"A celeuma levantada pela possibilidade de construção do novo autódromo do Rio de Janeiro no bairro de Deodoro, na Zona Oeste da capital, vai aumentar nos próximos dias. Ambientalistas tentam mostrar à Prefeitura do Rio que no lugar escolhido para se ouvir ronco de motores mora a Floresta do Camboatá. A cobertura vegetal no lugar é um dos raros redutos de Mata Atlântica em terrenos planos na capital.". Assim começa a última reportagem assinada pelo jornalista Rogério Daflon, no domingo anterior ao atropelamento ocorrido em 7/7/2019, na Rua Pinheiro Machado, via de ligação entre Botafogo e Laranjeiras, na zona sul carioca, acidente que lhe custou a vida. A matéria faz parte da coletânea recém-lançada com 45 dos melhores textos de sua autoria (ou em parceria) publicados na imprensa nacional.
Somada a "O Globo", "Jornal do Brasil", "Canal Ibase", Agência Pública e Casa Fluminense, a matéria, originalmente veiculada no portal "O Eco" em 30 de junho daquele ano e reproduzida em "Andar a pé: uma obrigação profissional" (Ibis Libris, 2021), foi uma entrevista concedida pelo pesquisador do Jardim Botânico, Haroldo Cavalcante de Lima. Sob o título de "No meio do caminho de um autódromo, há uma floresta", Daflon emula o poema de Carlos Drummond de Andrade, um dos expoentes da poesia brasileira no século 20: a paródia do poeta coincide com o que familiares, a exemplo de colegas de profissão, atestam sobre sua escrita e o modo de fazer jornalismo. Tanto em depoimentos incluídos na última parte do livro como enquanto conversavam com a reportagem, na noite da última sexta-feira (3), quando a obra foi lançada, na Livraria Blooks, em Botafogo.
"Uma referência, principalmente na costura, no apuro, com o texto bem-escrito. É um cara que está fazendo muita falta, mas deixou esse legado maravilhoso, essas reportagens importantes pra gente debater", resume o jornalista Emanuel Alencar, assessor de Sustentabilidade e Transparência na Secretaria Municipal de Meio Ambiente do Rio, que entrou no jornal "O Globo" em 2007, onde Daflon teve duas passagens, a partir dos anos 1990, e a quem reencontrou no portal de notícias sobre pautas ambientais. "Foi meio que extensão de um amigo de longa data".
Sobre a receita do melhor texto jornalístico, Alencar é complementado por uma colega comum a ambos, Camila Nobrega, que também conviveu com o já experiente jornalista em "O Globo", além do "Canal Ibase", mantido pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas. "Toda vez que ele ia fazer uma reportagem, tinha um jeito muito particular, colhendo informações de pouquinho em pouquinho, sentindo a cidade, caminhando muito. Esse lado humano de querer reportar sobre o que ele vivia e o que outras pessoas viviam, mas não dessa distância de estar sempre numa equipe de redação", conta ela, que, além das profissionais, partilhava afinidades musicais com o repórter.
"A gente trocava muito sobre música. Ele foi a primeira pessoa que pegou a minha alfaia [instrumento de percussão] quando chegou no Rio, e tem o nome de Dolores por causa de Dolores Duran, que a gente estava escutando. Não é fácil encontrar parceria assim", recorda-se.
A perda desse colega, amigo, irmão, pai foi tão chocante quanto sintoma dos desafios cotidianos vividos na cidade, maravilhosa apenas em parte. Como diz o jornalista e ex-repórter de "O Globo", Pedro Motta Gueiros, no texto sobre a faceta de jornalista esportivo do homenageado, incluído no livro, "Daflon se foi pela falta de humanidade da cidade que ele tentava humanizar". Responsável por trazer à luz temas com a profundidade necessária para abordar o direito à moradia e a gestão de resíduos, Rogério Daflon teve no reconhecimento da série de reportagens “Desleixo sustentável”, escrita em coautoria com Emanuel Alencar, um dos tantos pontos altos de sua carreira. De 18 a 24 de março de 2012, ano marcado pela realização simultânea na capital fluminense da Rio+20 e a Cúpula dos Povos, a dupla publicou as seis matérias que lhes renderam o prêmio Abrelpe de Reportagem, concedido pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Sólidos, e em 2013 o ISWA, entregue em Florença, na Itália.
"Então, a gente começou a fazer uma tabelinha mais recorrente na atividade profissional", relata Alencar, autor de “Baía de Guanabara: descaso e resistência" (Mórula), cuja segunda edição saiu em agosto.
Amigos desde a adolescência, Daflon e Rodrigo Otávio Cruz Moreira trilharam o caminho do jornalismo, nutrindo-se das pequenas grandes coisas do cotidiano que permeiam a atividade e instigam o gosto por palavras, histórias, andanças. "Me lembro uma vez ele falando sobre a relação com o editor: 'O cara passa e explica a pauta. Eu vou e faço meio que tudo diferente do que ele falou. Entrego, ele publica e fica aquele silêncio meio que constrangedor'", confidencia Rodrigo Otávio, órfão como tantos que prezaram pela companhia dele. "Era do time dos andarilhos, como eu".
Carioca de corpo-e-alma e alvinegro de coração, Daflon estava no Maracanã para cobrir a final da Taça Libertadores, em 2008, entre Fluminense e LDU (EQU), na companhia do tricolor Rodrigo. Nas palavras do amigo, Rogério percebeu a "milongada" do goleiro equatoriano Cevallos, que fez o árbitro da partida voltar o pênalti convertido por Thiago Neves. Na segunda cobrança, o meia do Fluminense chutou para defesa do adversário, e a disputa terminou com o vice-campeonato da equipe carioca.
"Acho que o Daflon me ajudou muito, com toda a experiência como jornalista, bom leitor, pesquisador, me ensinou a pensar jornalismo assumindo a perspectiva que a gente acredita na vida. E nisso, a gente fez um percurso que em alguns momentos foi parecido", explica Camila, coautora com Martha Neiva Moreira do texto que abre a seção "Moradia" da coletânea. Os dois tinham estruturado um projeto em parceria, antes do acidente. "Me acessava muito também, eu trabalho faz algum tempo com conflitos socioambientais. É uma perspectiva jornalística, mas vem com base no debate acadêmico, que está sendo feito nas universidades, nos movimentos sociais. Como pensa meio ambiente sem pensar só natureza e pessoas? Pensar conflitos socioambientais também é querer entender a raiz das coisas, as hierarquias de poder".
"A memória do Rogério sempre me vem um pouco nessa necessidade que eu tenho de expor os conflitos urbanos, uma linguagem que privilegia os estratos menos favorecidos da sociedade. Essa indignação dele eu procuro sempre levar comigo", inspira-se Alencar.
O saudoso Rogério Santos Daflon Gomes se notabilizou profissionalmente por uma máxima do também jornalista Gay Talese: "O jornalismo é a arte de sujar os sapatos". Viveu para ver a conclusão das obras da Transolímpica, terceiro corredor expresso de ônibus inaugurado como contrapartida à Rio-2016, conexão entre Deodoro e Recreio que passa pela Vila Autódromo, assim como a continuidade da própria favela, construída nos anos 1970, no entorno de outra pista de corrida, o extinto Autódromo de Jacarepaguá. Ainda que reduzida em extensão e no tamanho das residências bem como em relação à permanência de apenas 2,5% dos moradores da favela – de quatro mil para cerca de cem habitantes –, em menos de uma década. A mesma oportunidade ele não teve sobre a transformação da Floresta do Camboatá em Refúgio de Vida Silvestre, aprovada pela Câmara dos Vereadores em novembro deste ano.
Mesmo assim, de onde quer que exercite “o raro dom de sorrir com os olhos”, como escreve Tulio Brandão na Introdução da obra, Daflon deve estar às gargalhadas com essa conquista assegurada à cidade.
Assista, no vídeo abaixo, ao que disseram alguns dos presentes na noite de lançamento e sessão de autógrafos de "Andar a pé: uma obrigação profissional".
Primeiros passos da homenagem póstuma
A produção de "Andar a pé" foi gestada a partir de ideia dada por uma irmã do jornalista, durante o velório dele. "A Alice falou de fazer um livro. A gente fez uma campanha de vaquinha virtual, foi um sucesso tremendo", cita Alencar, responsável pela criação do financiamento coletivo e o texto de abertura de "Meio ambiente". Mas o adjetivo não é em vão tampouco exagerado: no intervalo de 40 dias, menos de dois meses completos após o falecimento de Rogério, para quem "andar a pé é uma obrigação profissional", a campanha arrecadou 154% do valor estipulado. Já o livro, pensado para contar com 20 reportagens distribuídas por 100 páginas, teve impresso o triplo de páginas e mais do que o dobro de matérias.
Durante a noite de lançamento, as irmãs Alice e Maria Lucia se revezaram nos autógrafos da obra.
Outros ares
Dado o apuro com as palavras, Rogério Daflon também se dedicou à vida de escritor, tendo lançado quatro livros, quase todos em coautoria, sobre esporte, sua interseção com a sociedade, além de um que iluminou os conflitos na mineração. Como pesquisador, publicou dois artigos acadêmicos e se especializou em Planejamento Urbano antes de se tornar mestre, também pelo Ippur/UFRJ, em 2017. Sua dissertação abordou os ribeirinhos urbanos do Rio de Janeiro, com ênfase em 300 famílias removidas de suas residências em Manguinhos, entre 2008 e 2009. Para ler o trabalho, orientado pela professora do Ippur e autora do prefácio do livro, Luciana Corrêa do Lago, clique aqui.
No dia seguinte ao acidente, que lhe tiraria a vida quase dez dias depois, Daflon começaria a trabalhar na área de comunicação do Congresso Mundial de Arquitetura, evento realizado pela União Internacional dos Arquitetos (UIA) e programado para julho de 2020. Oito meses após a partida dele, no entanto, familiares e amigos passaram a dividir o luto com todo o mundo devido à pandemia de covid-19, por isso a atividade ocorreu remotamente, em 2021. Parceiro desde "O Globo", Tulio Brandão se reencontraria com o colega de redação na organização do Congresso, que ocorreria presencialmente na cidade porque o Rio de Janeiro fora eleito Capital Mundial da Arquitetura pela UIA, título que valeria por todo o ano passado.
Serviço:
Título: "Andar a pé: uma obrigação profissional"
Autor: Rogério Daflon (in memoriam); organização de Alice Daflon, Ana Beatriz Duarte, Maria Lucia Daflon
Editora: Ibis Libris
Páginas: 304
Ano: 2021
Preço: R$ 60,00
Ouça, no Podcast do Portal Eu, Rio!, as ponderações dos jornalistas Emanuel Alencar e Camila Nobrega sobre o amigo e colega de profissão Rogério Daflon.