O presidente Lula deveria revogar de uma só vez, logo que assuma a Presidência, as 200 medidas do atual governo que representam retrocessos graves em várias áreas e não dependem do Congresso para serem suspensas. A opinião é da socióloga Natália Szermeta, presidenta da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do Psol, entidade que, em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, levantou as normas, portarias e decretos que compõem o relatório intitulado “Revogaço” (clique para ler na íntegra). Entre elas, sugerem a suspensão dos decretos que aumentaram o acesso a armas e o fim das escolas cívico-militares.
“Todas essas 200 medidas podem ser revogadas com uma canetada. Seria um ato simbólico, um recado muito importante”, afirma Natália. Outro “recado” significativo, na sua avaliação, seria Lula não permitir que se anistie os agentes públicos que cometeram crimes na gestão atual. “Garantir que eles não estarão acobertados pelo privilégio de não serem presos. Porque ou a gente manda recados importantes e fortes desde o início do governo, ou vamos conviver com o medo de que eles retornem em quatro anos.”
A pesquisa do Revogaço, documento com quase 200 páginas, analisou cerca de 20 mil medidas infralegais do governo, entre decretos, portarias, resoluções e instruções normativas, atos de ofício que podem ser revogadas imediatamente pelo novo governo; e Medidas Provisórias, Projetos de Lei e Emendas Constitucionais, cuja reversão exigirá processos de pactuação política mais amplos, envolvendo Congresso Nacional e os partidos políticos.
Natália destaca, a concentração, de um lado, de medidas de desmonte democrático, restrigindo a participação social, com o cancelamento de conselhos da sociedade civil, e, de outro, voltadas à destruição de políticas públicas por meio do estrangulamento orçamentário. Foi o caso, entre outros, do corte generalizado de recursos para os programas de combate à violência contra mulheres e populações LGBT.
O relatório também demonstra que o governo atuou para o esvaziamento do SUS, a flexibilização das multas ambientais e a facilitação do garimpo. Entre os decretos, Natália critica, por exemplo, o que autorizou o emprego das Forças Armadas para Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em terras indígenas, medida que passa por cima dos órgãos fiscalizadores, como o Ibama ou a Funai.
Além de sistematizar as iniciativas que poderão ser revogadas pelo novo governo, o trabalho das fundações identificou o que a socióloga considera “o modo de destruição” próprio do governo Bolsonaro. “Pela avaliação dos pesquisadores, estamos diante de um novo modo de governar o Brasil, uma lógica de Estado muito autoritária”, diz. “Só com canetadas, Bolsonaro reduziu imensamente os direitos e mais do que isso: esvaziou as políticas.”
De acordo com o estudo, foram mais de 400 decretos entre 2019 e setembro deste ano. E muito mais Medidas Provisórias do que em outros governos. O governo foi bem proativo no atendimento das demandas de segmentos que o apoiam, como o agronegócio ou os militares, que ganharam muitos cargos na administração pública do Estado. Ou, ainda, no tema do armamento, objeto de 29 decretos e portarias para aumentar o acesso e o uso de armas, fomentando uma violência que se inscreveu também nas escolas cívico-militares.
A pesquisa estruturou o conteúdo em quatro eixos: Método Bolsonaro de Destruição Orçamentária; Método Bolsonaro de Destruição do Público; Método Bolsonaro de Destruição Ideológica e Método Bolsonaro de Destruição institucional. Segundo o documento, esse modo, em seu conjunto, produz a asfixia material das estruturas do Estado, inviabiliza os sentidos públicos e universais da Constituição de 1988, deslegitima a cidadania junto à população e legitima a violência e o autoritarismo; e desarticula as políticas públicas em todos os níveis (federal, estadual e municipal), em todas as áreas do Estado. “O Bolsonaro entregou muita coisa para um setor da nossa sociedade, e de modo bastante nocivo, sem debate com a sociedade e com o Congresso, abusando do poder”, afirma Natália.
O relatório do Revogaço foi encaminhado aos grupos de trabalho da equipe de transição do governo. E a equipe que o produziu continuará a pesquisa até o final do mandato de Bolsonaro, em 31 de dezembro. “Esperamos que as medidas possam ser revogadas, e que a gente tire algumas lições desse projeto”, diz a presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco. Ela acredita que o documento poderá contribuir com o novo governo, e também servir de instrumento para fortalecer a mobilização, uma vez que os movimentos sociais saberão que existem, e quais são, as medidas que podem ser revertidas. Nesse sentido, serão realizadas “lives”, debates e eventos de esclarecimento nas diferentes áreas que envolvem as medidas revogáveis — entre elas saúde, educação, economia, meio ambiente, agricultura, direitos humanos, etc.