Não há dúvidas que a violência e o tráfico são problemas crônicos da cidade do Rio. Todos os dias, a população carioca acorda com inúmeras notícias assustadoras nos veículos de comunicação e a sensação de insegurança parece não ter dia e nem hora para acabar. O futuro é incerto e, infelizmente, as expectativas parecem não serem positivas.
Se no asfalto o medo é um companheiro constante, nas comunidades a situação não é diferente. As madrugadas de tiroteios tornaram-se uma rotina e a violência policial contra os moradores é cada vez mais comum. Difícil é crescer num ambiente tão hostil e não ser afetado por essa realidade desumana e carregada de referências negativas.
O Rio de Janeiro é a cidade brasileira com o maior número de pessoas morando em comunidades. No Censo 2010, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população nas 763 favelas da capital era de 1.393.314 pessoas, aproximadamente 22,03% dos 6.498.837 habitantes do município.
Esse índice levanta uma questão importante: se muitas facções criminosas estão localizadas dentro dos grandes morros cariocas, como evitar que os jovens que crescem nesses lugares se envolvam com o tráfico de drogas? Provavelmente, a resposta para essa pergunta não é simples e sua resolução exige ações e políticas públicas complexas e abrangentes.
O Atlas da Violência 2018, publicado em junho pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), identificou que a capital fluminense apresenta um índice de 34,9% de assassinatos e, por isso, está entre os 123 municípios brasileiros com a maior taxa de homicídio e mortes violentas com causa não identificada (MVCI).
A pesquisa baseou-se em dados oficiais de 2016 do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde e nos percentuais dos indicadores sociais do Censo Demográfico 2010 (IBGE).
De acordo com o Atlas, o Rio de Janeiro também possui porcentagens alarmantes em relação aos mais jovens. São 30,8% de crianças vulneráveis a pobreza, 30,7% de jovens entre 15 e 17 anos sem ocupação, 17,1% de jovens entre 18 e 24 anos que não trabalham e 6,6% de pessoas entre 15 e 24 anos que não trabalham, não estudam e ainda são vulneráveis a pobreza.
Alguns dos principais indicadores sociais avaliados pelo Atlas da Violência 2018
Para Daniel Cerqueira, coordenador e pesquisador do IPEA e um dos elaboradores do Atlas, esses números reforçam o caos provocado pela falência econômica e política do estado.
"Até 2016, ano das olimpíadas, o Rio vivia um momento de maior estabilidade econômica e também um clima mais positivo em relação à sensação de segurança. Depois disso, diante da constatação de uma desordem financeira e política sem precedentes, o estado mergulhou numa crise lamentável. Isso influenciou diretamente no aumento do desemprego e, consequentemente, da violência", afirmou Daniel.
De acordo com o pesquisador, a capital vive um momento delicado, pois não há lideranças políticas comprometidas com medidas públicas eficientes e que deveriam agir contra a ação dos narcotraficantes.
"A falência política favoreceu a sensação de impunidade em que vivemos. Hoje, é preciso um planejamento livre da política de improvisação. É preciso basear as ações do estado em um diagnóstico de dados e pesquisa. É necessário unir forças e a sociedade em prol desse processo. Reestruturar a forma de repressão, descobrir quem são os grandes criminosos e permitir um trabalho intenso de investigação. É preciso prevenir, diminuir a truculência e cuidar dos jovens e crianças mudando a realidade dos locais em que eles vivem", concluiu.
Apresentado em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o relatório do Ipea também avaliou os 7 principais elementos que contribuem para uma segurança mais efetiva. São eles:
- o comprometimento político;
- a mobilização e articulação das forças e atores sociais pela paz;
- a gestão da segurança pública baseada no método científico e nas evidências empíricas;
- o controle e a retirada das armas de fogo e das munições de circulação;
- a disseminação de espaços que visem a mediação de conflitos;
- a mudança do atual modelo de polícia reativa para repressão qualificada;
- a estruturação da política de prevenção social focada nos territórios mais críticos e nas crianças e jovens.
"Benditos são os frutos dos vossos ventres"
Dona Sidneia e Mônica Cunha, além de serem cariocas, também tem outras coisas em comum. Ambas, são mulheres negras e mães que criaram seus filhos no Rio de Janeiro. No entanto, suas histórias seguiram caminhos diferentes. Durante uma vida de sacrifícios e muita dedicação, D. Sidneia conseguiu criar 12 crianças em algumas comunidades cariocas.
"Graças a Deus nenhum deles se envolveu com coisa errada, mas não foi fácil. Muitas vezes, eu saía para trabalhar numa segunda-feira e só retornava no final de semana. Chegava cansada, mas garantia a comida dentro de casa. Além disso, eu era sozinha, pois não tinha os pais para me ajudar. A minha filha mais velha era quem cuidava dos irmãos", lembrou D. Sidneia.
Segundo a dona de casa, hoje seus rebentos estão todos "encaminhados" e ela se orgulha de cada um deles.
"Nem todos fizeram curso superior, mas tenho uma que é nutricionista e outro que ainda está acabando o curso de direito. O esforço valeu a pena. Eles têm o seu emprego ou vivem bem nas suas casas. Valeu a pena acompanhar de perto com quem eles andavam ou se estavam estudando. Foi difícil, mas não foi impossível", completou.
Por outro lado, a ativista Mônica teve que enfrentar uma realidade mais dura. Mãe de 3 filhos, em 2006, perdeu um deles assassinado. Ela conta que, entre 2000 e 2003, o filho morto se tornou um adolescente autor de ato infracional.
Durante esse tempo, foram 4 entradas no sistema de cumprimento de medidas sócio-educativas.
"Na época, eu ainda não entendia o significado daquele lugar. Por isso, achava que ali iam fazer o que eu deixei passar como mãe, pois eu também achava que o meu filho estava ali porque a culpa era só minha. Não demorou muito para eu perceber que não era só isso. Aquele sistema não me explicava porque meu filho estava ali e nem quais eram as reais causas daquela situação. No final das contas, eu deixei um filho naquele lugar e recebi outro. Totalmente diferente do que eu pari", relatou a ativista.
Hoje, a frente do projeto "Movimento Moleque", Mônica é alguém que luta por mudanças reais na vida de jovens e adolescentes que nascem e são criados à margem da sociedade.
"O que eu vivi me transformou. Hoje, luto não apenas pelas vidas dos meus, mas também pela de outros que acho tão importante. E o meu trabalho só comprovou que o estado é racista. Os jovens negros que se envolvem com o tráfico são varejistas. Eles não são os verdadeiros criminosos, são vítimas. São jovens sem oportunidades de emprego ou de educação digna. O que essas pessoas podem vislumbrar como futuro dentro dessa realidade? Quando muitas vezes são frutos de uma estrutura familiar precária? É muito fácil julgar quando não se vive o que eles vivem", alertou Mônica.
Embora essas histórias revelem finais e fatos diferentes, os seus desafios representam o cotidiano de muitas outras que vivem ou já viveram as mesmas dificuldades. As estatísticas da capital fluminense não mentem e as novas perspectivas dependem de mudanças reais nas vidas dessas pessoas.