É só começar com “I have a dream that one day every valley shall be exalted” e logo o close de Martin Luther King vem à nossa mente. A marcha de Washington de 1963 é uma referência na luta dos direitos civis nos Estados Unidos e até hoje é referência para tantas adaptações cinematográficas. No entanto, um nome essencial desse movimento foi apagado da história e a cinebiografia da Netflix vem revivê-lo na memória para conhecimento de todos.
Bayard Rustin é mais uma figura histórica que foi retirada das páginas dos livros por conta de preconceito. Nesse caso não só racial, mas também por conta da homofobia. Graças, especialmente, à produtora de Barack e Michelle Obama, a Higher Ground, o projeto “Rustin” conseguiu ser viabilizado. O filme era a grande aposta do streaming para Melhor Filme nas premiações, algo que não atingiu e dá para se entender os motivos. Mas, merecidamente, quem tem o holofote é Colman Domingo, quem dá vida a Bayard Rustin.
Digo isto pois sua atuação é a parte mais primorosa do filme, é o que vale cada minuto de acompanhamento dessa biografia. O arco dramático do longa é um recorte bem específico desse momento da organização e até, efetivamente, o dia da marcha em 1963 para acompanharmos a essencialidade de Rustin. Particularmente, gosto bastante de cinebiografia que selecionam momentos e não fazem uma página do Wikipédia com as situações icônicas do biografado. Entretanto, aqui, a grande prioridade pela figura de Rustin deixa não só em segundo plano, mas atrapalha o desenvolvimento do próprio personagem. Ficamos com a sensação de precisar saber mais para que chegasse até ali.
Mas entendo essa escolha por dois motivos. Para começar, é uma aposta clássica e sem muitos riscos, um sinônimo de “funciona”, o que pode e consegue atrair um maior público em um catálogo como da Netflix, que atinge milhares de pessoas, colocando uma narrativa mais simplista (que fique claro que isto não é algo negativo, apenas uma característica). E, em segundo lugar, deixo nas mãos do diretor George C. Wolfe, algo que ajuda bastante a entender as escolhas do filme. Dramaturgo e diretor de diretor, Wolfe conquistou bastante a crítica recentemente com “A Voz Suprema do Blues”. Comentar sobre esse título já é uma explicação para este filme e “Rustin”.
O diretor prioriza a dinâmica teatral e traz isto para dentro do audiovisual. Em “A Voz Suprema do Blues”, esse elemento é fácil de perceber, especialmente pelos grandes monólogos, planos e poucas locações. Enquanto isso, em “Rustin”, percebemos que é clara a prioridade de acompanhar seu protagonista, inclusive porque tudo precisa passar por ele: é o centro, é quem organiza a marcha e todos os demais estão ali por conta dele. A prioridade das atuações está no roteiro, mas também dá pra perceber, nas cenas de debates em volta da mesa, por exemplo, como que tudo para trás é a escuridão e a luz está apenas sobre a conversa e quem está participando.
Assim, é preciso apresentar esse personagem ao público, contextualizar o movimento da marcha e ainda adicionar grandes nomes de figuras que estão presentes nesse momento. Mesmo com a experiência do roteirista Dustin Lance Black, responsável por “Milk: A Voz da Igualdade" (gosto bastante desse filme), a parceria aqui com Julian Breece deixa faltar profundidade na própria figura de Rustin. Uma das grandes cenas, para mim, e que bem apresenta ele, é quando se coloca no meio de uma briga, conta sobre seus dentes quebrados e mantém a posição de não violência.
Além disso, a trilha sonora de jazz merece um espaço para ser elogiada porque dá um ritmo e identidade ótima às cenas de tensão, combinando com a época do filme. E também a cena do treinamento com os policiais, no terceiro andar do prédio da organização da marcha, merece destaque. Por último, o filme ganha uma música de Lenny Kravitz, 'Road to Freedom’, que não conquistou indicações nas premiações, mas é uma ótima música.
A cineobiografia funciona porque prende pela curiosidade. Queremos conhecer quem foi Bayard Rustin e é interessante acompanhar como agiu o responsável por toda organização da marcha. Mas poderia ser mais memorável. Talvez, os próximos filmes sobre ele consigam ir potencializando e trazer uma produção à altura de seu peso histórico. A Netflix deu um primeiro passo importante e está cumprindo a grande tarefa: que todos saibam quem foi Rustin. Para completar, há uma importante conquista, pois Colman Domingo é o segundo ator abertamente gay a ser indicado ao Oscar.