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Resgates em ambiente doméstico de trabalhadores escravizados aumentaram 1000% em seis anos

Operações do Ministério Público do Trabalho começaram apenas em 2017, e revelam até 40 anos de servidão

Por Portal Eu, Rio! em 09/05/2024 às 17:52:46

Irmã de Sônia Maria de Jesus

O trabalho escravo no ambiente doméstico é uma problemática de gênero, de raça e de classe social. A afirmativa é de debatedores que em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH) nesta segunda-feira (6) apontaram a invisibilidade a que são submetidas as vítimas desse crime, em sua grande maioria mulheres, muitas vezes já desde a tenra idade. O debate insere-se no ciclo de audiências públicas para discutir a Sugestão Legislativa (SUG 12/2018) que institui o Estatuto do Trabalho, que tem como relator da matéria o próprio presidente da CDH, senador Paulo Paim (PT-RS).

Auditores fiscais do Trabalho e especialistas em relações laborais alertaram para peso de gênero, cor e origem para escravização

Secretária Nacional da Política de Cuidados e Família do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Laís Abramo salientou que o trabalho escravo, forçado ou em condições análogas a de escravização constitui uma gravíssima violação aos direitos e princípios fundamentais do trabalho e aos direitos humanos das pessoas submetidas a tal condição:

— O trabalho escravo configura, ao lado do trabalho infantil, uma das antíteses mais claras à noção de trabalho decente. O Brasil vinha se destacando no combate a essa chaga. (...) Infelizmente, esse esforço foi enfraquecido em anos recentes. Laís lembrou que existem em todo o mundo seis milhões de mulheres em situação de trabalho forçado.

Ouça no Podcast do Eu, Rio! a reportagem da Rádio Senado sobre o impacto do trabalho doméstico em condições análogas à escravidão sobre a vida de mulheres pretas, pobres e excluídas da escola.


Casos mais graves em residências chegam a ultrapassar 40 anos de servidão

Um dos perfis típicos no contexto do trabalho escravo ou análogo à escravização é formado por mulheres negras e de proveniência muito humilde. Dois exemplos nortearam o debate: Sônia Maria de Jesus, resgatada no ano passado, após 40 anos de trabalho não remunerado com a família do desembargador Jorge Luiz de Borba, em Santa Catarina, e Madalena Gordiano, regatada em 2020, também após quatro décadas de cerceamento a seus direitos, em Pato de Minas (MG), com a família Milagres Rigueira.

Além de não serem remuneradas pelo trabalho que executaram, elas não puderam usufruir de férias e folgas semanais, não tiveram acesso à educação e a saúde, além de sofrerem restrição de liberdade, com pouco ou sequer algum convívio social.

Procurador do Trabalho do Ministério Público do Trabalho, Thiago Lopes de Castro, que atuou no resgate da trabalhadora doméstica Madalena, demonstrou as evidências que mostram as similaridades entre os dois casos e outros tantos no Brasil:

— Ambas nasceram em 1973, e hoje têm 50 anos. Madalena foi resgatada aos 47 anos, Sônia aos 49. Ambas foram resgatadas após 40 anos de submissão à escravidão contemporânea. Ambas trabalharam para duas gerações da mesma família. Ambas as famílias exploradoras são compostas por quatro filhos que tiveram pleno acesso à educação formal e hoje estão muito bem inseridos profissionalmente. (...) Elas são vítimas de trabalho infantil doméstico, e foram privadas da educação formal por essas famílias, que não as acolheram, mas as exploraram.

Segundo Castro, o grupo móvel de combate ao trabalho escravo só realizou o primeiro resgate de trabalho doméstico em 2017. Entre esse ano e 2020, foram apenas 12 resgates em todo o país. A partir do caso da Madalena, esse número subiu para 31 resgates em 2021, 35 em 2022, em 41 em 2023.

— Aumento de mais de 1.000% no número de resgates, mas que nós sabemos que é insignificante, simbólico. (...) Há se de supor que o número de trabalhadoras domésticas escravizadas certamente corresponda a alguns milhares — alertou o procurador.

Castro esclareceu que os trabalhadores rurais escravizados passam por essa situação de forma temporária, mas as trabalhadoras domésticas acabam sendo submetidas a essa condição por décadas, tendo “a infância e a juventude roubadas”.

Liminar no STF foi "Desresgate" e permitiu volta de Sônia de Jesus ao cativeiro doméstico

O caso de Sônia foi amplamente explorado pelos debatedores, que se preocupam o com o que eles chamaram de “desresgate”, após decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça ter permitido, por liminar, que ela retornasse para a casa do desembargador Borga.

— Essa foi uma decisão inédita no Judiciário brasileiro e causa perplexidade porque é o próprio Poder Judiciário institucionalizando uma cultura escravagista que perdura há 500 anos, e cuja abolição já aconteceu há 135 anos. O Estado tem de ser o primeiro a abolir esse tipo de cultura — recomendou o procurador do Trabalho.

Ele salientou que não se pode compactuar com famílias que acionam o Judiciário para pedir a declaração de filiação afetiva das trabalhadoras, quando na verdade há a exploração. Ele também disse ser importante haver mais flexibilização de ingresso para entrada em domicílios quando houver denúncias e a necessidade de uma assistência pós-resgate, “de forma que possa vislumbrar uma vida livre e autônoma” às vítimas.

A história de Sônia Maria de Jesus, de 50 anos – que foi resgatada em uma operação contra o trabalho análoga à escravidão da casa de um desembargador e que depois retornou à residência dos investigados – abre um precedente perigoso para o combate a esse tipo de crime, argumentou nesta segunda-feira (6) o coordenador-geral de Fiscalização do Trabalho do Ministério do Trabalho (MTE), André Roston.

“O precedente para as próximas vítimas de trabalho escravo é desastroso para a política pública. Em 30 anos, a gente nunca enfrentou uma situação como essa, de se negar às vítimas de trabalho escravo o direito ao resgate. Isso foi negado agora à Sônia”, afirmou o auditor fiscal, acrescentando que o caso pode fazer com que esse direito ao resgate seja negado a vítimas de trabalho escravo.

André Roston fez o comentário nesta segunda-feira (6) em debate sobre o trabalho escravo no ambiente doméstico na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado. A caso da Sônia foi o principal assunto da audiência, que contou com a presença dos irmãos biológicos dela, Marta de Jesus e Marcos José de Jesus.

A irmã mais nova da Sônia, Marta de Jesus, de 34 anos, disse que a mãe delas, Deolina Ana de Jesus, passou a vida inteira procurando pela filha, que foi levada quando tinha 9 anos de idade sem o consentimento da família, em Osasco (SP).

“Essa era a busca constante. Dava o endereço que não existia, e aí nós íamos até o endereço e não tinha ninguém. Dava o telefone que não existia. E assim foi a saga da minha mãe até a morte dela. A minha mãe dizia, eu vou morrer e não vou rever a minha filha. E assim aconteceu”, lamentou Marta. A mãe da Sônia morreu em 2016.

Auditor fiscal do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), André Roston afirmou que o trabalho da mulher é invisibilizado, por isso, perto de 90% das pessoas resgatadas são do sexo masculino.

Sobre o caso de Sônia, Roston enfatizou que era direito dela, como vítima, não ter tido contato com os seus opressores após o resgate, o que gera um perigoso precedente, segundo o debatedor:

— E isso foi negado à Sônia. A gente corre um sério risco de que esse direito seja negado as próximas vítimas.

Defensor público da União (DPU), William Charley afirmou que a situação da Sônia é muito grave e que não cabe à vítima ser questionada “se ela quer se livre ou não”.

Caso de Sônia, surda e afastada da família biológica, revela os piores traços da exploração velada

A coordenadora do Instituto Movimento Humaniza (IMH-SC), ex-senadora Ideli Salvatti (SC), enfatizou que Sônia foi vítima de trabalho infantil, ao ter sido tirada de sua família aos nove anos. Com deficiência auditiva, ela nunca teve acesso a Libras ou qualquer outro tipo de educação formal:

— Esse procedimento de resgate não se deu em um domicílio qualquer, mas ocorreu na casa de um desembargador. Foi resgatada numa operação muito clara e foi encaminhada ao abrigo para ter as condições mínimas. E a família fez uma solicitação judicial de direito de visita ao STJ [Superior Tribunal de Justiça], que não só deu o direito de visita, mas a possibilidade de ela retornar ao local onde ela conviveu [com a família]. É um conjunto de peculiaridades inadmissíveis. O desresgate é inédito, nunca aconteceu.

Ideli cobrou que a Segunda Turma do STF analise, após oito meses, o mérito da questão.

Irmã de Sônia, Marta de Jesus disse que sua mãe morreu procurando pela filha. Ela negou que a mãe tenha dado a menina à família de Santa Catarina. Disse que sua mãe apenas deixou que ela fosse cuidada, mas mantendo contanto com a família biológica, o que nunca mais aconteceu.

— A minha mãe dizia: "eu vou morrer e não vou rever a minha filha". Como ela [Sônia] está hoje? O que está acontecendo? Não sabemos — lamentou Marta, ao enfatizar que ela e os demais irmãos tiveram acesso à educação, diferentemente de Sônia, e que querem o retorno da irmã à família biológica.

Negação e desvalorização das tarefas domésticas geram subnotificação de casos

A presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Luciana Paula Conforti avaliou que "há negação e desvalorização do trabalho doméstico" e que há muita subnotificação e dificuldade de resgate pelos casos ocorrerem no âmbito de residências.

Segundo Luciana, o trabalho doméstico é listado como uma das piores formas de trabalho infantil. Ela pediu que seja votado o quanto antes projeto de lei que concede pensão especial para acolher essas trabalhadoras vítimas da escravização.

A secretária Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Anna Paula Feminella, adverte que esses empregadores confiam na impunidade para manter os resquícios escravocratas:

— Estamos falando dos direitos humanos de uma cidadã. Quantas mulheres surdas, com deficiência, podem estar em uma situação como a dela? Temos de falar também em deficiência, que ainda é um tabu. Não podemos tratar isso como um detalhe, essa questão da pessoa com deficiência também está em jogo.

Para Valdirene Boaventura Santos, secretária de Assuntos Jurídicos do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Domésticas do Estado da Bahia, a categoria ainda continua na “invisibilidade nacional sendo escravizada”:

— Nós, como trabalhadoras domésticas, precisamos de respeito. Todas nós aqui queremos Sônia livre, queremos as “Sônias” livres.


Desembargador segue investigado por super exploração de empregada doméstica

O caso da Sônia Maria de Jesus veio à público em junho de 2023, quando ela foi resgatada em uma operação realizada na casa do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) Jorge Luiz de Borba, em Florianópolis (SC). Ele e a esposa, Ana Cristina Gayotto de Borba, são investigados por supostamente terem submetido Sônia à condição análoga à escravidão por 40 anos. Ambos negam a acusação e sustentam que Sônia é uma pessoa da família.

Dois meses depois do resgate, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do ministro Mauro Campbell Marques, determinou que os investigados pudessem reencontrar Sônia. A decisão ainda possibilitou que Sônia regressasse à casa dos investigados caso assim desejasse, o que de fato aconteceu.

Campbell discordou da conclusão do Ministério Público do Trabalho de que Sônia teria sido submetida a condição análoga à escravidão. Segundo o relator do caso no STJ, seria “nítido que, pelos últimos 40 anos, a suposta vítima do delito viveu como se fosse membro da família, não havendo razões, portanto, para se obstar o pleito formulado pela defesa”.

A Defensoria Pública da União recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para impedir que os investigados reencontrassem Sônia até o final da investigação, argumentando que o encontro viola a norma de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica e permitiria o constrangimento dela pelos supostos agressores.

Citando a decisão do STJ, o ministro do STF André Mendonça negou o pedido da defensoria pública. O habeas curpus negado ainda precisa ser analisado pela 2ª Turma do STF.

Sem escola, sem saúde, sem vida social além das paredes, por mais de quatro décadas

O defensor público da União (DPU), William Charley, que atuou no caso da Sônia, esteve presente na Comissão de Direitos Humanos do Senado. Ele contou que Sônia, que é surda, nunca teve educação formal, não tinha vida social fora do núcleo familiar dos Borba, e não teve acesso à saúde.

“Perguntei ao desembargador, por que o senhor não colocou a Sônia na escola? ‘Não, porque ela não aprendia nada. Ela é incapaz de aprender.’ Por que o senhor não levava no posto de saúde? ‘Não, tem um médico, um dos amigos meus, que vem aqui de graça tratar da pessoa’”, revelou o defensor.

William afirmou ainda que Sônia faz trabalhos domésticos desde os nove anos de idade e é analfabeta, enquanto os demais filhos da família são profissionais bem sucedidos.

“São pessoas que têm curso superior, graduação, são profissionais liberais e bem-sucedidos. E a Sônia não convivia com a família no que é a parte boa, só ficava na família na parte do trabalho doméstico”, acrescentou.

O vice coordenador do Grupo de Trabalho sobre trabalho doméstico do Ministério Público do Trabalho (MTP), Thiago Lopes de Castro, afirmou que o caso da Sônia Maria de Jesus é emblemático para o combate ao trabalho escravo no ambiente doméstico.

“Ela retornou para essa família sem ter tido o devido amparo, o devido momento para a sua ressocialização. E essa decisão é inédita no Judiciário Brasileiro, cabe destacar, e causa perplexidade. Causa perplexidade porque é o próprio Poder Judiciário institucionalizando uma cultura escravagista”, destacou.

Segundo o procurador, Sônia dormia em um quarto fora da casa principal, trabalhava de domingo a domingo, sem férias e sem receber salário.

Identidade foi negada até os 45 anos de vida, por falta de documentos oficiais e fotos

O auditor fiscal do MTE, André Roston, também argumentou que a investigação demonstrou que Sônia não era da família, uma vez que as fotos nas redes sociais da família não a incluíam.

“Então essa percepção, ou esse tratamento dado como trabalhador e não como integrante da família, ela saía das próprias fotos, dos registros e das marcações e discursos da própria família”, destacou.

Roston acrescentou que Sônia não existia formalmente até os 45 anos de idade, quando teve seu primeiro Registro Geral (GR) expedido, em 2019. “Que pai ou mãe deixa seu filho não existindo formalmente até os 45 anos de idade?”, questionou.

A irmã de Sônia, Marta de Jesus, também questionou a versão da defesa dos acusados, citando que deixaram Sônia analfabeta. “A minha mãe negra, periférica, analfabeta, não tem um filho analfabeto. Nenhum dos meus irmãos é analfabeto”, destacou, acrescentando que a notícia de que Sônia estaria sendo submetida a condições semelhantes à escravidão causou indignação em toda família.

“A Sônia não teve direito à socialização. A Sônia não teve direito a se comunicar. A Sônia não teve direito a tentar a vida dela. A Sônia não casou, não teve filhos. Como assim? Nós tivemos filhos, nós temos filhos, nós temos família”, afirmou.



Por Portal Eu, Rio!

Fonte: Agência Senado, Agência Brasil e Rádio Senado

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