Assim como uma bela poesia, a dor do autor transborda as palavras e faz apertar o nosso próprio coração. É para sofrer, se emocionar e, acima de tudo, sentir. O mesmo poema impacta cada leitor, seja pela sua história ou pelo momento de vida que está. O mesmo texto muda, porque a gente muda. Assim é o efeito de “Vidas Passadas”, indicado, inclusive, a Melhor Roteiro no Oscar. Coloco muito desse crédito nas mãos de Celine Song, roteirista e diretora, que traz no filme toques de suas experiências de vida e, por isso, é tão tocante.
Sinopse - Um casal de amigos de infância se separa depois que a família de um deles sai da Coreia do Sul a fim de emigrar aos Estados Unidos. Mais de 20 anos depois, os dois se reencontram em Nova York. Chegou a vez de ambos encararem seus sentimentos.
Abordar o romance de uma vida através de frustração, melancolia, admiração e saudade: Song explicou, em uma entrevista, o quanto os filmes trazem tanto drama: porque os adultos estão se comportando como crianças. Aqui é sobre pessoas que conhecemos quando crianças e como se comportam quando adultos. São os encontros e desencontros, mas, acima de tudo, está nessa grande ligação que o roteiro usa como elemento, principalmente: o “in-yun”. O termo, em coreano, significa providência ou destino, que é o que também conecta os principais e nos coloca a pensar nos “e se”. A vida não tem manual de instruções. Isso é, ao mesmo tempo, amedrontador e estimulante.
É maravilhoso como o filme nos é apresentado, confirmando nossa posição de observador dessa história ao apontar a câmera para dois homens e uma mulher juntos em um bar e perguntar “quais são relações entre aqueles três?”. Embarcamos na viagem da vida de Hae Sung e Nora em três atos separados por doze anos cada. São os ciclos que, a cada reencontro, tece novos capítulos e nos colocam para sentir com eles cada despedida, seja após a aula do colégio em que Nora sobe as escadas coloridas e Hae Sung segue o caminho reto cinzento, ou quando ela é deixada em pé na calçada escura e ele segue no táxi. Além disso, a fotografia brinca com a iluminação que transparece os sentimentos e sombras entre eles, enquanto os planos confirmam a conexão, especialmente um enquadramento que deixa um personagem de fora da tela e já responde tudo.
O título é “Vidas Passadas” como uma referência ao termo coreano. No entanto, acompanhamos as várias vidas de Nora em uma só. Song brinca nas sutilezas de seu roteiro que não é preciso de reencarnações para viver uma nova vida, ou reencontrar determinada pessoa. Nora migra da Coreia do Sul para a América do Norte, inclusive ela muda de nome (por isso Hae Sung não a encontra no Facebook). É a personagem que nos guia, através de seu olhar sobre sua vida, daquela que foi embora versus aquela que ficou, seus silêncios e posturas, que mesmo sem falar traz toda a mistura de amor e medo juntos. Por isso que Hae Sung se mantém em outro patamar, enquanto Arthur é o concreto. Inclusive, uma curiosidade para o trabalho dos atores é que eles realmente só se encontraram no set na cena em que seus personagens se conhecem.
Nessa viagem entre os flashbacks e destinos de Hae Sung e Nora, a diretora decupa muito bem cada detalhe de seu texto. A fotografia é íntima, os planos conjuntos dão o tempo certo para as reações aos momentos de silêncio e troca de olhares, ao mesmo tempo em que a câmera (em movimento de travelling) acompanha os personagens quando relembram algo (indo da direita para a esquerda) e quando estão indo para o futuro (da esquerda para a direita). Além do ir e vir da câmera, o ir e vir dos personagens nos afligem também, como quando Nora volta, mas Hae Sung não responde seu email. Somente anos depois, ele vai a Nova York, onde, enfim, se reencontram após 24 anos.
“Vidas Passadas” tem calor humano, tem dor, tem emoção e tem vida, porque é sobre ela mesmo. Por isso que é daqueles filmes que podemos reassistir em diferentes momentos. Entre todos os detalhes, tudo se torna ainda mais potente graças à sutileza em que a narrativa é contada e a vulnerabilidade de seus personagens. É sobre o amor, o destino e as escolhas que fazemos, com um final que fica para cada um sair imaginando sobre a vida dos dois que acompanhamos até ali.
Da mesma produtora do vencedor do Oscar de 2023, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, a A24 está reinvestindo no lançamento do filme lá fora e está levando ele aos cinemas por aqui no Brasil, especialmente por conta das indicações às premiações. Acima disso, o filme - por si só - vale muito seu ingresso.