No dia 14 de março, a vereadora Marielle Franco (PSOL/RJ) e seu motorista Anderson Gomes foram executados por volta das 21h30, em uma região central e de grande movimento do Rio de Janeiro. Passados 100 dias, o duplo assassinato segue sendo um mistério: não se sabe quem matou, nem quem foi o mandante. Também continua sem resposta uma pergunta fundamental para desvendar o caso: a quem interessaria a morte de uma jovem vereadora, em seu primeiro mandato, cuja principal bandeira era a defesa dos direitos humanos, em especial os dos favelados e os das minorias?
Aquele 14 de março também entraria, da forma mais dolorosa possível, para a vida da arquiteta e urbanista Mônica Benício (32), viúva de Marielle. Nesta entrevista, concedida com exclusividade aoEu, Rio, Mônica fala de sua história de amor e companheirismo com Marielle; da luta de ambas pelos direitos humanos, dos momentos que antecederam e sucederam o crime, entre outras coisas - tudo isso com muita, muita dor (ela se emociona em vários trechos da entrevista), mas também com muita lucidez, coerência e convicção de que sua luta pelos direitos humanos ganhou, com a morte de Marielle, ainda mais combustível. E com uma informação: pode vir candidata à vereadora para seguir o legado político de sua Marielle. Confira.
Quem é Monica Benício e em que momento a vida dela cruza com a de Marielle?
Mônica Benício é mestranda em arquitetura e urbanismo na PUC-Rio, me formei na PUC também como arquiteta e urbanista, sou militante de direitos humanos, e construí uma vida de militância ao lado de Marielle ainda na juventude. A minha vida cruza com a vida de Marielle quando eu tenho 18 anos recém-completos, e ela estava com 24. A gente se encontra em viagem de carnaval com amigos em comum, que tinham convidado a ela e a mim. Depois disso, a gente construiu uma relação de amizade que durou pouco mais de um ano, até a gente ter um contato físico e entender que aquele sentimento não era só da ordem da amizade.
Vocês não tinham tido relações com outras mulheres?
Não, nenhuma das duas. A gente, inclusive, nunca tinha cogitado isso. O primeiro beijo, quando acontece, é mais um susto, porque tinha uma demanda de sentimento, que a gente identificava que fosse de outra ordem, a coisa da amizade.
Vocês tiveram várias idas e vindas. Por quê?
Na verdade, a gente era muito jovem, tinha um sentimento muito forte, e eram duas mulheres que estavam ali, no contexto da favela. Se a sociedade é machista, patriarcal, Lgbtfóbica, isso dentro do contexto da favela é muito mais forte. Então, eram muitas dificuldades: tinha uma dificuldade financeira, a gente ganhava super pouco, ela estava com Luniara pequena, ela tinha cinco anos quando a gente se conheceu. E, dentro da favela, além das ofensas verbais, tinha um risco real de um estupro corretivo, porque eram duas mulheres fisicamente femininas... Vou falar o português claro, o que se ouvia era: você nunca conheceu um bom peru, ninguém nunca te comeu direito.
Essa ameaça era velada ou explícita?
A gente chegou a ouvir isso. Então, dentro desse contexto, a gente tinha medo, tinha vergonha, porque eram duas mulheres que não se entendiam como lésbicas, e que estavam vivendo um relacionamento muito particular, porque, até então, todo o contexto tinha sido de relacionamento hétero. E, como todo relacionamento, você tinha seus altos e baixos. E quando a gente estava em baixa, a gente resolvia que não era isso. E aí a gente terminava.
Você acompanhou o processo, o caminhar na política da Marielle, de secretária de uma ONG ao posto de quinta vereadora mais votada no Rio de Janeiro. Como foi isso?
Ela estava fazendo ciências sociais, quando a gente se conheceu. Depois disso, ela vai fazer a primeira campanha para deputado estadual do Marcelo Freixo. E a gente formava o núcleo da Maré.
Eu li, numa das entrevistas que você concedeu, que quando Marielle veio falar com você que ia se candidatar a vereadora, você disse não. Como é que foi isso?
Ela veio falar que o nome tinha sido colocado, e eu falei pra ela que eu, enquanto eleitora, achava ótimo, porque a gente precisava de pessoas como ela na política, a gente precisava de mulher negra, favelada, disputando esses espaços, uma pessoa que tinha como principal pauta a questão dos direitos humanos. E, no meu lugar de militante, achava isso maravilhoso. Achava que a Marielle ia ser um perfil diferencial na política, como ela provou que podia ser. Mas no campo pessoal, eu achava uma grande roubada. Mas não esperava que terminasse da forma que terminou.
Onde você estava quando soube da morte da Marielle?
Fazendo a janta.
Aqui? Nesta cozinha? Quem te avisou?
Foi uma coisa bem esquisita porque eu falei com ela (por Whatsapp), eu estava vindo pra casa e falei com ela: tô indo pra casa. Então ela falou: tá bom! Vou encerrar aqui. O teto é nove horas. Falei: ótimo. A gente ia chegar mais ou menos juntas. E a gente estava se falando, e ela estava lá na Casa das Pretas ainda, e a gente estava se comunicando, e ela avisando do encaminhamento do fim. Então, eu cheguei, e era pra gente chegar bem parecido; ou ela, um pouco antes... visei pra ela: entrei em casa. E aí comecei a fazer as coisas. Isso era umas nove e pouca. E ela respondeu: tá bom. Terminei. Já tô no carro indo pra casa. Foi a última mensagem. Ela avisando que já estava no carro. Passaram 20 minutos, e era na Lapa, né? Bom, tá esquisito, mas tudo bem. Comecei a ficar meio nervosa assim. Então, fiz uma coisa que eu não faço, que é ligar.
Você ficou nervosa do nada? Você normalmente ficava preocupada quando ela demorava?
Não, porque eu sabia que tinha gente com ela. Então, eu imaginei que podiam ter deixado a assessora dela em casa e estavam conversando ainda. Ou parada no portão, conversando. Mas, no geral, ela avisa. E aí não tinha mensagem. Aí eu olhei, e ela não tinha visualizado a última (mensagem), que eu mandei imediatamente depois que eu falei com ela. Então, eu liguei. Chamou, chamou, chamou, e não atendeu. Eu pensei, terminou de falar comigo, jogou o telefone no fundo da bolsa, e não tá ouvindo. Liguei de novo. E ela não atendeu. Aí, eu comecei a dar umapanicada. Eu falei: tá esquisito isso.
Esse é o seumodus operandiou foi naquele dia que você agiu assim?
Eu liguei umas 20 vezes seguidas. Fiquei desesperada. Então (Mônica se emociona), eu liguei muitas vezes. Ela não atendia. E, entre essas ligações, entrou a ligação de uma amiga, que não tinha o hábito de me ligar. Eu já atendi (perguntando): cadê a Marielle?. Aí, ela falou assim: olha, a Dani tá no portão (da vila em que mora na Tijuca) e não tá conseguindo entrar (Mônica se emociona novamente). Ela precisa falar com você. Aí eu falei: aconteceu alguma coisa? Ela falou: aconteceu. Vai lá no portão falar com a Dani. Eu imaginei: O Anderson bateu com o carro. Eles sofreram um acidente, estão indo para o hospital. Então, eu saí correndo e cheguei...
A filha da Marielle estava aqui?
Não. Estava na casa da avó. Aí, eu cheguei no portão e aí a amiga, de forma muito direta, falou: a Marielle morreu. Aí, eu já passei no portão gritando: cadê a Marielle?. Aí, ela me segurou e falou: a Marielle morreu.
Como é que foi aquele momento?
Eu não conseguia nem acreditar. O mundo parou de girar. Eu fiquei olhando pra ela, aquela frase não fazia o menor sentido. E eu tinha muita esperança que estava ouvindo errado, sabe? Eu coloquei que a Marielle sofreu um acidente, que tava indo para o hospital e que ia ficar bem. Aquilo não podia ser real [com a voz ainda embargada].
Ficou desesperada...
Não parecia real. Eu queria muito acordar daquele pesadelo. A minha primeira reação foi quebrar tudo o que tava aqui em cima, aí eu comecei a me agredir, porque eu queria muito acordar. Tentei me matar.
Naquela noite você pensou em se matar?
Naquela noite e em todos os dias depois. Mas a minha religiosidade não permite, porque num primeiro momento tinha muito a reação de querer acabar com uma dor. Depois, me deu uma coisa de como eu não vou viver num mundo sem ela (Mônica se emociona mais uma vez). Mas, a minha religiosidade diz que, através do suicídio, você não consegue resolver isso.
Marielle sinalizava que corria risco de vida?
De tudo, isso foi o mais chocante, porque não teve histórico de ameaça, nenhum histórico de agressividade. Ela nunca teve qualquer relação com os vereadores que ela chegasse em casa e dissesse assim: ih, hoje eu posso ter arrumado um problema. Porque por mais divergência política que tivesse, por mais pautas que fossem disputadas naquele espaço, na Câmara, pessoalmente ela sempre tratou todo mundo muito bem, sempre com aquele sorriso, sempre de forma cordial. A principal bandeira da Marielle, como política, era a política com afeto.
Tudo indica que o crime foi minuciosamente planejado e por pessoas de alta qualificação profissional. A quem uma jovem vereadora, com uma pauta voltada para os direitos dos favelados, os direitos humanos, os direitos das minorias podia incomodar tanto?
É uma pergunta que eu também me faço. O Brasil é um dos países que mais mata seus defensores dos direitos humanos. Nossos números são bem absurdos e vêm crescendo dramaticamente ao longo dos anos.
Marielle andava com segurança?
Não. Não tinha porquê. Só anda com segurança quando você está sob o risco de ameaça. Pularam a parte da ameaça. Ela já tinha feito alguma coisa que incomodou. Ou quem fez tinha uma visão, que a gente achava utópica, que era ela poder chegar longe. Então a quem podia estar incomodando tanto? Ou (era) alguma coisa que ela já tinha mexido. Ela ia agora acompanhar a Comissão da Intervenção Federal. Isso também era uma coisa preocupante. Isso foi a primeira notícia que ela me deu que eu realmente me preocupei. Em um ano e três meses de mandato, quando ela me falou que ia ser presidente dessa comissão, eu fiquei preocupada, mas também não acredito que tenha sido isso... Agora, ao invés de pegar isso (o assassinato) e entender como: ok, vocês conseguiram nos colocar medo, é transformar isso. Porque isso foi a chave que virou em mim pra falar assim: recado dado. Agora a gente vai incomodar mais ainda. Ao tentar calar a Marielle, eles só deram um megafone em nível mundial... O caso da Marielle transborda as fronteiras do país. Tanto que eu falo para o delegado: eu nem me preocupo com isso, se vai achar, se não vai achar, porque tem que achar, porque essa satisfação não (se) deve só à família da Marielle. Essa satisfação não (se) deve só à sociedade carioca, não (se) deve só à sociedade brasileira. Essa satisfação agora se deve ao mundo. O mundo quer saber o que foi que aconteceu com a Marielle".
Há alguma coisa que possa explicar essa barbaridade?
Nada. Eu não consigo amarrar uma ponta de nada. Porque é isso: não tinha ameaça, não tinha preocupação com a segurança de ordem nenhuma. Então, para além de só achar que a gente realmente rasgou aquilo que a gente chama de democracia e jogou pela janela fazendo isso, não tem, não dá para explicar isso de uma ordem que não seja política. Porque do campo pessoal, ela não estava. Bom, agora a gente sabe que estava, né?
Um colega de Marielle, o vereador Marcello Siciliano, foi apontado por um delator como um dos envolvidos em seu assassinato. Ele diz que era amigo de Marielle. Como era a relação deles? Eles eram amigos de fato?
Amigo eu acho uma palavra muito forte. Eu diria que, dentro da Câmara, a Marielle tinha o Tarcísio Mota como amigo, o David Miranda como amigo. Isso era o que entra na nossa categoria de amigo. A única vez que ela citou, eu não conhecia o Marcello Siciliano pessoalmente, a única vez que ela mencionou alguma coisa sobre ele, foi um vídeo que viralizou depois, que é um vídeo dela maravilhoso, que ela fala que palavra de mulher vai valer ali também, dentro da Câmara.
Ela estava se contrapondo a ele?
O vídeo tem só um trecho, né? É um trecho mais curto. Ele deve ter feito alguma fala antes. Eu sei que a fala dela é: não, palavra de mulher vai valer aqui dentro também, não é só palavra de homem não, tá Marcello? E ela diz no vídeo: a gente tem uma boa relação, estou falando isso porque a gente tem uma boa relação e tal. Então, assim, ela tinha diferenças políticas, mas tinha um bom relacionamento com ele, um relacionamento cordial, assim como com todos os outros.
Você tem sido reportada sobre o andamento das investigações? Por que você acha que as investigações estão andando tão lentamente?
Na medida do possível, chama a família, explica em que ponto está a investigação. E o que tem de participação, o que eles podem participar, porque uma das coisas que eu falei, inclusive, é que eu não quero ficar com especulação. Eu não sou detetive, eu sou arquiteta. Então não adianta ficar me dando informação que vai dificultar o meu sono. Então um dos acordos é: manter informado no limite do que puder, porque eu acredito que o sigilo seja fundamental nessa investigação.
Você acha que esse processo está andando muito lentamente ou a trama é tão intrincada que realmente não tem uma maneira de andar mais rápido?
Eu, infelizmente, acho que é isso: teve toda essa qualidade técnica na execução desse crime. E, de novo, não sou investigadora não consigo nem dimensionar o que é um tempo curto, o que é um tempo longo.
A Marielle deixou um legado. Você se sente herdeira desse legado?
Eu acho que sou parte desse legado e tem muitas mulheres hoje que se levantam pra carregar essas bandeiras, continuam com essa pauta. Eu acho que o legado da Marielle será levado por todas nós que hoje discutimos as pautas da Marielle, que levamos com afeto, mas, sobretudo, também com força, porque a política que a Marielle pregava era uma política com afeto, o que não quer dizer que seja uma política fraca, porque quando a gente fala afeto, as pessoas podem confundir com aquela coisa da doçura e não é disso que se trata. A política feita com afeto é de outra ordem. E esse afeto é o maior legado da Mariele, porque esse afeto abarca a pauta dos direitos humanos, e eu acho que dá pra fazer isso de todos os espaços, seja você dona de casa, seja você presidente da república.
Os conservadores argumentam com ironia: Ah, não era favor de bandido? Então? E agora? O que você pensa sobre isso?
Eu acho esse tipo de colocação de extrema ignorância. Esse tipo de ironia nem sequer consegue colocar um embasamento intelectual dentro da discussão, de tão pobre que fica a discussão. Na verdade, sinto até uma certa pena com esse tipo de colocação, porque, infelizmente, a gente está num país que sempre associa direitos humanos a defender bandido. E isso é muito interessante porque a classe dominante, que não é a maioria, que é dominante por uma questão de poder econômico, político, que são os homens brancos, heteronormativos. A esses interessa muito que a sociedade acredite que direitos humanos é defender bandidos, porque no dia que a sociedade entender que direitos humanos é garantia de direitos, de qualidade de vida, de direito igual pra todo mundo, esses homens brancos, politicamente colocados numa classe privilegiada na sociedade, vão ter problema, vão perder os direitos que têm.
Você é muito jovem. Como pretende levar a vida daqui pra frente? Você vem ganhando voz, apesar te já ter falado que o seu lugar de fala não é palanque. Você se vê no mundo da política?
Hoje as pessoas estão me colocando num outro lugar de fala. Estar em frente das câmeras era bastante desconfortável; no microfone, eu ainda tremo pra caramba, parece que a mão vai cair, tô sempre nervosa, sempre que eu termino uma fala, eu choro pra caramba, fico super emocionada. Mas, as pessoas vêm recebendo o meu posicionamento com muito carinho e me abordando na rua pra dizer o quanto eu sou forte, embora eu ache isso meio engraçado. E dizem o quanto eu transmito esperança. Eu fico super comovida com esses depoimentos, e eles são muitos e chegam pelas redes (sociais), chegam nas ruas, o depoimento das pessoas dizendo que a minha força dá esperanças a elas. Então, eu fiquei muito sensibilizada com isso. Eu não tinha dimensão disso... Então é um somatório de forças de uma paixão, de uma coisa que me tocava ali muito pessoalmente, e uma outra questão, que era a respeito da minha militância, da sociedade que eu quero. E isso se fundiu com muita força e com muita violência dentro de mim. E eu passei a me colocar de uma outra forma. E acho que hoje essa demanda das pessoas, me colocando em outro lugar e depositando esse carinho e essa esperança, me traz uma demanda de responsabilidade... Eu me vejo num contexto da vida que eu não tenho mais motivo pra ter medo e não me entendo tendo mais nada pra perder.
Há possibilidade de você entrar na política?
Talvez, há quase 100 dias atrás, eu dissesse que não. Mas, hoje, eu já começo a cogitar isso com mais seriedade, de pensar em ocupar esse lugar. Mas, até 2020, tem muita coisa pra passar por baixo dessa ponte. Acho que hoje a ferida ainda está muito aberta. Hoje, eu faço por uma questão de luta, por uma questão de resistência. É bonito e é importante ver que eu tenho sido uma figura que está representando causas pelas quais eu sempre lutei e acredito que tem que continuar tendo luta pra que a gente tenha uma sociedade mais justa, mais igualitária. Então, se, daqui a algum tempo, eu achar que isso é o correto a ser feito, que eu tenho competência pra poder fazer, ocupar esse lugar na política, tá ingressando na luta através da política, eu acho que existe a possibilidade sim.
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