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"O homem que engoliu um chip": quando um artista explode dentro de nós

Olhar Teatral, Por Paty Lopes, Crítica Teatral

Em 17/08/2023 às 15:48:35

Parece ser um pouco over o que vou escrever, mas acho que encontramos o nosso “Um Estranho no Ninho” (filme ambientado em uma clínica psiquiátrica, o filme conta a história de Randall McMurphy, um indivíduo de espírito livre que termina fugindo da prisão e lidera os pacientes em uma rebelião contra a equipe opressiva). Um dos melhores filmes que já assisti, pela belíssima atuação do artista. Inclusive, ele levou o Oscar de melhor ator.

"A psicose é um distúrbio grosseiro da capacidade do indivíduo distinguir o eu da realidade. Nos esquizofrênicos, a membrana entre a imaginação e a realidade e tão porosa, que uma ideia não se distingue de ter uma experiência. Com o tempo, a capacidade emocional fica reduzida, a pessoa pode parecer ausente e desprovida de emoções". (Longe da Árvore - Andrew Solomon).

No dia em que saí casa para assistir à obra, confesso que estava um pouco desanimada. No ano passado, assisti outro trabalho do artista que não me atravessou. Embora o tema fosse interessante, tinha alguma cenas de socos e chutes que me causaram uma sensação ruim e isso me deixou um pouco incomodada. Com isso, fui assistir ao espetáculo “O Homem que Engoliu um Chip” sem acreditar muito na montagem.

Percebi que, depois da estreia, a qual eu tinha sido convidada, mas não fui, por ter outros compromissos, alguns formadores de opinião falaram sobre o espetáculo, inclusive meu ídolo Ney Matogrosso. Mas lógico que isso é indiferente para mim. Afinal, a arte tem o poder de provocar o indivíduo de formas diferentes, são interpretações individuais que nos levam a simpatizar ou não com aquele fazer artístico.

Cheguei ao teatro, peguei meus ingressos, sentei-me. O espetáculo está no porão Rogério Cardoso, na Casa de Cultura laura Alvim. Ouvi o terceiro sinal, apagou-se a luz e, dali por diante, assisti um artista do tamanho do mundo.

Ele me levou a Jim Carrey e Jack Nicholson diante dos meus olhos. Quanta emoção é ter um artista assim! Desse tamanho! Quanto orgulho de ser brasileira e do teatro brasileiro! Obrigada, Manoel! (são onze e um da manhã e um cisco caiu em meus olhos mais uma vez. Não sou cronológica quando escrevo. Um texto é como um bolo: deixamos crescer).

Meu Deus, eu estou até agora impactada com o que assisti. Confesso ainda estar tocada, ou posso dizer, consumida pelo presente que me deram.

Acho que eu assistiria Manoel Madeira nesse espetáculo umas quinze vezes, e pediria para ele repetir algumas cenas, só para que eu pudesse desfrutar da sua arte, essa que é imortal, que ficará para o futuro.

Manoel nos conduz a um monólogo com uma quantidade expressiva de personagens. Todos, DIGO TODOS eles apresentados com expressões corporais e entonações de voz diferentes, sem contar as expressões dos olhos de cada um. O que o artista faz naquele porão explode dentro de nós. Manoel e sua arte não cabem dentro dele. Exatamente por isso, os artistas saem das salas de teatro querendo reverberar o que é assistido. Que a jornalista Leilane Neubarth leia: a vontade que me dá é de gritar em cima de um arranha-céu, o mais alto que tiver, o seguinte: não deixem de assistir "O Homem que Engoliu um Chip", caramba!

Manoel flutua nas mãos dos deuses do teatro, porque o que é visto não pode ser julgado como algo normal. Não mesmo, porque simplesmente não é!

NO ESCURO OUVEM-SE RUÍDOS DE QUEBRADEIRA: NUM ACESSO DE FÚRIA, RODRIGO QUEBRA OS MÓVEIS DA SALA DE SUA MÃE. MIXADA AO SOM DA QUEBRADEIRA, OUVIMOS TRECHOS DA “ORAÇÃO DE NOSSA SENHORA DA CABEÇA”. QUANDO TERMINA A QUEBRADEIRA, OUVIMOS OS DOIS ÚLTIMOS VERSOS DA PRECE NA VOZ DO PERFORMER, AINDA NO ESCURO.

Eis aí o começo do espetáculo, na íntegra! Mas, mesmo assim, vocês ainda não podem ter ideia do que isso provoca em cada um de nós. Somos eletrocutados já no início da peça!

Ao acender dos refletores, o artista começa a mostrar sua potência artística. Ele apresenta seu personagem principal, o protagonista, um esquizofrênico. Ele está em um manicômio e não está sozinho. Tem o homem que bate a cabeça na parede, tem a mulher que adoeceu por causa de amor, tem um sargento, são muitos personagens.

O protagonista nos conta com detalhes seus dias no manicômio e tudo que passa em sua cabeça. Leitores, por mais que eu tente escrever, eu me perco, porque são tantos detalhes e todos de uma beleza tão inquestionável, uma arte tão visceral, que muitas vezes me questiono entre uma frase e outra como foi possível a execução dessa montagem…

Peço perdão, mas realmente é algo incomum.

Manoel se contorce quando toma suas injeções, quando os remédios provocam nele os devaneios mentais, tudo com expressões corporais perfeitas.

Ele tem um amigo imaginário, com quem conversa uma boa parte do tempo, Rimbaud!

Rimbaud foi um poeta simbolista francês (1854-1891), outro personagem que Manoel encarna, com um sotaque francês mequetrefe ou bandido, espetacular.

Esse amigo o questiona e outrora o acusa e lhe faz companhia também. Quando menos imagina, o poeta aparece. Uma encenação digna de aplausos. Estupenda, pode-se dizer!

Em um certo momento, Manoel se ajoelha no cenário. Com as mãos, conta uma história, fazendo da sua atuação mais que relevante, porque há tanta preciosidade nos movimentos, no fazer teatro, que simplesmente tento não piscar para não perder um milésimo de segundo da atuação do artista.

Quando sobe em um cubo, no centro do palco, ele mais parece uma estátua de Rodin. Não pelo desenhos dos seus músculos, mas pela imponência da sua arte!

A intervenção da Benzetacil

Com movimentos corporais mergulhados em uma pesquisa, muito bem executada pela direção de movimento, o protagonista apresenta incontidas retrações musculares. O personagem nos leva às respostas dos remédios que caem sobre sua cabeça (literalmente). Nesse momento de delírio, a trilha sonora e a iluminação se encontram com Van Gogh. Confesso que chorei, porque há tanta força na cena, tanta poesia que me entreguei. Minha alma foi levada pela ficha técnica!

Lembrei-me que Van Gogh sofria de saúde mental. Emocionei-me muito com a menção ao grande expressionista. O desenho de luz chamou a palheta de cores azul e amarelo, cores predominantes do artista. Eu senti Van Gogh, porque ali havia arte. E onde tem arte, tem Van Gogh. Confesso que só de lembrar, as lágrimas voltam aos meus olhos. Que cena! Que transbordo teatral gigantesco!

Nesse momento, o texto menciona o poeta Maiakovski. Como Van Gogh, o suicídio também o levou. Aliás, o suicídio chega bem ao texto.

Entre 5% e 13% das pessoas com esquizofrenia cometem suicídio.

“Sei bem que, em certo sentido, isso não seja o pior; uma mulher cujo irmão esquizofrênico suicidou, disse: mamãe acabou se conformando com a morte de Roger, mas nunca se conformou com a vida dele” (Depoimento no livro "Longe da Árvore", de Andrew Solomon, consultor especial de saúde mental).

Isso é para terem noção da dimensão dessa terrível doença.

Esse trabalho é a quatro mãos, informa Manoel, que menciona seus colegas, Garib, Ramon e Anita.

“Hospício é a melhor forma de não melhorar. Como se pode sentir falta de um lugar de onde ninguém vem? Pra onde só se vai.” (Texto)

A obra de Ramon Nunes é para dilacerar os nossos espíritos. Ele entra em nossa medula óssea e a divide, corta ao meio. Um texto forte, inteligente, equilibrado, com uma nota de comicidade. Tudo mais-que-perfeito. Uma obra de arte teatral! Um verdadeiro primor.

Quantas emoções sentimos com essa dramaturgia. Não temos como medir e tentar comprovar o que se sente, talvez nem premiações diriam tanto. Uma pólvora que explode diante dos nossos olhos e dentro de nós!

Adriano Garib faz a direção, mas antes de qualquer coisa, penso que entende muito bem de engenharia, porque levar um espetáculo desse para um espaço tão pequeno é realmente um milagre! A peça é um desaguar de insanidade, com movimentos insanos. Um absurdo tudo caber ali dentro. O diretor artístico soube fazer e deu certo, certíssimo, mais do que certo!

Ao dirigir Manoel, fico imaginando os ensaios, diversas construções de personagens, o diálogo entre o personagem e seu amigo imaginário. Fico imaginando como eles chegaram a essa parte da obra, tão surreal e satisfatória.

A direção de movimento de Toni Rodrigues também deve ser mencionada, porque falamos de um esquizofrênico que permeia entre a falta de controle muscular e sua habilidade de se convencer de suas próprias histórias.

Adriano Garib é a voz off também. Aliás não é a primeira vez que o artista atua desta forma. Em Hamlet (Cia Armazém), ele aproximou-se por meio de vídeo. Garib tem o tom de voz imponente, assim como sua postura. Ele completa esse espaço com sua postura epopeica.

Rodrigo Belay trouxe uma iluminação eficiente. Um nome que eu já conhecia, que já chega mais uma vez me fazendo reconhecer a maestria do seu trabalho.

Um espaço micro e, mesmo assim, com palhetas de cores diversas sem causar demasia. Isso não é para qualquer um.

Vermelho, âmbar, azul e laser. Ele deu o tom, fazendo a rima ficar mais clara, como cantava Gal Costa. Que trabalho lindo!

Fabio Storino e Thales Cavalcante brincaram com o som, orquestrando os devaneios do maluco beleza! Soube trazer trilha sonora, sonoplastia, tudo em perfeita ordem, sem vacilar!

Soube trazer emoção, porque músicas emocionam. Eles não pecaram, apenas acertaram, confiaram no bom senso e persistiram no caminho da assertividade!

Nelo Morresse fez um trabalho de imensa valia, o cenário e o figurino.

Em um certo momento do espetáculo, o surto chega de uma vez. É onde Todog chega à mente do protagonista.

Um ser enigmático, a criação de um ser supremo que, com a indumentária de Nelo, cresce muito.

Se ele engoliu um chip, uma caixa de madeira esculpida e vazada está no centro do palco. Nos leva a componentes internos (placas) de um hardware. Simples e suficiente!

A obra é astuta e, como um trator, passa por cima de nós, nos deixa embasbacados diante da façanha, diante de um trabalho imenso e intenso. Fico a imaginar toda essa criação.

O monólogo é uma adaptação do livro “Todos os cachorros são azuis”, romance autoficcional do poeta, escritor e artista plástico carioca Rodrigo de Souza Leão, morto em 2009 em um manicômio, um esquizofrênico.

A adaptação de Ramon me levou ao delírio. As frases que usamos no dia-a-dia... Ele foi presunçoso e corajoso em acreditar que daria certo. Uma coragem de saber lidar com as palavras, o mergulho, o que deve ou não deve estar na dramaturgia. Limpa gorduras e joga na boca do autor. Deu certo, não deu... uma verdadeira via crucis para ficar tudo como ficou. Indelével.

“Não sei ao certo o que devo fazer para melhorar. Simplesmente porque sou um pterodáctilo numa gaiola.” Essa é a frase de efeito quando o personagem é levado para o hospício.

“Sou amigo dos meus olhos. Eles só veem o que quero. Olho pelos meus óculos coloridos e vejo tudo em preto e branco. Tudo parece um filme de Bergman”. (Texto)

A sutileza do texto, ao nos levar ao cinema, ao mencionar esta frase e, em seguida, sugerir um filme de Bergman, foi outra façanha. Sabe-se que o diretor sempre trouxe filmes que abordaram temas como esse.

O texto traz de Jorge Ben Jor a Frank Sinatra. Um verdadeiro banho de criatividade, ou loucura?

E pousamos nas forças da natureza: “Eparrei, Iansã! Ogum oiê!”

Uma maravilha!

Conheci o artista por meio de um audiovisual durante a pandemia. O espetáculo da Cia Artesanal - "Ludwig/2". Ele, com seu alemão bem adequado, deu um show de interpretação. Aliás, ele faz parte de uma safra de artistas maravilhosos. A própria Cia Artesanal acabou de sair do CCBB do Rio de Janeiro, com o espetáculo "Azul", um sucesso estrondoso. Nessa mesma cia, passou Alexandre Lino, que está para estrear seu filme "O Porteiro", com projeção nacional.

Manoel parece que também encontrou seu céu, pois está voando alto, perto do amarelo do sol e vislumbrando das nuvens os girassóis de Van Gogh aqui na terra!

Os percalços, as inseguranças podem pairar sobre ele, o sentimento de desistência de um ofício tão complexo. Tudo vem ao encontro, mas Manoel não é somente forte para continuar, é um artista NADA microscópico das artes cênicas.

Torço para que o público acorde e corra para o teatro para assistir a uma obra singular, com uma performance inquieta e majestosa como a deste ator!

SINOPSE

“O HOMEM QUE ENGOLIU UM CHIP” conta a história de um poeta que sofre de esquizofrenia. Um relato comovente e, ao mesmo tempo, auto irônico, sobre sua internação no hospício, suas memórias e reflexões.

Com atuação de Manoel Madeira, direção de Adriano Garib e dramaturgia de Ramon Nunes Mello, o monólogo é uma adaptação de “Todos os cachorros são azuis”, romance autoficcional do poeta, escritor e artista plástico carioca Rodrigo de Souza Leão.

FICHA TÉCNICA

Idealização e Dramaturgia: Ramon Nunes Mello

Direção Artística: Adriano Garib

Atuação: Manoel Madeira

Assistência de Direção: Anita Mafra

Direção de Movimento: Toni Rodrigues

Cenografia e Figurinos: Nello Marrese

Desenho de Luz: Rodrigo Belay

Trilha Sonora: Thales Cavalcanti

Desenho de Som: Fábio Storino e Thales Cavalcanti

Operação de Som: Fábio Storino

Operação de Luz: Clarice Sauma

Produção Executiva: Anita Mafra e Manoel Madeira

Assistência de Produção: Pedro Uchoa

Identidade Visual: Tinta Labs

Depoimento em Off: Rodrigo de Souza Leão (entrevistado por Ramon Nunes Mello)

Vozes em Off: Adriano Garib

Letra da Canção "Pelicano Azul": Adriano Garib e Manoel Madeira

Realização: Proposta A6 Produções Culturais

SERVIÇO

Local: Casa de Cultura Laura Alvim / Espaço Rogério Cardoso

Endereço: Av. Vieira Souto, nº 176 – Ipanema

Temporada: de 08 a 30 de agosto (terças e quartas-feiras)

Horário: 19h

Ingressos: R$ 40 (Inteira) e R$ 20 (Meia-entrada)

Link para compra: https://funarj.eleventickets.com/

Duração: 60 minutos

Classificação: 16 anos

Gênero: Performance solo/comédia

Lotação: 53 lugares














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