A gente vive numa daquelas fases da história que não dá mais para voltar. Não dá pra “desinventar” a inteligência artificial. Assim como não dá pra simplesmente deixar de lado todos os avanços que tivemos pelo medo do desconhecido que eles traziam.
Recentemente, reli “Diálogos” de Platão para preparar uma aula. Na obra, Platão critica a invenção do alfabeto, pois fica preocupado com prejudicial da escrita. Naquela época, o conhecimento era transmitido através das tradicionais artes retóricas baseadas na memória. Em seus “Diálogos”, argumentando pela voz de Thamus, o rei egípcio dos deuses, Platão afirmou que o uso dessa tecnologia mais moderna criaria “esquecimento na alma dos aprendizes, porque eles não usarão suas memórias”, que transmitiria “não a verdade, mas apenas a aparência da verdade” e que aqueles que a adotassem “pareceriam ser oniscientes e geralmente não saberiam nada”, com “a demonstração de sabedoria sem a realidade”.
Se Platão estivesse vivo hoje, ele diria coisas semelhantes sobre a Inteligência Artificial? Talvez. Com ela avançando em um ritmo mais rápido que a Lei de Moore, certamente criará uma demanda por outras habilidades avançadas. O Prêmio Nobel Herbert Simon observou em 1971 que, à medida que as informações se tornavam avassaladoras, o valor de nossa atenção crescia. “Uma riqueza de informações cria uma pobreza de atenção”, como ele disse. Da mesma forma, a capacidade de discernir a verdade do excesso de respostas aparentemente plausíveis, mas profundamente incorretas, será preciosa (o ChatGPT mesmo infere respostas que tem um “quê” de verdade, mas são substratos de diversos insumos de informação que não são fidedignos).
Platão errou ao pensar que a própria memória é um objetivo, e não um meio para que as pessoas tenham fatos à sua disposição para que possam fazer melhores análises e argumentos. Os gregos desenvolveram muitas técnicas para memorizar poemas como a “Odisséia”, com seus mais de 12.000 versos. Mas, por que se preocupar em forçar isso se você pode anotar tudo em livros?
Assim como Platão errou ao temer a palavra escrita como inimiga, nós estaríamos errados ao pensar que devemos resistir a um processo que nos permite coletar, tratar e executar informações com mais facilidade.
À medida que as sociedades responderam aos avanços tecnológicos anteriores, como a mecanização, por meio da criação de uma rede de segurança pública, uma semana de trabalho mais curta e um salário mínimo, também precisaremos de políticas que permitam que mais pessoas vivam com dignidade como um direito básico, mesmo que suas habilidades tenham diminuído.
O caminho a seguir não é apenas lamentar as habilidades suplantadas, como Platão fez, mas também reconhecer que, à medida que habilidades mais complexas se tornam essenciais, nossa sociedade deve educar as pessoas de maneira equitativa para desenvolvê-las. E então sempre volta ao básico. Valorize as pessoas como pessoas, não apenas como conjuntos de habilidades. E isso não é algo que a Inteligência Artificial possa nos dizer como fazer.