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A árvore por princípio: “És tu, Brasil?” no Teatro Futuros

Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Professor da Escola de Teatro da UniRio

Em 14/10/2024 às 09:34:38

Esta é uma coluna de crítica de dança. Entretanto, como o nome propõe, a dança está além das fronteiras. Na cena contemporânea, o acontecimento dificilmente fica compartimentado em um campo artístico muito específico, ou seja, a dança se confunde à literatura, ao teatro, e a qualquer outra expressão. Dessa maneira, o espetáculo “És tu, Brasil?” (direção de Fernando Nicolau), caminha pelos limites das variadas artes da cena e evidencia a dança (movimento de Raphael Rodrigues e Fernando Nicolau). Por ele estar enquadrado na programação teatral da cidade (e não sob o título “espetáculo de dança”), eu gostaria de pensar o corpo dos performers como campo expandido dos elementos da encenação. Não vou escrever sobre toda a montagem, mas sobre como esses elementos são transformados pelos corpos dos performers e vice-versa.

Dramaturgia

No que diz respeito à dramaturgia (Thiago Scarpat), todas as datas citadas (futuro e passado) convergem para uma dissecação do hino e da bandeira nacionais. Ao longo da encenação muitas datas são ditas (desde a chegada dos colonizadores em 1500, até para além do ano 3000), como atravessamentos de tempos no nosso tempo presente. Esses tempos vão construindo uma biografia trágica do país, com seus infortúnios e heróis sacrificados, até que os performers se juntam no centro do grande tapete cor de sangue e analisam os signos da bandeira. A frase de Auguste Comte ecoa: “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”.


A dramaturgia conduz o espectador a perceber que, das três palavras-chave desse lema positivista, “ordem” e “progresso” foram escolhidas para figurar no tecido que simboliza nosso país, porém “amor” foi excluído. Não apenas o amor, mas o “princípio”. Era aqui que eu queria chegar para falar sobre o campo expandido dos elementos do espetáculo no corpo do ator porque é nessa cena, quase ao fim do espetáculo, que conectamos um gestual que aparece desde o começo do espetáculo: ninar o filho.

O leitmotiv da perna que vira bebê recém-nascido embalado pelos braços do ator diz respeito à origem, aos “filhos deste solo”. O espectador vê esse gesto repetidas vezes e, nessa cena, a ideia da origem faz sentido, notadamente porque vem logo após a fragmentação de uma árvore, quer dizer, estamos falando de raiz. Em nosso berço, nossa raiz, foi arrancado o princípio do amor (e isso estabelece um elo com o futuro catastrófico de nossa ecologia).

Iluminação

Na cena de abertura, a iluminação (Fernando Nicolau) toma o protagonismo da discussão: escuridão, os quatro corpos estão em pé diante da plateia, cada um sob um foco estreito: individualizados. Um foco vermelho acende, sem que haja um ator para ele, quer dizer, o sujeito está problematizado. Em seguida, um foco horizontal (perpendicular ao foco vermelho inicial) forma uma cruz vermelha na cena e, mais dois outros focos verticais e um horizontal acendem, formando uma grade de prisão. O indivíduo foi metamorfoseado no ícone cristão da cruz, para ser metamorfoseado em prisão.

Enquanto isso acontece, o espectador vê os pés dos atores realizando o passo básico do “samba no pé” e percebe que as unhas são vermelhas, mas o vermelho está borrado, como se eles estivessem chafurdando em sangue. O corpo coreografado é “violentado” pelos focos dos refletores e torna-se apenas mais um elemento desse espaço de símbolos violentos.

Figurino

Os figurinos (Luiza Fardin) fragmentam roupas aristocráticas do século XIX, mostrando apenas uma monarquia despedaçada por meio de caudas de casaca, pregas, mangas e crinolina. O corpo dos performers expande esse despedaçamento, com gestos em staccato, tremores e convulsões. Destaco Luiza Loroza, segurando o ventre grávido, com pequenos tremores e olhos revirados, enquanto desenvolve um diálogo que ironiza a nossa lógica colonial de patrão e criado.

Há uma peça do figurino que foge a essa lógica, mas que acabar por completá-la por adotar a lógica decolonial: um casaco Adidas verde e amarelo. Por cima do famoso trio de listras nas mangas, bem como na logomarca no peito, foram bordadas miçangas amarelas (material de artesanato de diversas etnias indígenas). Quando Igor Pedroso faz uma cena na penumbra, são as miçangas amarelas que valorizam os movimentos de seus braços porque trazem luz para o desenho de seu gestual.


Nesse mesmo casaco há um mapa invertido do Brasil, remetendo a Torres Garcia e seu mapa sul-americano de cabeça para baixo, que propõe que deixemos de usar o verbo “nortear” e passemos (criticamente, claro) a usar “sulear”. Esse mapa, vazado e preenchido de látex marrom, evidencia os movimentos das costas do performer.

Cenário

Como elemento cenográfico (Mina Quental), os quatro bancos se destacam. Trata-se de bancos com um só pé, centralizado. Esses pés tem o formato de balaústre, remetendo ao mobiliário do Brasil colonial. O conjunto de atores atravessa a cena, realizando uma cavalgada sobre os bancos, como se estes fossem os cavalos: uma dinâmica quixotesca e vigorosa.


O assento do banco é revestido de espelho, o que conduz os atores a apontá-los para a plateia, nos obrigando a “entrar em cena”, nos convocando a assumir a responsabilidade pela nossa História. Mas isso não é feito apenas com raiva e tristeza; um dos trunfos do elenco é ter muito humor. Por exemplo, era Lucas Sampaio quem apontava o espelho para a “minha” plateia, enquanto iam listando novos formatos e seres no futuro do país. Quando o item “veado geneticamente modificado” foi listado, Lucas apontou para mim e eu me vi no banco do cenário. Foi muito engraçado, não se pode dizer quer que os deuses do teatro não têm humor.

A disposição do espaço cênico em passarela remete à linearidade do desfile de carnaval. Já o enorme tapete vermelho, com desgastes e manchas, nos dá a dimensão da decadência e da violência do processo de colonização. Destaco o corpo de Giovanna Nader na posição de extensão de peito e quadríceps (dhanurasana da yoga) sobre o tapete cor de sangue, que nos faz pensar em um corpo torturado, estressado pelas extremidades.

Som

A criação sonora (Muato e Bob Reis) oferece ao elenco um peso que invade seus corpos. A cena veria outro corpo, se a sonoridade fosse mais leve, menos grave. As escolhas sonoras trazem chão aos performers, suas bases.

Por outro lado, de maneira dialética, também a paisagem sonora sabe oferecer a expansão e a festa. Destaco a música “Capim Guiné”, do Baiana System, que impulsiona o elenco a se expandir pelo espaço cênico. Isso lembra aquelas rodas que se abrem nos shows dessa banda e o público interage meio dançando, meio se batendo. Na cena, é uma alegria dançante em meio ao fim de um mundo.

Encenação e produção

Está claro que a encenação está contida em cada um dos subtítulos acima, mas destaco um momento importante e que se relaciona com os corpos “fragmentados” do elenco. Os bancos de um só pé são empilhados, formando uma escultura vertical, um totem, que faz referência à estrutura da árvore (na peça, tanto à mangueira, quanto ao pau-brasil). Em um só gesto, todos ao mesmo tempo, os atores despedaçam essa árvore nos deixando a imagem desoladora do vazio pós-desmatamento. Nos agradecimentos, entretanto, há uma compensação com a presença de uma árvore (vejam o espetáculo e confiram).

A encenação parece ter trabalhado com todos esses profissionais de maneira concomitante porque o que aparece em cena é uma consonância nas linguagens. O corpo de “És tu, Brasil?” já entrou em colapso há mais de 500 anos e o que ele pode nos oferecer é esse Frankenstein de carnes atravessadas por passado, presente e futuro ao mesmo tempo.

A produção de Ana Paula Abreu e Renata Blasi (Diálogo da Arte) é bastante cuidadosa, o que se evidencia tanto no acontecimento cênico, quanto na leitura da ficha técnica.

Vale a pena conferir “És tu, Brasil?” no teatro Futuros até o próximo fim de semana.

Ficha técnica

Direção: Fernando Nicolau
Dramaturgia: Thiago Scarpat
Elenco: Giovanna Nader, Igor Pedroso, Lucas Sampaio e Luiza Loroza
Iluminação: Fernando Nicolau
Figurino: Luiza Fardin
Cenografia: Mina Quental
Direção Musical: André Muato
Direção de Movimento: Fernando Nicolau
Preparação Vocal: Pedro Lima
Assessoria de Imprensa: Marrom Glacê Comunicação
Projeto Gráfico e Direção de Arte das Fotos: Fernando Nicolau
Fotos: João Julio Mello
Produtoras Associadas: Renata Blasi e Ana Paula Abreu (Diálogo da Arte)
Realização: 1COMUM Coletivo e O Tempo Virou

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