No último prêmio Shell de teatro ouvi da atriz Marisa Orth que tudo começa em um texto. Qualquer montagem teatral tem como princípio uma dramaturgia. É impossível discordar. Quando uma dramaturgia é bem construída, a chance do espetáculo emplacar é quase certa.
Pedro Cardoso, um dos grandes artistas brasileiros, traz ao público um texto tão bem cerzido, construído e lúcido que fica impossível não reconhecer como um dos melhores textos do ano.
Tudo começa com um mapa do mundo no fundo do palco, de cabeça para baixo. Diante dos fatos, estamos de cabeça para baixo sim!
Nada justifica todas essas tensões que atravessamos nos dias atuais no Brasil e no mundo por causa da politicagem nojenta que nos cerca.
Poxa, Patrícia, vou ler sobre política? Sim, é necessário entender quem somos nesse meio incongruente em que estamos. Somos cidadãos e precisamos entender um pouco do que se passa. Pedro te coloca nesse lugar e explica, inteligentemente, onde você pode estar, mas elucidando a cada um de nós, independente da posição que escolhemos estar!
O que chama minha atenção e chancela minha admiração pelo artista é sua performance no palco. Pedro não precisa de figurinos, muito menos de cenário e iluminação com inúmeros movies para dizer: eu sou um excelente artista! Ele é Pedro Cardoso, acolhido pelos deuses do teatro. Isso é suficiente para nos deixar sentados quase duas horas, diante de um ator com pouca estrutura corporal, posso até mesmo dizer franzino, também longe de um galã dos palcos ou da televisão, mas totalmente seduzidos por uma das melhores performances por mim vistas.
Quem é você? Um homem de direita, esquerda, centro, ninguém ou um poeta? Politicamente pergunto: qual é o seu lado?
Ele interpreta cinco personagens, com muita sofisticação, mudando somente uma camisa de malha com versículos bíblicos, todos do Novo Testamento, se não me engano do livro de João, pois hoje a fé tornou-se uma aposta para alcançar eleitores.
No entanto, mesmo diante da fé, surpreendentemente todos vivem de FALÁCIAS que só fazem enganar os poucos esclarecidos. E digo mais: sabem persuadir com tanta astúcia que até mesmo os favorecidos pela ciência se deixam levar pelas teias que sufocam disfarçadamente uma nação.
E como discordar? Eu, como uma mulher de esquerda, agora me vendo um pouco mais como poeta, por entender um pouco mais desse país, posso dizer que há coerência em tudo que Pedro leva ao seu público. Posso dizer que, agora, mais consciente de tudo, não discordo de absolutamente nada do que ouvi no Teatro Tom Jobim, em Botafogo.
Ah! Vou abrir aspas aqui: “nós mulheres, em grande maioria, não mais nos vendemos como antes, claro, ainda temos essas 'representantes' que trocam sexo por dinheiro, mas penso que já diminuiu muito essa situação. As 'Nicéias' parecem ter ocupado seus cargos políticos também, não mais dependendo da receita de um homem”.
Existe verdade na dramaturgia. Percebe-se que o artista, embora viva em outro continente, está ligado com todas as mazelas desse Brasil. A questão da saúde é uma delas. Por exemplo: o péssimo serviço prestado ao cidadão quanto a esse benefício, que é constitucional. Não faz muito tempo que uma mulher de vinte e poucos anos, depois de uma cesariana, perdeu uma de suas mãos. Mas está tudo bem, o importante é que nosso partido está no poder! É exatamente isso que o artista evidencia em sua montagem, questões que devem ser questionadas e não esquecidas.
O mais interessante disso tudo é que todos dependem desse sistema, dos pobres aos bastardos. Basta lembrarmos do apresentador de programa que, através do SUS, teve sua vida salva. O espetáculo fala sobre isso. Todos somos dependentes desse sistema.
O espetáculo está para além de tentar dar a você, espectador, uma direção política apropriada, mas te coloca no lugar de mais um cidadão, fazendo entender que, independente da sua escolha, do seu lado e seus ideais, como somos enganados!
O artista brinca com a plateia, mas cheio de respeito a ela. Se ele brinca com um espectador, em seguida pede desculpa, caso essa não tenha agradado, longe de ser uma interação abusiva ou vergonhosa.
Pedro carregou o espetáculo de brasilidade, com músicas de Carmem Miranda, Demônios da Garoa e outras canções. Isso nos mantêm bem mais ligados. Afinal cada personagem traz uma música, que - óbvio - nos leva a risos. Ele é um artista que se banha na comicidade e, às vezes, fica em evidência suas risadas mais incontidas. Ele mesmo ri das situações e das letras. Críticas divertidíssimas do ator!
De sertanejos ao axé, com rebarbas de Frank Sinatra, é uma mistura que evidencia muito o Brasil e suas classes. Mais uma vez, nem o próprio Pedro consegue se conter na sua visceral interpretação, rindo da própria situação do personagem em suas falas. É tudo tão contemporâneo! Não faz tanto tempo que os sertanejos estiveram envolvidos em escândalos de dinheiro público durante o governo Bolsonaro, presidente que eles apoiaram, em grande maioria. A pesquisa, das músicas aos personagens foi bem feita, sem arranhão.
Quanto ao trabalhador, esse não ficou de fora, mas comparado a um pau mandado, sem ciência da sua condição. Lembrou-me a música do Zé Ramalho: “povo marcado, povo feliz”.
A plateia fica inquieta, porque a forma de atuação do Pedro é fantástica. Sua voz e suas expressões faciais gritam a seu favor. As expressões corporais são exatamente o que se esperam do eterno Agostinho - impossível não mencionar esse personagem que melindra simpaticamente!
No meio do espetáculo, quando o ator apresenta o poeta, ficamos calados. Porque, diferente dos demais, ele não responde às perguntas feitas aos outros personagens. O poeta defende o país em sua verdade - posso dizer em sua essência. No final dessa atuação, Pedro homenageia grandes artistas brasileiros, como Cartola, Pixinguinha, Dona Ivone Lara, Carmem Miranda, Caymmi, Jackson do Pandeiro e muitos outros. Emocionante!
Existe também uma referência aos travestis. Todos sabemos que somos o país que mais mata no mundo os transexuais, entre outros da comunidade LGBTQI+. Tudo por preconceito. A ideia é excelente: trazer ao palco essas pessoas que são assassinadas por uma orientação sexual. Aliás, convenhamos, isso é medíocre demais!
Ao final do espetáculo, parece que Pedro nos convida a entender quem somos. Fala que estamos em construção e aborda um repente, como se uma literatura de cordel estivesse sendo cantada. Filosofias religiosas são abordadas e, parando para pensar, essas contradições de amor são realmente loucas, pois existe uma mandamento que é desviado a todo momento pelos homens. A conta das palavras não fecham, são totalmente fora do contexto por eles mesmos (políticos) pregadas. Teologia e porcaria parecem exercer a mesma função, quando posta em mãos sujas.
Em verdade vos digo, que estamos em uma direção errada, porque se existe uma democracia no país, essa deveria nos servir para defender os interesses do POVO, e não de uma porcentagem de políticos que, na íntegra, nada fazem por ele!
A peça é um transbordo cênico diante da performance do ator, mas também com notas elevadas de bom-senso em um texto que desnuda esses homens de terno dentro do planalto central. A linguagem é acessível a todos, seja para letrados ou não. Mesmo com poucos elementos teatrais, o teatro está ali, corroborando as palavras da imensa Bibi Ferreira: “O teatro nunca vai morrer, porque ele é simples”
Saia da tela do seu telefone, saia do seu extremismo cego e vá assistir Pedro Cardoso, que defende nossa condição de cidadão.
"À Sombra do Pai" é uma comédia absoluta, que provoca o público pedindo a ele que se procure em algum dos personagens da história. Quem não se reconhecer em nenhum, deve voltar no dia seguinte e tentar novamente. Mas tal hipótese é muito improvável, pois, para quem não se reconhecer em nenhum dos cinco protagonistas da história, existe ainda a chance de se reconhecer num sexto personagem. Deste último ninguém escapa, afinal: somos todos filhos de Deus e, à sombra do pai, vivemos.
Sinopse
Texto inédito de Pedro Cardoso, traz o ator de volta aos palcos em um monólogo cômico que, a exemplo de suas obras anteriores (“O Autofalante” e “Os Ignorantes”), é uma provocação ao espírito crítico da plateia, e à nossa capacidade (ou falta dela) de nos colocarmos uns no lugar dos outros.
Ficha Técnica
Texto e atuação: Pedro Cardoso
Direção: Pedro Cardoso
Figurino: Giovanna Moretto
Produção e direção técnica: Hernane Cardoso
Compras de ingressos
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