O sétimo chakra no chão. O chakra coronário, aquele mais metafísico e que diz “eu sou”. Ele está no chão. Ele, que coroa a verticalidade humana (orgulhosa de sua superioridade em relação aos outros seres), está invertido. O topo da cabeça de Alexandre Américo vai ao chão e se encontra com uma pele animal, um pelo caramelo sem forma definida.
A massa informe
Por meio de torções, esse pelo vai se juntando, lentamente, a uma tela, talvez um tule, ao algodão e ao linho e à palha. Todo esse amálgama de tecidos torcidos vai formando, lentamente, um turbante desmesurado em sua cabeça. O espectador logo se dá conta de que o turbante está sendo feito do piso do chão. Aquele amálgama têxtil formava, até alguns minutos, um tapete sobre o piso do palco. Agora, está quase todo na cabeça do bípede em cena. Um piso de fios naturais transforma-se em enorme turbante.
Em seguida, a lentidão da formação do turbante contrasta com o gesto rápido e seco que puxa o tecido no chão e revela fios de tecido metálico, completamente sintético. O corpo se levanta e é coberto, irregularmente, por essa espécie de casulo de tecidos orgânicos e plásticos, remetendo a festas populares brasileiras, tais como a do boi, no Maranhão, e ao Maracatu rural.
É importante reconhecer o “momento grávido” de cada espetáculo, aquele instante que fica fotografado na memória do espectador, o ponto de fuga para o qual todas as linhas convergem. Achei que essa “foto” do corpo girando sob o casulo colorido seria o momento grávido. Não era. O bípede tomba no chão e desaparece, coberto pela massa de tecidos. O que resta para o espectador é um monte de pedaços de pelos e tecidos torcidos que não chega nunca a tomar uma forma permanente. As fibras naturais e os fios metálicos são movidos e tremidos pelo corpo vivo que está escondido por baixo deles. Uma imagem monstruosa, pelo menos da perspectiva do antropomorfismo.
Não me refiro ao momento em que vemos a figura humana saindo do tecido. Quando o ser humano vai aparecendo, a percepção se acalma, aceita. O puro amálgama de tecidos sem uma forma definitiva é mais irritante e menos aceitável. Eis o momento grávido de Bípede sem pelo. Eis a foto que se agarra à memória porque sintetiza elementos fundamentais do espetáculo: o ataque à figura humana em pé e a dialética do natural e do artificial.
Antropomorfismo
O Calímaco, de Maquiavel, é o Homem que deseja tão intensamente, que a Fortuna se atrai por ele. O Próspero, de Shakespeare, o Homem que, em nome de sua comprovada dignidade europeia, se permite escravizar seres não-civilizados. O Fausto, de Goethe, o Homem sábio que impõe sua individualidade ao destino trágico. Todos os que se opõem a esses homens monumentais – respectivamente, Messer Nícia, Caliban, Margarida – têm o corpo físico ou ridículo, ou monstruoso, ou extremamente frágil. Corpos devotados à desumanização.
O Homem é uma invenção. Quando os tecidos vão sendo torcidos na cabeça de Alexandre Américo, é a ideia de homem que vai se torcendo. A ideia de que “tudo o que existe tem uma forma” encontra origem na forma humana, nossa primeira noção de forma. No mundo material não existe uma forma humana. A forma única e definitiva só existe na ideia. Portanto, o antropomorfismo não é a forma do corpo humano, mas sua idealização.
O bípede sem pelo, quer dizer, o humano em sua verticalidade, traz como modelo o homem vitruviano: harmônico e circunscrito em figuras geométricas: ideal de homem europeu. De maneira análoga, a arquitetura se desenvolve na lógica antropomórfica: sejam as abóbadas que coroam a forma renascentista, sejam os arranha-céus art déco. São homens-edifícios: altos, resistentes, orgulhosos de sua verticalidade.
Natural-artificial
Nesse espetáculo o piso é extremamente importante, ele lembra a terra. Os tecidos de fibra natural indicam o mundo orgânico da natureza, ao passo que os fios metálicos apontam para a cultura. A partir daí um espectro de dicotomias pode aparecer, como “dança popular no chão x balé clássico no ar”, “material x metafísico”, “verdade x representação”. É interessante observar, no acontecimento cênico, o confronto entre a natureza e a matéria da arte. O placo e seus elementos espetaculosos falam da natureza e, ao mesmo tempo, atritam-se com ela. “O verde na natureza é uma coisa, o verde na literatura é outra”, diz Virginia Wolf em Orlando. E segue: “A natureza e as letras parecem ter uma antipatia natural; basta juntá-las para que se dilacerem mutuamente”. Bípede sem pelo, de certa forma, opera a destruição desses limites, não por escolher um dos dois polos, mas justamente por amalgamá-los, ou, ao menos, justapor um ao outro.
É no corpo que se dá esse encontro. Não apenas nos fios metálicos, mas também com o paetê dourado, símbolo dos variados carnavais brasileiros. O material é extremamente sintético e acende sobre a pele nua (sem pelo). São estilhaços de brilho sobre um corpo que exala imagem, som e cheiro vivos, orgânicos.
Lembro-me da instalação Oasis em um canto esquecido de Amsterdam, debaixo de um viaduto. Ao lado de uma residência para artistas, em Sloterdijk, um bairro afastado do centro turístico, há um viaduto, embaixo da autoestrada Wiltzanghlaan. Trata-se de um lugar obscuro e sujo, onde decidiram construir uma instalação no formato de um oásis, com cachoeira azul e palmeiras verdes. A localização estabelece um contraste chocante com o tema da instalação, porém não com o material, que é inteiramente sintético. Sonho de natureza, feito de plástico e instalado numa ponte suja de uma capital europeia.
Aqui, no espetáculo brasileiro, a questão não é revelar a perda da conexão entre os grandes centros europeus e as paisagens naturais (talvez de colônias). Aqui, um corpo que mistura cultura e natureza é revelado. E isso acontece por meio de códigos da cultura popular e de elementos religiosos afrocentrados. Há uma justaposição entre o orgânico e o construído.
Espaço do corpo
O trabalho de movimentação começa com a lógica mais estrutural do bípede: a caminhada sobre dois pés. Andar para frente, avançar, um gesto arquetípico que poderia conduzir o espectador à ideia de progresso, evolução. O que acontece, entretanto, é uma caminhada que busca circularidade e que, ao longo do espetáculo, encontra a circularidade em torno do próprio eixo do corpo humano.
Os movimentos circulatórios-encantatórios são os mais potentes no acontecimento cênico de Bípede sem pelo. Mais do que um homem que evolui, aparece um animal-homem que festeja e que cultua. Trata-se de giros sobre o eixo, porém não buscando o equilíbrio e a harmonia das piruetas do balé, mas preenchidos de vulnerabilidade, tremores e, sobretudo, contato com o chão.
Espaço sonoro
No que diz respeito à voz, há um rápido momento de sussurro no início e, de resto, sons de fôlego, respiração animal. Isso não significa que, na dramaturgia, não haja fala. Há uma outra percepção linguística, na qual os sopros de fôlego, os pingos de suor descolados do corpo por gestos encantatórios, são língua. Palavra que dança outro tipo de tupi, outro banto, iorubá, português.
Espaço cênico e luz
O espaço externo, que em grande parte do tempo fica em penumbra, remete ao espaço interno do turbante-casulo. O espectador entra em um espaço íntimo e orgânico, cheio de sombras e membranas. O bípede em cena adentra o espaço interno e escuro dos têxteis. As penumbras e silêncios estabelecem cumplicidade entre cena e plateia. Uma atitude cuidadosa de ambos os lados é requerida.
Parto
O espetáculo inicia com uma caminhada na penumbra que se transforma em corrida no escuro. O espectador se inquieta com os passos que correm na escuridão porque é uma entrega às trevas da noite, quando toda forma perde seus limites. Será que o bípede vai cair? Vai se chocar contra a parede? Vai esbarrar na plateia? A dimensão da perda do corpo é trabalhada tanto na relação com a escuridão, quanto na relação com os tecidos torcidos que afogam o corpo. Perdemos a forma, mas não permanentemente. Vejamos:
Da massa informe de tecidos, nasce um corpo animal-humano. Quer dizer, o “momento grávido”, ironicamente, termina com um parto. Gradativamente, vemos um braço, uma cabeça, e um corpo vai saindo da massa informe de tecidos naturais e sintéticos, como que dilacerando uma placenta. Mas sai quadrúpede, sai usando pernas e braços como quatro patas.
Para passar de quadrúpede para bípede o centro de gravidade se transforma, é uma crise. Como já vimos que a questão não é mostrar a evolução de um para outro, é preciso desfazer, também, a dicotomia “quadrúpede x bípede” porque nela se encontra o antropomorfismo: um é inferiorizado, o outro é idealizado. Para tal, voltamos ao elemento mais potente do cenário, qual seja, a massa de tecidos que é tanto piso, quanto placenta.
O piso não é apenas o território que permite o nascimento, mas o espaço onde o bípede pode ser derrubado. O monumento humano precisa sempre ser derrubado para, a partir de seus desmembramentos, ser refeito. Trata-se de um parto não do zero, mas pós-queda.
Após todo o processo de profanação e derrubada do monumento antropomórfico, após o bípede ser engolido pela massa informe da cultura popular e impossibilitar qualquer idealização do corpo humano, faz-se o parto. O bípede, enfim, sai girando e batendo os pés. O giro combina domínio total do equilíbrio, com vulnerabilidade e possibilidade de queda. Os pés que batem o chão, o fazem como nas danças de brincantes: jongos, côcos, sambas, maracatus.
Todos os “trupé” nos gritam que “bípede” é “pé”, é “chão”, é “giro”. O bípede existe. O bípede não existe.
Ficha Técnica
Dança, direção e coreografia alexandre américo
Co-direção e desenho de luz laura figueiredo
Interlocução coreográfica elisabete finger
Cenografia e assist. de direção jô bonfim
Figurino, maquiagem e assist. de direção ana vieira
Veste andaluz
Trilha sonora e sonoplastia toni gregorio
Voz ionara marques
Textos off alexandre américo
Concepção de design cênico vinicius dantas
Visagismo marcone soares
Cabelo cid gutirrez
Produção celso filho - listo! produções artísticas
Afrocentralidade de alguma questão: o termo traz consigo uma dialética, a centralidade e a África que foi constituída nas terras brasileiras. O que temos é a diáspora, quer dizer, a descentralização forçada que faz parte de nossa história.