"Negro é lindo/Negro é amor/Negro é amigo/Negro também é filho de Deus" é um trecho da canção "Negro é lindo", composta em 1971 por Jorge Ben, que mostra o orgulho que o artista sentia em ser negro. Mas na mesma canção, o cantor demonstra a preocupação a respeito do preconceito racial ao pedir que Deus o ajudasse a ver o próprio filho "nascer e crescer/E ser um campeão".
O motivo desse temor em não conseguir ver o filho de alguém preto conseguir vencer na vida é o preconceito da sociedade brasileira com o afrodescendente, afinal, 11 anos após a música de Jorge Ben, Sandra de Sá descrevia em "Olhos Coloridos" como o racismo era presente no cotidiano ao dizer “Você ri da minha roupa/Você ri do meu cabelo/Você ri da minha pele/Você ri do meu sorriso". E na celebração do Dia da Consciência Negra de 2021, os pretos e pretas do Brasil mostram que muita coisa avançou na inclusão e diversidade racial. Mas ainda é necessário ser feito muito mais.
Diversidade na tela e no palco
Seriado veiculado em 2016 pela TV Globo, Mister Brown conta a história de um famoso artista musical interpretado por Lázaro Ramos, onde mostra toda a vida pessoal e profissional dele, incluindo seu núcleo familiar, de maneira onde os personagens negros ganham protagonismo. Muitos atores elogiaram a ideia argumentando que a produção fugia do paradigma de sempre colocar pretos em posições subalternas. Por isso, desde então, diversos profissionais do ramo e que também são afrodescendentes passaram a ganhar mais destaque na telinha. Um deles é o ator e produtor cultural Cridemar Aquino.
Escalado para a próxima novela das 7 da Rede Globo, “Quanto Mais Vida, Melhor”, que estreia nesta segunda (22), o ator dá vida ao personagem delegado Nunes. Com 24 anos de experiência na profissão, o artista, celebra as conquistas dos atores pretos, e acredita que a estreia tão próxima à data em que se comemora o Dia da Consciência Negra é uma feliz coincidência. Além disso, relembra suas inspirações no ofício.
“Dona Ruth de Souza, Dona Lea Garcia e Dona Ilea Ferraz atrizes incríveis, mulheres negras que serviram de espelho não só pra mim, mas pra vários outros artistas negros e negras desse país”, declarou.
Cridemar Aquino posa como delegado Nunes, seu personagem da nova novela das 7 da TV Globo: Foto: Divulgação/TV Globo
Outro ator que celebra a diversidade racial em produções audiovisuais é Milton Filho. Com destaque em espetáculos premiados como "As Cangaceiras", "Chaves – Um Tributo Musical", "Contos Negreiros do Brasil", "Oboró - Masculinidades negras", o artista gravou recentemente uma série para a Amozon. Além disso, também pode ser visto no primeiro curta-metragem dirigido pelo dramaturgo Rodrigo França, Como Esquecer Um Grande Amor, exibido na 14ª edição da Mostra de cinema negro Zózimo Bulbul, no Rio de Janeiro.
Apesar do extenso currículo, o ator ressalta que ainda falta oportunidade para artistas pretos: Existe sim uma mudança no cenário e na carreira de profissionais negros, mas ainda é preciso avançar mais.
"Essa participação mais ativa do negro na dramaturgia é uma conquista. Deixamos de ser apenas o escravo, o porteiro, a doméstica. Nós pretos podemos interpretar personagens que poderiam ser de qualquer etnia. Há avanço, mas ainda temos um longo caminho a percorrer", enfatiza. E um dos exemplos dessa conquista que Milton cita é o bailarino e professor de dança Raphael Rodrigues, de 35 anos.
Morador de Guadalupe, na Zona Norte do Rio, ele tem 20 anos de carreira e foi descoberto pelo Afroreggae, em Vigário Geral, também na Zona Norte, onde atuou como produtor e diretor de movimento. Com inúmeros projetos em mente, o artista explica que usa da dança como forma de luta.
“Sou um artista preto em prol de uma abertura equitativa no mercado de trabalho. Todos os meus trabalhos envolvem essa temática de forma direta ou não. É uma causa da vida e de fortalecimento das gerações futuras", salienta Rodrigues.
Raphael Rodrigues é dançarino há 20 anos e foi descoberto pelo AfroReggae. Foto: Matheus Renan
Empoderamento feminino aliado à luta contra o racismo
E numa época onde a palavra empoderamento é tão difundida, a musa da Beija-Flor de Nilópolis, Sávia David, também é prova como é possível aliar a luta antirracista ao combate contra o machismo. Influenciadora digital com mais de 180 mil seguidores, ela conhece bem o preconceito e a discriminação.
De origem humilde, Sávia escolheu lutar por igualdade e justiça social através da educação. Formada em Direito e Educação Física e com mais de 30 cursos de especialização na área, a também sambista ressalta que a sabedoria da mulher negra não está apenas em ter cursado uma faculdade, escrever livros ou se tornar artista. Vai muito além disso.
"Somos mulheres incríveis e carregamos diversas histórias de superação, resistência, leniência e de resiliência. E hoje ,somos empoderadas porque fomos além e somos capazes de nos libertar dos conceitos estéticos e assumir toda nossa ancestralidade”, destaca.
Primeira vez na televisão e como porta-voz da diversidade racial
Imagine poder estrear na televisão e logo em uma iniciativa que exalta a pluralidade e a diversidade entre as mulheres negras. Pois foi isso o que aconteceu com a atriz, afrobailarina e pedagoga, Bruna Montenegro, que participa da campanha "Isso é Coisa de Preta", do canal pago GNT.
O objetivo da ação é inverter perspectivas e demonstrar que as mulheres negras têm orgulho de ser quem são, do cabelo, do corpo, das próprias referências e da importância que elas têm no país. Na carreira artística, desde os 8anos de idade, Bruna tem consciência racial , valorizar a ancestralidade e acredita que sua escolha para o projeto se deu por ser uma mulher completamente fora dospadrões impostos pela sociedade, por ser um corpo preto em movimento, mesmo carregando marcas do racismo:
Bruna Montenegro estreou na tv justamente em um projeto que fala sobre o combate ao racismo. Foto: Divulgação
”Apesar de todas essas marcas, eu não desisto e estou sempre procurando ocupar os espaços. Acredito também que minha participação tenha sido por trazer a questão de ser um corpo preto e gordo que dança. E de evidenciar a representatividade para outras mulheres pretas e gordas que muitas vezes desistem dos seus sonhos porque acham que não vão conseguir por conta dos estereótipos impostos pela sociedade", argumenta.
Pretas e pretos na redação e nos jornais
Assim como a inclusão de negros nas telas, nos palcos e nas artes é importante, também é necessário debater outro tema igualmente fundamental. A diversidade racial no jornalismo. Pesquisa divulgada na última quarta-feira (17), mostra que 98% dos profissionais da área afirmavam que o desenvolvimento da carreira é mais difícil se comparado a profissionais brancos. O levantamento faz parte do Perfil Racial da Imprensa Brasileira.
Com o propósito de mudar esse cenário, a jornalista carioca Marcelle Chagas Gontijo criou um grupo de WhatsApp em 2018 chamado Jornalistas Pretos. O que era para ser uma mera troca de ideias foi crescendo, se transformando em debates virtuais com a participação de profissionais do setor em diversas partes do Brasil até se tornar na ONG "Rede Jornalistas Pretos Pela Diversidade na Comunicação".
Com o intuito de debater a diversidade racial nas redações, a Rede JP realizou, nesta sexta (19), o primeiro evento internacional sobre o assunto, no qual participaram conhecidos nomes do jornalismo brasileiro, como Flávia Oliveira, da Globo News, e Luciana Barreto, da CNN Brasil.
Denominado de "1º Encontro Internacional de Jornalistas da Diáspora Africana", o evento discute os novos caminhos da comunicação produzida pelos povos diaspóricos no Brasil e no mundo. Marcelle explica como foi a iniciativa de fazer um encontro virtual a respeito, que se encerra neste sábado (20), justamente no Dia da Consciência Negra.
“A ideia surgiu a partir de discussões realizadas com a rede internacional e a articulação se deu a partir da percepção das semelhanças das questões da prática jornalística no Brasil e nos países africanos e de diáspora africana”, explica Marcelle, que é jornalista há 12 anos.
A jornalista Marcelle Chagas é coordenadora e uma das fundadoras da ONG Rede Jornalistas Pretos. Foto: Reprodução/Facebook
Data como inspiração para música
E o dia voltado para celebrar a consciência negra serviu de inspiração para a cantora Afra lançar um trabalho novo, a canção "M'Empreteço". Composição de levada doce, sublime melodia e texto incisivo, a artista explica que o trabalho exibe com orgulho e sinuosidade a pele negra.
“O single M’Empreteço é um manifesto de amor preto e sem preconceitos. Pego um pouquinho de cada ritmo e transformo em uma leitura própria”, revela a artista que também é conhecida pela militância das causas LGBTQIA+. O trabalho pode ser conferido aqui.
Advogado explica que é necessário se avançar mais no campo jurídico
Embora os exemplos citados na reportagem mostrem o avanço da diversidade racial em várias áreas, o advogado Marcos Thadeu afirma que é necessário ir além porque o preconceito contra os negros no Brasil ainda é muito forte. Embora elogie medidas que tornem mais duras as penas contra o crime de racismo, como a decisão do decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 28 de outubro deste ano, que torna o crime de injúria racial como imprescritível e inafiançável, equiparando-o ao do racismo, ele explica que é necessário que a conscientização sobre o tema seja mais ampla.
“Atendo casos assim quase que diariamente. O negro não pode se calar. A lei deve ser cumprida. A população deve fazer valer os seus direitos, não pode abrir mão disso. A lei não socorre os que dormem. Somente com a denúncia dos fatos, o autor do crime poderá ser penalizado. Seja por agressão física ou verbal, a vítima deve ligar para 190, reunir provas, como fotos, vídeos e relatos de testemunhas e pessoas que presenciaram o crime. Em seguida ir à delegacia mais próxima e registrar a ocorrência para que o agressor seja identificado e punido pelo ato”, enfatiza Thadeu.
Procurador Geral da Câmara Municipal de Mesquita e advogado criminalista Vagner Marcolino vai na mesma direção e afirma que, mesmo com todos os avanços, o caminho a ser percorrido ainda é distante.
“Estamos no caminho certo e com esperança em dias melhores. Vamos seguir e colocar em prática os ensinamentos dos nossos ancestrais que chegaram aqui e foram escravizados. Hoje lutamos pela liberdade e o direito de ocupar todos os lugares. O negro pode ser o que quiser, pode estudar, fazer mestrado doutorado e por aí vai. Somos potência e resistência”, argumenta Marcolino.