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"Diário de um Louco": noventa minutos sem piscar os olhos

Olhar Teatral, Por Paty Lopes, Crítica Teatral

Em 28/08/2023 às 15:59:59

"Diário de um Louco" é considerado um dos melhores contos do dramaturgo e escritor russo Nikolai Gogol. A primeira publicação se deu na coletânea "Arabesques", em 1835. A estória dramatiza a vida do funcionário público Poprishchin e a deterioração gradual da sua sanidade até ser internado em um hospício. Essa é a sinopse do livro, o que já chama muito a atenção.

O Centro Cultural do Banco do Brasil apresenta uma montagem corpulenta, que toma toda a plateia, a colocando em silêncio e me fazendo duvidar se o espectador pisca os olhos durante noventa minutos. Essa é a sensação após assisti-lo em um domingo chuvoso.

Bruce Gomlevsky é o diretor artístico da obra. Questiono para mim mesma se ele tem alguma receita para suas montagens, sua teatralidade. Ele sempre acerta. Essa não é só uma frase dita por mim, mas também por meu colega de escrita Wagner Correa. É uma sequência de obras arrebatadoras. Como um grande maestro, ele sempre apresenta trabalhos que estão acima do esperado, transforma os artistas em alaúdes de ouro, com ressonância sensível e inesquecível.

"Um Tartufo", "Uma Revolução dos Bichos" e agora o "Diário de um Louco". Apontar uma falha em uma dessas obras é não entender de teatro.

As obras de Bruce são sempre sucessos de público e de crítica. Recentemente, estavam no maior festival de teatro do Brasil, que acontece em Curitiba/PR, informações que chancelam as menções sobre o artista.

Detalhes que potencializam a obra a todo momento são trazidas aos palcos, com muita sutileza e quem estiver atento pode perceber o trabalho minucioso e inteligente do diretor.

Bruce é inquieto, nunca satisfeito com suas obras, essas que podemos dizer que são obras-primas. Da escolha dos artistas aos elementos que constituem uma peça de teatro. O diretor não é um amigo particular, apenas trocamos informações vez em quando por meio de uma página pessoal, o que acho bom, afinal não me sinto obrigada a tecer loas sobre sua obra. Apenas escrevo porque há nele competência no "saber fazer teatro". E isso, a meu ver é indiscutível.

Ele tem o poder de afinar jovens no palco. É o caso de Pedro Di Carvalho, um artista novo que, a cada trabalho, mostra-se um artista maior. O diretor lapida diamantes brutos, isso é outro fato que não cabe discussão. Quando se junta com artistas com bagagem mais pesada, caso de Milhem Cortaz, temos aí realmente uma tropa de elite!

Cortaz entra no palco todo molhado. O guarda-chuva do personagem não tem forro, apenas uma estrutura de alumínio. Come a banana no copo e bebe a água no prato. São detalhes riquíssimos, que "falam" ao iniciar a obra. Lê um livro em alemão, de Goethe. Os sofrimentos do jovem Werther, literatura também escrita em primeira pessoa, em 1774. No livro, Werther é marcado por uma paixão profunda, tempestuosa e desditosa por uma mulher. Essa é a sinopse, que não está distante do "Diário de Um Louco", levando em consideração os delírios do personagem Poprishchin pela filha do homem que era subordinado na repartição pública que trabalhava. No entanto, Goethe era alemão e não russo. Tudo uma loucura. Elementos surreais inseridos com sapiência.

Sempre admirei os trabalhos dos figurinistas, cenógrafos e iluminadores que, mais uma vez, fizeram um trabalho belíssimo. Porém, quando falamos do "Diário de um Louco", o trabalho dependeu quase que inteiramente do único artista no palco: Milhem Cortaz.

Eu tenho a sensação que, se esse artista fizesse esse trabalho nu, sem cenário, sem iluminação, sem sonoplastia ou trilha sonora, ficaríamos boquiabertos da mesma forma.

São NOVENTA MINUTOS DE TEXTO, na boca do artista, sem titubear. Um feito digno de aplausos. São tantas as façanhas do artista que elevam seu trabalho, que fica difícil por onde começar.

Para que vocês tenham uma ideia, ao sair do teatro, um crítico renomado da cidade do Rio de Janeiro disse: “não tenho roupas para escrever essa crítica”!

Se Gilberto Bartholo não tem roupa, posso dizer que me falta lápis, caneta, papel, neurônios e tudo mais…

Como falava Ayrton Senna: “eu não tenho ídolos. Tenho admiração por trabalho, dedicação e competência”. Isso é o que eu posso dizer em relação a esse ator cênico e seu diretor.

A voz do artista acompanha as palavras sem gritos, que poderiam dispersar a sequência de um texto denso.

Há uma conexão com a plateia e não só através do texto. Os olhos do artista falam ao seu público. Quando se aproxima do espectador e sai do palco para uma inteiração maior, seu trabalho fica mais latente.

O texto surpreende o tempo inteiro e a atuação do artista apresenta um resultado belíssimo.

A iluminação é perfeita e segue um mapa bem desenhado. Nada over, que destoasse das cenas.

Quando o figurino apresenta uma camisa linda, um corte que nos remete a um passado, ao desabotoar uma parte da manga, ela nos leva a sensação de uma camisa de força, o que é de uma perspicácia ímpar.

O cenário é construído com arames, que nos leva a reconhecer o cérebro humano, com suas fibras nervosas, assim como uma mesa com correias que levam aos tratamentos ultrapassados dos esquizofrênicos.

A verdade é que todo objeto de cena do palco atua, constroi atos, indumentárias e muito mais do que pode-se imaginar. Jamais imaginaria um banco se tornar um belo manto real.

Embora a história seja contada cronologicamente, em alguns momentos notamos datas mergulhadas em devaneios.

Sempre quando vou ao teatro, encho-me de entusiasmo, com as escutas abertas, para que eu me encontre com as mensagens e uma nova forma de ver a vida, de seguir nesse plano. Neste espetáculo, encontrei-me com um personagem em seus devaneios e jamais imaginei que existiriam alucinações tão poéticas. Confesso que tive vontade de abraçar aquele personagem e fazer parte da sua loucura. De dizer: vem comigo, eu não vou deixar que te façam nenhum mal!

Embora o personagem tivesse um desejo imenso de ter uma vida luxuosa e isso o tenha encaminhado à loucura, obviamente que fazer amizade com um cachorro não é um grande mal. Quando isso é levado ao teatro, com cenas de excelência, entendo que louco mesmo é quem não sai de casa para assistir.

Vale muito lembrar que a bolha aristocrata russa no século dezenove deixava qualquer operário louco. Penso que isso ocorre até os dias atuais, até porque há uma verossimilhança: os operários das indústrias que constituíam a emergente classe social que surgiu na Rússia, no século XIX, se encontravam em condições extremas de exploração: péssimos salários, nenhuma legislação trabalhista, falta de segurança e uma carga horária diária de 12 a 16 horas. Os mujiques (camponeses russos), considerados servos até a reforma agrícola de 1861, ainda trabalhavam em um regime de servidão até 1917, muito parecido com o que aconteceu no Brasil logo após a abolição da escravatura. Os mujiques foram mencionados por Liev Tolstói e Anton Tchekhov. É a arte, que sempre apresenta a síntese de quem realmente somos.

A crítica do livro está relacionada ao comportamento arrogante da sociedade oligárquica de sua época. Assim, a ridicularização do autor aos demais personagens da literatura.

SINOPSE

Em formato de um diário, a peça conta a história de um funcionário público e a súbita paixão pela filha do seu chefe, que desencadeia uma série de conflitos com o mundo ao redor, culminando na desestruturação total do seu pensamento e na sua internação em um manicômio.

FICHA TÉCNICA

Texto: Nicolai Gogol

Tradução: Paulo Bezerra – Editora34

Idealização: Carlos Grun

Direção: Bruce Gomlevsky

Elenco: Milhem Cortaz

Luz: Elisa Tandeta

Figurinos: Carol Lobato

Cenário: Nello Marrese

Direção Musical e Música Original: Marcelo Alonso Neves

Direção de Produção: Carlos Grun

Realização: Bem Legal Produções

SERVIÇO

Data: Até 03 de setembro

Local: Teatro III

Endereço: R. Primeiro de Março, 66 - Centro – Rio de Janeiro - RJ.

Horário: Quinta, sexta às 19h, sábado 17h e 19h e domingo às 18h

Classificação etária: 14 anos




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