Quando um autor se apropria de uma obra preexistente e lhe dá outra forma, outro significado, como fizeram as dezenas de dramaturgos que recontaram a história de Pigmaleão e Galateia, isso é plágio ou é apenas a literatura como ela sempre foi? Já na Bíblia, o autor do Eclesiastes declarava, "O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol.". Tal constatação milenar está no cerne do romance Navalhas pendentes, de Paulo Rosenbaum, atualizada com algoritmos e mercados globais, inteligência artificial e autores incógnitos.
A literatura fala do ser humano no mundo. A literatura fala de si mesma. Esse aparente paradoxo se dissolve ao pensarmos em qualquer obra de ficção: se é da humanidade que se trata, então toda vez que o texto literário se refere a outro texto semelhante, ele está se referindo, também, à experiência humana. Isso se torna claro no romance de Rosenbaum, porque, além de outras questões, originalidade e plágio, mercado e criatividade, memória e ficção, inteligência artificial e o que significa ser humano. Acrescentem-se os conceitos de autorreferência e recursão, e teremos uma obra do nosso tempo que discute a natureza da literatura, mas que se aplica igualmente a outras artes.
Rosenbaum tece uma bem urdida história em torno de uma editora que produz mais best-sellers do que seria razoável, escritos principalmente por Karel F., um autor que ninguém sabe quem é. Quando o personagem Homero Arp Montefiore é contratado para avaliar manuscritos submetidos à publicação, as coisas começam a se complicar. Ele desconfia que algo ilícito está acontecendo no recôndito da editora. A trama se adensa quando uma das maiores casas editoriais do mundo propõe uma fusão com sua congênere nacional. Assassinatos, fugas e desaparecimentos ocorrem, assim como a culpabilização do narrador, que busca entender o que lhe está ocorrendo.
Homero é o nome do narrador de Navalhas pendentes, mas também é o do suposto fundador da literatura europeia, de cuja obra deriva tudo o que escrevemos e lemos até hoje. Outra referência literária é Karel, tão incógnito quanto Elena Ferrante, pseudônimo de uma escritora italiana, também autora de best-sellers, tão elusiva quanto o autor brasileiro. Esse autor, supostamente brasileiro, tem o mesmo nome de Karel ?apek, escritor checo que escreveu a peça R.U.R. (Robôs Universais de Rossum) em 1920, sobre a robotização de operários. Seria coincidência, no enredo, Homero submeter, sob pseudônimo, A fábrica de robôs latinos para avaliação da editora? Ou ele está recorrendo ao que já foi feito para criar uma obra para outro mercado em contexto diverso daquele em que a palavra "robô" foi primeiro introduzida?
Talvez a noção que mais ocupe o narrador seja a da memória, que aparece sob diversas formas no texto, associadas quase sempre à recuperação dos eventos que lhe aconteceram e que o incriminam. As referências ao passado se dão também quando ele tenta se reconhecer como indivíduo, numa possível caracterização de si mesmo como uma personagem em uma trama. Porém, como hoje sabemos, a memória recria mais do que repete o acontecido. Então o Homero apresentado ao leitor é verdadeiro, num mundo ficcional, ou é recriado por um processo imaginativo, tal como um autor cria suas personagens? Seria a narrativa de Homero autoficção dentro da ficção?
Essas e outras perguntas vão encontrar respostas no algoritmo encomendado pela editora holandesa, o verdadeiro gerador dos inúmeros best-sellers mundiais. A partir de manuscritos rejeitados, o programa consegue combinar trechos em textos orgânicos que fazem sentido e provocam emoções nos leitores. O algoritmo precisou aprender não apenas sobre logos, mas também sobre páthos para que seus livros pudessem passar por obras escritas por humanos.
Voltamos aos parágrafos iniciais desta resenha: a combinação de textos preexistentes para dar à luz outros é plágio ou apenas uma releitura, uma reciclagem, de elementos do nosso repositório cultural? Shakespeare usou material de autores anteriores para criar suas peças, e não se fala de cópia. Afinal, a significação depende do contexto – nenhum signo tem sentido no vazio.
Essa capacidade recursiva da literatura se alia à de autorreferência no final de Navalhas pendentes para surpreender o leitor, que não deveria se espantar, em vista do que a narrativa vinha indicando. Falar mais sobre o final revelaria o desfecho com que Paulo Rosenbaum encerra o livro. Basta dizer que, a partir da forma do romance de enigma, o autor atualiza a discussão tanto do fazer literário quanto do mercado editorial. E o faz numa narrativa fluida que alia questões éticas e estéticas a denúncias políticas.
SERVIÇO
Livro: Navalhas pendentes
Gênero: Romance
Autor: Paulo Rosenbaum
Editora: Caravana Grupo Editorial
Ano: 2021
Lançamento: a ser definido
Preço: R$ 62,90
Contato: [email protected]
Autor: Paulo Rosembaum
Fotografia da capa: Paulo Rosenbaum
ISBN: 978-65-87260-74-7
Páginas: 328
Tamanho: 14 cm x 21 cm
SOBRE O AUTOR
Paulo Rosenbaum nasceu em São Paulo em 1959. É médico e escritor. Possui Mestrado em Medicina Preventiva, Doutorado em Ciências e Pós-doutorado em Medicina Preventiva pela USP, com mais de uma dezena de livros publicados na área. Escreve, regularmente, para o jornal Estado de São Paulo, no blog “Conto de notícia”. Roteirista e produtor de documentários, atuou como editor de revistas científicas no campo da saúde. É pesquisador na área de clínica médica, semiologia clínica, relação médico-paciente, prevenção e promoção da saúde e pesquisa de medicamentos. Além de ensaísta, é poeta, contista e romancista. Antes de Navalhas pendentes, publicou os romances: A verdade lançada ao solo (Record, 2010) e Céu subterrâneo (Perspectiva, 2016).