Caminhando pela única rua que restou do que um dia foi uma comunidade com mais de 400 famílias, Maria da Penha, de 58 anos, contempla as centenas de trabalhadores que desembarcam para mais um dia de trabalho nas instalações do Rock In Rio. Há menos de 200 metros do local onde vive, a dona de casa espia a movimentação atípica na região e sente saudades dos tempos em que a comunidade era tão viva quanto o festival.
Moradora da Vila Autódromo há mais de 20 anos, Penha presenciou e lutou contra a demolição do único lar que conhecia. Em agosto de 2016, enquanto a cidade festejava a abertura dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, uma fração dos moradores estava ocupada mudando-se para novas casas. Dona Penha e outras vinte famílias fizeram parte do pequeno grupo que resistiu à remoção contra todas as expectativas, após anos de luta e a saída de 97% dos moradores originais do local.
Para os que ficaram, a Prefeitura negociou um acordo coletivo de reassentamento no qual cada família teria direito a uma casa na única rua que restou da comunidade, além de prometer obras de urbanização nos espaços coletivos como uma quadra esportiva, uma praça e um pequeno centro comunitário.
Mais de seis anos depois e diversas petições encaminhadas pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Prefeitura finalmente retornou ao local para terminar de construir os espaços externos prometidos. Para Penha, nenhuma quadra de esportes pode tirar dos moradores o sentimento de abandono.
— Quando você vê aquilo que você levou a vida inteira para construir ser demolido em segundos, você perde um pouco de esperança nas coisas. As obras se iniciaram, mas a gente continua abandonado aqui. Não temos mercado perto, nem posto de saúde, nem segurança. Isso aqui à noite fica um breu total! — reclama.
Apesar de estar localizado bem ao lado da sede do maior festival de música do Rio, os moradores relatam dificuldade em conseguir acessar o transporte público e até mesmo realizar as tarefas mais básicas do dia a dia, como ir ao supermercado. Dona Dalva, de 92 anos, precisa de ajuda para se locomover e conta que quando sente vontade de comer pão, tem que caminhar por mais de 30 minutos para chegar até a padaria mais próxima.
— Aqui nós estamos totalmente isolados, é muito difícil para mim ter que andar tanto para conseguir comprar meus remédios e as coisas para eu comer. O ponto de ônibus mais perto é só lá do outro lado, parece que eles tiraram tudo daqui para dificultar a nossa vida — conta Dalva.
Moradores relatam problemas nas casas entregues e falta de segurança no local
Desde a entrega das casas, ainda em 2016, a Defensoria tem recebido denúncias dos moradores sobre problemas estruturais nos imóveis como rachaduras, infiltrações e mofo nas paredes. Com a umidade cobrindo todo o teto de sua cozinha e do banheiro, Iara Dias relata que a situação tem causado problemas respiratórios nela e no marido.
— Nós já entramos em contato com a Prefeitura diversas vezes, eles vêm aqui e consertam, só que passa um tempo e o problema volta. A maioria das casas tem algum problema, é uma situação muito desgastante para a gente. Quando chove, a água escorre pelas paredes e nós não temos condições de ajeitar isso por conta própria — conta.
Outra denúncia feita pela comunidade é sobre a falta de segurança no local que fica isolado e com pouca iluminação. A acupunturista Sandra de Souza, de 54 anos, teve a casa furtada menos de um mês atrás e juntou o pouco dinheiro que tinha para levantar mais o muro de sua casa na tentativa de prevenir novos furtos.
— Quando eu saio de casa, eu fico angustiada com a possibilidade de alguém ter entrado lá e levado o pouco que a gente tem. Vários moradores aqui já foram furtados também, vivem entrando nas casas e pegando botijão de gás e alumínio dos portões. A gente vive com medo né, mas não tem o que fazer, a noite eu não ando sozinha aqui de jeito nenhum — relata Sandra.
Dificuldade da Prefeitura em cumprir os acordos
Desde 2016 a Defensoria Pública vem acompanhando a situação da Vila Autódromo por meio de visitas técnicas e constante troca de informações com os moradores. Segundo o subcoordenador do Núcleo de Terras e Habitações, Ricardo de Mattos, a Instituição teve que enviar inúmeros processos de execução para garantir o andamento do que foi acordado.
— Os acordos foram realizados em 2016 e depois disso, a prefeitura não cumpriu nenhum deles por espontânea vontade, nós tivemos que entrar com um processo na justiça para execução do mesmo. Neste processo, a prefeitura chegou até a impugnar alegando que o acordo que ela mesmo assinou não era válido. Só depois de muitas multas é que eles finalmente vieram terminar as obras — explica.
Outra crítica do defensor em relação ao acordo é que até hoje a Prefeitura não realizou o deferimento do Habite-se, documento que atesta que a residência foi construída de acordo com as normas estabelecidas pela Prefeitura local e a concessão de uso para os moradores que receberam as casas.
— A regularização fundiária não foi completada até agora. Sob uma perspectiva registral, eles ainda estão irregulares. Em tese, estar irregular sempre deixa a pessoa sujeita à multa, embargo de obra, demolição... Além de dificultar o exercício de outros direitos perante terceiros. Pode não conseguir vender o imóvel, dar em garantia, essas coisas — ressalta o defensor.
Ricardo de Mattos destaca ainda que o mesmo processo de execução do acordo serve para as obras, o Habite-se e a concessão de uso.
— A Defensoria ajuizou essa execução, que impõe multa no caso de descumprimento. Falta também que o poder público termine as calçadas no local — completa.
Fonte: Defensoria Pública RJ