Um espetáculo de dança contemporânea para crianças e jovens é uma afirmação da capacidade de abstração humana em todas as idades. A grande parte dos eventos infanto-juvenis é baseada na transmissão de sentido por meio do verbo. Levar a criança ao teatro para ter contato com a dança oferece outras camadas de percepção (que farão diferença nas décadas seguintes). "Casa Caracol" é audacioso porque, não apenas afirma sua linguagem sonoro-gestual, mas também não tenta, ansiosamente, entreter o público com qualquer recurso. Resultado: as crianças ficam envolvidas com o que se passa em cena.
Casa
Se é possível considerar que estamos ainda na transição da pandemia para um outro período, a casa é uma questão significativa. Seja para os que se viram obrigados a habitar em tempo integral a própria casa, seja para aqueles obrigados a trabalhar no espaço externo, sujeitos às incertezas do coronavírus e suas variantes. Na claustrofobia do confinamento, ou na ausência da segurança do lar, a casa, nos últimos anos, tem sido um prolongamento de nossos corpos, um lugar de acolhimento e de sufocamento. Talvez, mais do que nunca, lançamos um novo olhar aos caracóis, um olhar menos distanciado entre espécies.
No caso de "Casa Caracol", as formas arredondadas são, no espaço cênico, a primeira relação com o título do espetáculo. Enquanto ouvimos Thiago Catarino cantar “é a casa, não é a casa”, o grande balão azul, que transforma o corpo de Camila Moura em um “ready made”, conduz os olhos do espectador ao grande furo redondo da rotunda cor de abóbora. Trata-se de um momento plástica e simbolicamente bastante interessante: a forma do balão redondo, que realiza diversos movimentos, conversa com a forma redonda estática na rotunda (porém vazada, mostrando a camada escura por detrás do cenário). Esse jogo é completado pelas frágeis, redondas e pegajosas bolhas de sabão na lateral direita.
No entanto, a encenação de Renato Linhares não se contenta com a primeira camada de entendimento e continua caminhando sobre a ideia de “casa”, ultrapassando os limites do caracol para tratar da casa humana, cuja estrutura é feita de tijolos. À medida que a música vai descontruindo as frases e palavras, os artistas em cena vão se deslocando sobre tijolos, sem nunca pisarem diretamente o chão. Uma travessia arriscada e densa. Os tijolos colocam luz sobre a trilha sonora que propõe essa desconstrução da linguagem, como uma casa que precisa ser reconstruída.
Caracol
Uma das primeiras imagens de "Casa Caracol" é composta pelos pés-pernas-quadris de Camila Moura, em posição invertida, na “janela” formada pelo furo arredondado no tecido do fundo do placo. Em seguida, Tuany Nascimento vem aparecendo por baixo desse tecido, se arrastando de costas. Uma boa parte do espetáculo se dá no plano baixo, retirando a verticalidade da qual se orgulha o ser humano.
Nosso Ocidente perpetuou certa tradição metafísica e religiosa baseada no antropomorfismo, na imagem do homem em pé, onde cada parte do corpo vai subindo na hierarquia, à medida que se afasta do chão: a cabeça é mais digna do que a boca, que é mais digna do que a barriga, que é mais digna do que os pés. Toda imagem de pessoa no chão é uma afronta ao ideal do corpo humano. Há mais de um século, artistas de várias linguagens se propõem a operar transformações nas imagens corporais. A dança moderna e contemporânea experimenta inúmeros apoios, bases, torções e espirais que deslocam nossos corpos do ideal. "Casa Caracol" caminha nessa esteira.
O espetáculo escolhe falar da vulnerabilidade desse corpo retorcido da lesma e da vulnerabilidade humana. A dureza e a precisão do tijolo contrastam com a inconstância de corpos em desequilíbrio, como, por exemplo, as extensões e os “cambrés” de Tuany Nascimento. O homem vitruviano, orgulhoso de si, dá lugar, aqui, aos híbridos pessoa-animal, pessoa-objeto, pessoa-incerteza.
Tempo expandido
A lentidão. Esse é um dos elementos que constroem o tempo do espetáculo e a relação com o arrastar lento do caracol é imediato. É curioso como os performers deixam que o fim de um movimento de cena aconteça e permitem que o tempo necessário para um novo movimento comece. Não há correria e, para os corpos dançantes, isso é um desafio, porque “permanecer” convoca mais controle, mais força, mais equilíbrio, do que a movimentação ininterrupta.
Em algumas passagens, o tempo expandido lembra Bob Wilson, que utiliza a lentidão em cena para escapar ao tempo cotidiano, um exemplo radical é seu "O Olhar do Surdo". Claude Régy, encenador francês, opera a perda dos parâmetros cotidianos do espectador por meio da lentidão radical da fala do ator, por exemplo, em "La barque le soir". Lembro-me, ainda, que em "Shi-Zen, 7 cuias", o Lume Teatro construiu cenas de dança-teatro, ou butoh-teatro, em que os corpos se locomoviam muito lentamente, irritando alguns espectadores e maravilhando outros. Poder sair do tempo da vida cotidiana é um privilégio. A lesma nos oferece outro tempo.
Instabilidade da forma
O amálgama dos três corpos – formado por Camila Moura em posição invertida, Thiago Catarino em pé, e Tuany Nascimento sobre a pilha de tijolos - é o ponto para onde os vetores do espetáculo convergem. Um corpo preto sobre tijolos trêmulos aponta, inevitavelmente, um processo histórico brasileiro e carioca. Trata-se do momento de maior instabilidade do corpo humano, de maior risco, onde a verticalidade orgulhosa da casa-corpo e da casa-arquitetura pode mais ser derrubada.
Há, entretanto, outras brincadeiras indicando a impermanência das formas cênicas. A música - tanto no que diz respeito aos instrumentos, quanto ao canto – joga com nossos sentidos. Algumas vezes, o espectador acredita que um dos artistas está tocando, ou cantando ao vivo, e, em seguida, o som/voz em off é revelado. Logo, o artista vai tocar, ou cantar (ao vivo), sobre o som/voz gravado. Uma brincadeira do gênero “Silencio, no hay banda”, do filme de David Lynch.
Ainda podemos falar de pequenos fragmentos de cena que “inquietam” a forma. Os pregadores que pressionam a pele do perímetro do rosto de Thiago Catarino, por exemplo, podem, ou não, cair, na medida em que ele mexe os músculos faciais durante o canto. Além disso, no início do espetáculo, três ações distintas acontecem concomitantemente. Uma dessas ações, a mais próxima da plateia, é a construção de um espaço cênico que será usado apenas no final: mais uma pista falsa que brinca com as expectativas da plateia.
Camila, Tuany e Thiago confortáveis em suas peles.
Rastro
Nos figurinos há fragmentos de diferentes tipos de tecidos brilhosos (paetê, lycra envernizada, lurex, cetim plissado e franzido) que estabelecem diálogo com o brilho da água dentro do acrílico brilhoso e, também, com a rotunda acetinada. O brilho indica o rastro deixado pela lesma, rastro que se propõe ligação coletiva, um caminho a ser seguido para encontrar o outro. Toda história reconstituída por meio de rastros está fora da historiografia convencional. É interessante que esse rastro, no espetáculo, se dê por meio do brilho, que é uma espécie de luz. O brilho indica um “outro” na escuridão, alguém para onde se encaminhar, um encontro.
Por ser um espetáculo infanto-juvenil, essa busca pela alteridade em meio à vulnerabilidade das pilhas de tijolos se dá pelo jogo, pela brincadeira. O brilho não está apenas no tecido, mas nos olhos e no sorriso. Há um conforto consigo mesmo que abre caminho para o encontro. Tuany Nascimento, Camila Moura e Thiago Catarino parecem tão bem em suas peles que o espectador tem vontade de brincar com eles, seja no grande tecido amarelo, que forma cabanas e barcos; seja nos arriscados tijolos espalhados ou empilhados. Por fim, Thiago Catarino, falando sobre o rastro, canta uma música cuja letra diz “pra você me achar”.
Ficha Técnica:
Direção: Renato Linhares
Idealização: Camila Moura e Renato Linhares
Cocriação/interpretação: Camila Moura, Thiago Catarino e Tuany Nascimento
Cenografia: Estúdio Chão e Julia Deccache
Efeitos especiais: Gabriel Klabin
Figurinos: Raquel Theo
Direção Musical e trilha sonora original: Ricardo Dias Gomes
Desenho de Luz: Tainã Miranda
Direção de Palco e Cenotecnica: Ana Clara Vendramini
Técnica de Palco: Gab Tomaz
Operação de Som: Joana Guimarães
Operação de luz: André Martins e Zambi Abe
Costureira Figurinos: Lourdes Gaviole
Costureira Cenário: Nice Tramontin
Realização: SESC Pulsar, Trestada produções e NaMatilha
De 09 de setembro a 15 de outubro de 2023
Sábados e domingos às 16h.
Local: Teatro I – Sesc Tijuca
Rua Barão de Mesquita, 539 – Tijuca – Rio de Janeiro – RJ
Ingresso: R$ 2 (habilitados Sesc), R$ 5 (meia-entrada) e R$ 10 (inteira)
Classificação: livre
Duração: 50 minutos