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"Tempestade": uma das mais belas obras teatrais de 2023

Olhar Teatral, Por Paty Lopes, Crítica Teatral

Em 21/09/2023 às 21:26:50

Dizem que o teatro é mágico, com alguns deuses que o protegem. Posso dizer que fica cada vez mais difícil manter o meu ateísmo em relação à força espiritual que as artes cênicas carregam. Não faz muito tempo que o corpo de um dos maiores fazedores de teatro do Brasil repousava no Teatro Poeira, tristemente imóvel, para que outros artista se despedissem daquela potência teatral adormecida…

E nesse mesmo lugar de lágrimas e despedidas, uma força incomum parece tomar o corpo de cinco artistas naquele palco, como se estivessem sob uma influência mítica, algo que permeia entre a vida e a morte. Impossível sintetizar os pensamentos e as reflexões em relação às sensações que tive.

Como se fosse uma catarse ou quem sabe algo ligado ao metaverso das almas…

Ao terminar o espetáculo, falei com a produtora Dadá Maia. Comentei que o figurinista e o cenógrafo eram irmãos siameses, porque a estética de ambos estava de mãos dadas, se completavam. Ela respondeu que as rubricas pertencem a Ronald Teixeira.

Ele utilizou do tom cru ao marrom, tanto nos figurinos quanto no cenário, um desaguar de elegância, tudo muito refinado. Suas mãos atuam com delicadeza ao trazer linho, malhas tingidas, tecidos brocados, rendas de algodão, uma variedade de tons bem colocados, tudo minuciosamente desenhado e escolhido com destreza. Um encanto, é o que digo. O cenário carregado com paletes, no menso tom, cru, rede envolta a uma construção marítima, madeiras que desenhavam um barco e caixas vazadas que escondiam as araras, onde ficavam os figurinos. No chão, um linhão, um tecido forte em tom cru sujo. Em tudo há uma beleza que define o bom gosto inquestionável do artista. Fios de tecidos em tom pastel que levavam a uma espécie de túnel. Tudo muito mágico, e, ao mesmo tempo, intimista, o que adoro!

Junto à iluminação, pode-se afirmar que a obra é uma das mais belas de 2023. O profissional cuida até mesmo dos objetos de cena, um livro de bruxaria, com símbolos elfos ou bruxo, não sei ao certo, uma coisa inevitavelmente percebida por tamanha beleza e cuidado.

A iluminação de Ana Simonassi, é um deslumbre. Faz pouco tempo que ela esteve nessa coluna, mas posso dizer que a cada obra ela supera seus próprios feitos. A profissional soube trabalhar o espaço. Com uma quantidade expressiva de refletores pares, trouxe rajadas de luz que ficaram bem. Soube focar a luz onde era necessário, em lugares que comprometiam a beleza estética, como, por exemplo, onde os artistas mudavam de figurinos. Sabiamente, entendeu que necessitaria desfocar a intensidade. Ela foi perfeita, incorrigível. Como a dramaturgia se passava em uma ilha, mas com um naufrágio inicial, trouxe da plateia o azul do mar. A contra-luz, que embeleza a cena final, é um transbordo de Ana.

Durante a tempestade no mar, um foco de luz balança de um lado para o outro e, por isso, nos sentimos no convés do navio. Fantástico, mesmo sendo minimalista.

Mas ainda cabe falar sobre um jogo de luz que ela leva ao palco, que mais parecia furta cor, que enlouquece nossos olhos! Magnitude! Parabéns, ANA! Lindo!

A Tempestade ("The Tempest", no original) é uma peça teatral do dramaturgo inglês William Shakespeare, que acredita-se ter sido escrita entre 1610 e 1611. É tida por muitos críticos como a última peça escrita pelo autor. A obra passa-se numa ilha remota, onde Próspero, Duque de Milão por direito, planeja restaurar a sua filha, Miranda, ao poder utilizando-se de ilusão e manipulação. Próspero então invoca a epônima tempestade, visando assim atrair seu irmão Antônio, que lhe usurpou a posição de duque, e seu cúmplice, o rei Alonso de Nápoles, para a ilha. Lá, suas maquinações acabam por revelar a natureza vil de Antônio, provocando a redenção do rei, e o casamento de Miranda com o filho de Alonso, Ferdinando.

Para sempre Shakespeare!

Que alegria é estar diante da obra de um dos maiores dramaturgos do mundo, se não for o maior. Quanta beleza há!

Mas o que chamou minha atenção foi como o tema sobre o amor entre duas pessoas do mesmo gênero foi abordado, com tanta poesia, sem agressividade, sem o mais do mesmo, sem exaustão, tudo com uma poética apurada, como deve ser, com naturalidade. Adorei isso, foi uma peripécia digna de muitos aplausos, porque eleva as relações a outro patamar. Podemos enxergar com muito mais beleza, do jeito que deveria ser. Que presente para a plateia!

AMÁLIA LIMA e RAQUEL KARRO são responsáveis pela direção de movimento. O que se pode dizer? Um espetáculo à parte. Ambas nos levam a admiração por seus trabalhos. Cada personagem com sua força, principalmente os personagens encantados. Em especial os movimentos dos artistas ARIANE SOUZA, AUGUSTO TRAINOTTI (Ariel: espírito do ar). Quando Augusto entra no palco, se não cuidarmos do coração, ele explode! Um ser enigmático que respira Shakespeare! E a bruxa? A personagem de Ariane também muitíssimo imponente, bela. Ela, ao aparecer no palco, estava sempre envolvida em uma esfera mágica, algo incomum.

Falando em incomum, posso dizer o mesmo de Augusto, em um corpo que é visivelmente adaptado à dança, como se fosse um pilar artístico na vida dele. O olhar, a voz, tudo do artista era sagrado, perfeito. Um personagem apaixonante e enriquecido com movimentos corporais. Ele é luz, é como uma brisa que passa, não causa bagunça, mas sim uma sensação delicada de frescor. Não sei se ele era um pássaro, um sátiro. Ele representa a magia, é o que o autor escreveu: “somos da mesma substância que os sonhos”. Quanta inundação saudável artística há nele! Os músculos prontos para o teatro: giros, piruetas e sedução de sobra há no trabalho dele.

Gostaria muito de falar da atriz LUIZA LEMMERTZ (Miranda). O sobrenome já sobreavisa que há nela uma veia artística, e das boas! No entanto, isso não é o suficiente. O suficiente é lembrar de Luisa no Sesc Copacabana, alimentando a personagem de Diadorim, do eterno Guimarães Rosa, com a direção de Bia Lessa, em Grande Sertão Veredas. Ela atuou ao lado de Caio Blat. Jamais vou esquecer a atriz por esse trabalho e não por seu sobrenome. Ao assistir Luisa subindo e descendo de ferros, nua, interpretando com fogo, com devoção a Diadorim, percebi sua beleza cênica. E na "Tempestade", notei, que ela cravou-se em mim mais uma vez! Da-lhe, Luiza!

Senhorita Loroza, a inquieta moça do teatro carioca ou uma boneca de Shakespeare? Luiza como princesa me levou a uma boneca, pois há na personagem uma ingenuidade, muito belo. A personagem de Luiza é uma graça, a princesa Claribel, que é um príncipe no original. A personagem parece ter sido feita para a atriz. Ela é envolvida com o teatro infantil e, junto a Duda Maia (grande diretora), tem aprendido a trabalhar o movimentar no palco. Pelo visto isso tem dado certo. A atriz já assumiu algumas direções e agora está no palco do Poeira. Que belo papel! Ela merecia muito, pois trabalha arduamente. Somente quem está nos teatros entende do que falo. Loroza é do time das artes cênicas, rala mesmo, se entrega, aprende! Com dois personagens, apresenta-se com glória. Ao lado da Luiza, ambas as atrizes nos levam à verdade que só um bom trabalho e talento pode oferecer. Contracenam com amor e afirmo que, nessas cenas, há imensurável graça. A cena final, ao lado de Luiza, alimentada pela luz da senhorita Simonassi, traz à plateia uma visão angelical e precisa para os dias atuais. Como diz a cantora Zélia Duncan, o amor não faz mal a ninguém!

Julia (Próspera), mais uma vez, mostra a sua graça, coroada pelos tais deuses do teatro. Ela se espalha no palco! Julia é imensa, leva seus personagens sempre com muita leveza, mas com intensidade pitoresca assertiva. Sua personagem parece madura. Uma deusa? Uma mulher da magia, mas com um histórico humano complexo. Pobre mulher! No desdobramento da dramaturgia, fatos acontecem, fazendo a personagem rever conceitos.

A atriz esbanja conhecimento no palco, isso não resta dúvida. Quem tem o hábito de "teatrar" sabe que nem mesmo a pandemia fez inquietar a inebriadora vontade de atuar da atriz, E assim, durante a pandemia, através do audiovisual, ela se aproximou do seu público. Não satisfeita, volta ao palco do Sesi Firjan, com todos os protocolos necessários. Ela é isso, ela é teatro, ela e o palco são íntimos! O resultado disso, se quiserem saber: assistam à obra no Teatro Poeira!

Ariane Souza e a bruxa de Shakespeare (Sycorax, que também deveria ser um bruxO). Ele iria adorar sua performance, pois o apresenta com canções em um linguajar desconhecido. Altamente bruxista! (risos).

Mencionei alguns personagens porque os extraordinários artistas abraçam dois personagens, menos a bruxa. Também não cabia: a atriz Ariane assume uma personagem forte demais. O simbolismo da personagem não cabe desconectar!

A personagem nos leva a um estilo ritualista belíssimo. A atriz esbanjou no conceito. Se era para impactar, ela o fez. Com uma presença forte, contundente, ela emana exatamente o estilo shakespeariano de nos levar às feiticeiras. Algo hipnotizante. Como um gato rasteiro, ela chega no palco. Sublime, podemos dizer. Soube nos levar aos devaneios do dramaturgo.

Aluízio Abrantes nos leva, do começo ao fim, à obra do dramaturgo inglês. A identidade do autor não se perde, é perfeito. As marcas de Shakespeare estão no palco do Teatro Poeira, com cenas inesperadas e adaptadas ao novo século. É possível sentir a presença do filho de um dos maiores luveiros da Inglaterra.

Uma direção perspicaz, que soube trabalhar em um espaço resumido com imenso bom gosto e aproveitando os espaços. Embora tenhamos um espetáculo sólido e majestoso, podemos dizer que o palco do Poeira o transforma em uma obra constrita e, consequentemente, convidativa a entramos na essência das areias da ilha onde a história é contada.

Os personagens estão próximos de nós. Sendo assim, nos conectamos a eles com mais devoção.

Tudo parece ter se encaixado: o texto, os artistas, as estéticas visuais, tudo em grande harmonia.

A beleza do som de Andre Abujamra, que sempre atiça nossas escutas, é perfeito. Fez o mesmo trabalho intenso no espetáculo "A Cerimônia do Adeus", mostrando sua divindade. Mas quando falamos em som, mais uma vez, ao vivo, o personagem do artista Augusto alimenta nossa alma por meio de um instrumento de sopro pouco convencional, nos fazendo flutuar enquanto as atrizes contracenavam.


Eu pude sentir Shakespeare! Saí do teatro muito impactada, porque, em meu coração, senti a presença desse famoso dramaturgo. Isso significa muito para quem ama o teatro, essa vivência eleva a nossa a alma.

Como os discípulos de Emaús (capítulo bíblico/Novo Testamento), após a morte do Redentor, ao ouvir a voz de Cristo, sentiram seus corações arderem, assim também pude sentir o eterno dramaturgo. Isso para mim basta!

A adaptação da obra foi misericordiosa com o público e também com o autor. ALUIZIO ABRANCHES e FERNANDO SÃO THIAGO entenderam que diamantes podem ser polidos consoante à necessidade de adaptação, e não transformados em pedra de peso menor. Foram abençoados e legitimaram ainda mais a força de Shakespeare, que atravessa o tempo.

Ao mudar o gênero dos personagens, mergulharam na mulher dos dias atuais, nas relações contemporâneas, o que vejo muito necessário. O teatro é exatamente isso: contador de histórias de cada um de nós, hoje e ontem!

Trouxeram com toda beleza e repeito a obra, mas com algumas mudanças ávidas, sem machucar a natureza um dia escrita.


Resumo, sem medo de pecar: não há uma vírgula da montagem a ser criticada negativamente. Há nobreza nas mãos de todos os artistas dessa ficha técnica. Uma obra linda que soube trazer temas atuais com poesia. Queria sempre entrar nos teatros e assistir obras que tivessem uma pequena porcentagem do que assisti. Algumas das desculpas de alguns espetáculos é o aporte financeiro. Isso é invalidado, a meu ver, principalmente quando vejo peças como o “Descobridor das Américas”, que está há anos sendo aplaudido pelo espectador, sem cenário, sem iluminação, sem uma indumentária pomposa.

É preciso pesquisar, estudar com afinco, recomeçar, questionar os colegas com mais experiência, rever a obra em um todo, para que esta chegue a nós como uma montagem que nos faça reconhecer que o teatro brasileiro é um sinônimo de orgulho, uma fonte de beleza e conhecimento infindáveis.

Eu queria ver um cenário diferente do que vejo hoje. Pessoas brigando por ingressos no Poeira, na Casa de Cultura Laura Alvim, no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Teatro Café Pequeno... Gostaria de ler "esgotado" em todas as bilheterias, a ponto de nós, críticos, não podermos escolher o dia.

Aliás, eu gostaria mesmo que nós, críticos, fossemos dispensados pelo fato de a sociedade entender que o teatro é um amigo do povo, pois nasceu dele…

SINOPSE

O espetáculo é uma adaptação do clássico “A Tempestade” de William Shakespeare. A história se passa numa ilha mágica, onde personagens humanos se misturam com personagens encantados, propondo uma reflexão sobre a força do amor e a vida.

FICHA TÉCNICA

Adaptação: ALUIZIO ABRANCHES e FERNANDO SÃO THIAGO

Direção: ALUIZIO ABRANCHES

Codireção: FERNANDO SÃO THIAGO

Elenco: JULIA LEMMERTZ, ARIANE SOUZA, AUGUSTO TRAINOTTI, LUIZA LOROZA E LUIZA LEMMERTZ

Direção de arte: RONALD TEIXEIRA

Direção Musical: ANDRE ABUJAMRA

Direção de movimento: AMÁLIA LIMA e RAQUEL KARRO

Preparação vocal: ROSE GONÇALVES

Iluminação: ANA LUZIA MOLINARI DE SIMONE

Direção de Produção: DADÁ MAIA

Uma produção: HARE FILMES PRODUÇÕES LTDA

SERVIÇO:

Estreia: 14 de setembro 2023

Local: Teatro Poeira

Endereço: Rua São João Batista, 108 - Botafogo

Informações: (21) 2537-8053 de terça à sábado (15hs às 20hs), domingo (15hs às 19hs)

Horário: de quinta a sábado, as 20hs – domingo às 19hs

Ingressos: Inteira R$ 100,00

Meia entrada R$ 50,00

Preço Popular Inteira R$ 38,00

Meia R$ 19,00

(Os preços populares sujeitos ao limite de lugares)

Lotação: 171 lugares

Duração: 90 minutos

Classificação indicativa: 12 anos

Temporada: Até 17 de dezembro de 2023














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