o pai.

E sem nenhuma lógica eu disse a minha mulher que o Flamengo viraria. Não lembro direito desse momento, ela contou depois. Só sei que foi no segundo tempo, quando a minha esperança era tão tênue como a daquele milésimo de segundo em 1982 quando Oscar cabeceou no Sarriá e Dino Zoff voou sobre os Alpes para segurar a bola de rapina que classificaria o Brasil para a semifinal da Copa da Espanha.

Aquela esperança que convive com o desespero, o suspiro antes da caminhada no corredor da morte, uma esperança que insistia em morrer por último.

Pensei que tudo era uma ilusão, que aquilo não seria maior do que eu já tinha vivido.

Conquistar a Libertadores não seria maior que o gol do Rondinelli em 1978, que eu vi pelo rádio nas mãos do meu pai, caminhando do corredor para a sala aos berros, cena que descrevo no meu nunca lançado livro O Velho e o Zico.

Não, não seria maior que o gol de Nunes em cima de João Leite, depois de dar um drible simples e destrutivo em Silvestre, no nosso primeiro Brasileiro.

Não seria nada comparado aos dois golaços do Zico contra o Cobreloa, exatamente 38 anos antes.

Não seria maior que o gol do Andrade nos 6 a 0 contra o Botafogo, que o de Toninho Baiano nos 6 x 2 sobre o Palmeiras. Não seria nunca maior que o gol do Petkovic em 2001, o do Angelim em 2009.

Aquilo ia passar logo. Ganhando ou perdendo, o Flamengo seguiria sua vida, seria campeão brasileiro.

Eu sentia então aquela tristeza dos sonhos, de quando você é determinado para ser morto. Você está sonhando que um grupo de bandidos está te assaltando, um deles atira em você, e em vez de morrer, você acorda. E sente por um segundo, "ainda estou aqui".

E foi o que aconteceu, no gol mais importante da história: Arrascaeta toma uma bola, lança Bruno Henrique que devolve para Arrascaeta, este toca já em queda e Gabriel surge com a ponta do pé direito para tocar para dentro, nos fazendo acordar com uma mistura de alívio e enlouquecimento. Se depois do êxtase vem o alívio, no caso desse gol, veio tudo junto, o que o torna incompreensível.

E foi o gol mais importante da história porque o que aconteceu três minutos não foi um gol. Foi um desses sortilégios que os racionais preferem chamar de coincidência, tipo a janela refletir o sol em cima de Figueiroa quando ele marcou o gol do Internacional contra o Cruzeiro em 1975 ou o Zico ser o cara a cobrar o escanteio (ele jamais fazia isso) quando Rondinelli fez contra o Vasco. Eu disse "sortilégio"? Não, foi um acidente geográfico, foi quando o mar entrou no Rio da Prata, em vez de ser o contrário.

Eu vi, porque já tinha ido à janela aos berros para xingar a Argentina, país que efetivamente amo. Xinguei, talvez a Argentina de Jorge Videla, mas segui amando a de Soriano, Cortázar, Borges e Campanella.

Quando retomei meu assento, pronto para uma longa prorrogação e até para o horror dos pênaltis, eis que o Flamengo retoma a posse, bola com Rodrigo Caio, que toca para Diego, este dá um balão para cima, desses que na noite de São João fazem a sanfona parar.

A bola cai pelo resto da vida no chão, quica, Pinola toca de cabeça tentando tirar dali, mas Gabriel, Gabigol, Gabriel, segundo nome de meu filho, consegue chutar forte, indefensável àquela altura do jogo.

Eu pensei que iria chorar, lembrando de todos esses 38 anos, de tudo o que aconteceu entre uma Libertadores e outra. Do crescimento, da faculdade, amigos, trabalho, profissão, casamento, perda dos pais, dos avós, nascimento do meu filho, frustrações, conquistas.

Mas eu não chorei. Fiquei apenas catatônico, sem acreditar naquilo que acontecia.

Porque de fato, o que aconteceu não foi a vida real. Foi o filme comédia-meg-ryan em que no fim um dos dois do casal percebe que errou e sai correndo para resgatar o outro no aeroporto. Foi a cavalaria chegando para salvar os colonos dos bandoleiros. Foi Han Solo chegando com a Millenium Falcon (no primeiro filme) no meio da guerra Rebeldes x Império para ajudar Luke Skywalker. Foi George Bailey chegando em casa em "It"s a wonderful world" e encontrando todos os amigos e a solução para seus problemas.

Sim: não foi de verdade, foi algo que no roteiro da vida não acontece. "You can"t always get what you want", eu ouvi, no dia em que perdi meu pai, de noite, na casa em que eu dormiria - de uma amiga da minha mãe, que já se foi. A gente aprende que não se tem sempre tudo o que se quer.

Gabigol fazer o gol dois minutos depois, e a gente ser campeão em vez de ir para a prorrogação é algo que não me fez chorar porque eu humildemente reconheci que não tenho tantas lágrimas para honrar este episódio.

E aí de repente percebi que aquele momento, a virada inacreditável, tinha sido, sim, mais importante, mais extraordinário do que tudo o que já tinha acontecido comigo: o gol do Rondinelli, os gols do Nunes, do Andrade, do Zico. Perdão, geração 81. Perdão, gerações futuras. Nada foi igual e nada jamais será.

O dia 23 de novembro deveria ser declarado feriado.

Comemoramos duas Libertadores e um milagre.

Um dia chorarei lembrando desse milagre. Não sei quando. Em uma Libertadores, eu era o filho. Na outra, eu era o pai. E nessas horas a gente entende o apego sentimental ao futebol, tão bem descrito em obras como Febre de Bola, do Nick Hornby: é onde o fio de nossas vidas fica mais compreensível, ou menos enigmático, para sermos exatos.

Um fio que é difícil de entender, mas que podemos apenas contemplar.

No livro Futebol ao Sol e à Sombra, de Eduardo Galeano, há uma crónica que deveria ser lida por todos que gostam do futebol - quem leu já sabe de qual estou falando. Na verdade é uma carta de Osvaldo Soriano, sobre quando Sanfilippo, atacante aposentado do San Lorenzo de Almagro, reconstituiu, em 1995, seu gol feito no Boca Juniors em 1962, então considerado o mais rápido da história do futebol argentino. Sanfilippo estava dentro do supermercado que então tomara o lugar onde ficava o estádio. Mas descreve o gol minuciosamente, mencionando a seção de laticínios, a seção de legumes, os caixas. No fim, é aplaudido por dezenas de passantes que haviam parado para ver o homem velho contando as histórias.

E é isto o fio da vida, o que ecoa na eternidade: segundos, minutos, no máximo horas. Porque os dias acabam.

Nunca acabará o 23 de novembro. Agora eu sou o pai.

Por Gustavo de Almeida
POSIÇÃO 3 - ALERJ 1190X148POSIÇÃO 3 - ALERJ 1190X148
Saiba como criar um Portal de Notícias Administrável com Hotfix Press.