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Corpo-sonho sem rosto: “Sonâmbulo” no Teatro Poeira

Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Professor de Dança do Departamento de Estética e Teoria do Teatro da UNIRIO

Em 13/05/2024 às 09:01:01

“Minha coragem foi a de um sonâmbulo que simplesmente vai”.

“A enorme ausência de forma que é o sono”.

“Ir para o sono se parece tanto com o modo como agora tenho de ir para a minha liberdade".

“Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira. E como imaginar um rosto se não sei de que expressão de rosto preciso?”

Essas são frases que se encontram próximas umas das outras em “A paixão segundo GH”, de Clarice Lispector. Frases que antecedem o momento em que a enunciadora entra em contato visual com a famosa barata da literatura brasileira e se entrega à perda total da forma, que ela chama, entre outros termos, de “desorganização”. Algumas das palavras-chave que formam esses trechos escolhidos aparecem como imagens-chave no Espetáculo “Sonâmbulo”, que assisti no Teatro Poeira: “sonâmbulo”, “sono”, “liberdade”, “ausência”, “rosto”.

Desfiguração

A imagem mais fotografável de “Sonâmbulo” é, sem dúvida, o casaco amarelo sem rosto humano. Ramon Lima, ao chão, leva o pé até o capuz do casaco que veste e esse pé vai puxando, pelo capuz, todo o casaco até separá-lo do corpo do bailarino. Isso leva tempo suficiente para que Ramon explore diversas formas de corpo (não) humano. A mais impactante, entretanto, é a primeira: a forma de um corpo, com a subtração do rosto, da figura.

É uma imagem fantasmagórica. Ao longo dos textos dessa coluna, venho falando sobre a derrubada que a arte contemporânea promove no antropomorfismo, quer dizer, na figura humana idealizada. Essa imagem ainda não havia aparecido: o rosto que some. Ela é formada por meio de um real trabalho de articulação, equilíbrio e extensão dos músculos posteriores do corpo. A reação do público é quase circense: quando finalmente o casaco sai, a plateia faz o som da respiração que volta, mostrando que o fôlego estava em suspenso durante a retirada do casaco.

Pálpebras

Na continuidade desse pensamento a respeito da desfiguração, o tema do sono oferece ao espectador uma quebra precisa com a figura humana: os olhos fechados o tempo inteiro. Na sociedade audiovisual em que vivemos - essa do plano americano recortado no rosto e na tela do celular -, a expressão de atores e não-atores está sempre concentrada nos olhos.

A pálpebra que se abaixa é uma abertura de possibilidades. Essa pele que cobre a expressão do olho torna-se uma cortina fechada. Essa atitude dialoga com nossa tradição dramática ocidental, aquela da quarta parede, do mundo fechado ao espectador, mas pelo caminho menos óbvio. Aqui, ao invés da cena abrir todas as cortinas, evidenciando que se trata de uma encenação, ao invés de falar diretamente ao espectador, o fechamento é total, mas funciona como abertura, de maneira análoga à quebra da quarta parede. Quando a cortina do olho baixa, é quando a expressão desce para as outras partes do corpo. É paradoxal: a pálpebra funciona como cortina, mas é aí que o corpo se ilumina e dialoga diretamente com o espectador. Vemos mais sua expressão quando o olho se apaga.

Desequilíbrios

No reverso do olho está o pé e as pernas e eles estão em evidência nos deslocamentos em desequilíbrio. Sabemos que o equilíbrio não vem apenas da força das pernas, mas, sobretudo, da caixa de força formada pela região abdominal e perineal. Mas, aqui, há uma ativação visível de articulação e músculo dos membros inferiores. O trabalho do equilíbrio e o risco sobre as articulações, bastante interessante, tanto no nível da criação, quanto da execução, lembra a coreógrafa Zoï Tatopoulos. O corpo deixa de parecer apenas humano e experimenta outros apoios e imagens.

Outra referência: em diversas passagens do espetáculo (em especial quando o perfomer está no plano alto ou médio) o deslocamento em desequilíbrio lembra as caminhadas dos atores de Antunes Filho em “Paraíso, Zona Norte” (1989), espetáculo criado em cima de bases estéticas variadas, mas, uma delas, era o butô de Kazuo Ohno. Para quem não era nascido, ou não teve a oportunidade de ver esse encontro do diretor brasileiro com o bailarino japonês, há vídeos e fotos que revelam um corpo vulnerável, com um equilíbrio precário, muitas vezes com os olhos fechados.

Caminhando junto a essas referências, acredito ser inevitável pensar nesse corpo em cena como o corpo brasileiro. Há mais de meia década nosso corpo vem sendo violentado de inúmeras formas, seja por catástrofes naturais, doenças mundiais, medidas governamentais que perpetuam nossa precarização. Até que ponto nos equilibramos entre sono e vigília? Até qual limite o sono é nossa defesa e resistência para mantermos nosso desejo de continuar nesse mundo?

A resistência temática se concretiza na resistência dos membros inferiores. Em dança, quando o espectador vê o corpo do bailarino indo “para baixo”, significa que, internamente, o bailarino está indo “para cima”, ele está, o tempo todo em resistência à queda. Como prolongamentos desse deslocamento em desequilíbrio, há um repertório de movimentos que cabe mencionar, ainda que sucintamente: equilíbrio sobre os ombros, rolamentos, a cabeça recorrentemente na direção do solo. São expansões dessa força constante de um corpo que parece cair e se abandonar, mas nunca completamente, sempre no impulso vital de voltar à vida.


Imersões plásticas e sonoras

A base do cenário é um linóleo branco em 3 faixas em proposital desalinho, criando uma gradação nas 2 extremidades. De um lado, o linóleo fixo ao chão, vemos uma disposição “em escada”. Do outro, o linóleo que sai do chão, uma dinâmica de curvas, ou ondas. Remetem às camadas do sono. O contraste entre a caixa cênica integralmente preta com a claridade do linóleo estabelece uma iluminação vinda do chão e é necessário explorá-la, o que se verifica durante toda a cena.

O figurino joga com o cotidiano: tênis, jeans, camiseta, casaco, capuz. Em um primeiro momento, parece destoar da proposta “onírica” da cena. Mas é esse caráter aparentemente cotidiano que oferece o contraponto necessário para o corpo extremamente extracotidiano de Ramon no palco. O traje “esporte”, relacionado à velocidade e praticidade do dia-a-dia, é o invólucro de uma estrutura corporal lenta, subjetiva, que caminha na direção oposta do esperado. O casaco toma protagonismo entre as peças da indumentária porque dá suporte para a já mencionada desfiguração. O tecido plano dificulta a retirada do casaco e isso é interessantíssimo para a cena.

Em contraste com a retirada do casaco, que é profundamente explorada, a entrada pelo rasgo do linóleo poderia ser mais generosa. O rasgo é um conceito ali. Uma fenda na superfície-luz que promove a entrada na escuridão (do corpo, dos olhos fechados, da perda da forma). Qual camada dessa resistência, que é o sono, esse corpo está atravessando quando não o vemos mais? A caminhada arrastada por dentro dessa camada de chão, quando ouvimos as fitas se descolando (quase um ASMR), é tão instigante e tão pouco frequente na cena da dança ou do teatro, que o espectador gostaria de saboreá-la e, mesmo, ficar assombrado por ela.

Luz e som, na mesma atitude de cenário e figurino, têm assinatura clara, mas não ao ponto de tirar do corpo a ligação orgânica com a plateia. Ambos trabalham nos limites da claridade e da imprecisão. Na luz, isso se evidencia no choque entre a iluminação aberta sem manchas e o tremor da penumbra (que é muito orgânico a ponto do espectador “conseguir ver” a mão do operador na mesa de luz). No som, alguns ruídos contínuos, que hipnotizam, são interrompidos por momentos rápidos de volume alto, que nos retiram da tontura. São manchas visuais e sonoras. Imersões nas camadas do sono.

Sonho

Na conversa que aconteceu na sequência do espetáculo, Ramon apresentou como uma das bases teóricas de sua performance o livro “24/7, capitalismo tardio e os fins do sono”, de Jonathan Crary.

Pelo o que nos conta a teoria da “assim chamada acumulação primitiva”, de Marx, um grupo de expropriados (separados dos meios de produção) torna-se uma classe trabalhadora livre para vender a única mercadoria que lhes resta: sua força de trabalho e, atualmente os serviços uberizados. É bonito pensar que pelo menos o sonho ainda é do trabalhador. Mas será? Pensando a influência virtual que sofre cada um de nós nos desejos e na construção de sonhos, por meio das propagandas da ideologia capitalista, nossa capacidade de sonhar também está contaminada, qual corrente sanguínea tocada por um vírus.

Entretanto, as imagens criadas pelo corpo de Ramon em cena - suas piruetas desconstruídas, suas hélices, espirais e deslocamentos arriscados – nos falam de um corpo para além do sono. Um corpo-sonho. Um corpo que se dá o direito ao sonho – de olhos fechados ou abertos. De certa forma, estabelece um jogo com o prólogo do livro “A noite dos proletários – arquivos do sonho operário”, de Jacques Rancière que, de uma perspectiva histórica marxista, pensa poeticamente as noites dedicadas à arte, à reflexão, às conversas (em contraponto à noite do sono de reparação à jornada de trabalho). Rancière diz a esse respeito: “[...] a suspensão da ancestral hierarquia que subordina os que se dedicam a trabalhar com as próprias mãos aos que foram contemplados com o privilégio do pensamento”. Pensar, sonhar e criar não é permitido a todos. Desperdiçar suas horas de sono reparador para adentrar o mundo da utopia é uma revolta, da perspectiva do sistema de produtividade do capital.

É possível ver esse corpo revoltoso em cena. Não por meio de gestos violentos, ou gritos, mas pelo seu contrário: um corpo nos limites da leveza e do desequilíbrio, quase flutuante. Há uma utopia. Utopia como um horizonte atrás do qual se corre, a despeito do que todas as vozes dizem sobre a impossibilidade de alcançá-lo. Um ponto que se busca atingir e, nessa trajetória utópica, deixamos um rastro que mostra o que realizamos. Esse rastro é fundamental, é aquilo que construímos na nossa caminhada na direção da utopia. O rastro é concreto.


Nesse sentido, não posso deixar de mencionar o rastro de suor deixado pela testa de Ramon Lima na parede de fundo do Teatro Poeira. Um deslocamento cheio de curvas e mudanças de planos é traçado no que seria a rotunda, se a caixa cênica não estivesse inteiramente revelada em seu esqueleto. Ramon, em uma de suas torções, passa o rosto na parede e ali fica uma marca líquida em curva.

Rastro de trabalho humano não-alienado em estado de sonho.

Ficha Técnica

Coreografia e performance: Ramon Lima

Dramaturgista: Luciana Lara

Criação sonora: Sarnadas

Figurino: Marcus Barozzi

Iluminação: Ramon Lima

Assessoria na composição do espaço: Entrevazios Coletivo de Arte

Direção de Produção: Aline Cardoso

Direção técnica e de montagem: Larissa Souza

Produção: Bruta Corp

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