Embora o diretor Leonardo Netto diga ser um ator de teatro, fiquei de boca aberta com o cenário que se casa com a iluminação. Tudo perfeito. Foi realmente lindo o que vi: abundância de bom gosto e beleza.
Ronald Teixeira, além de atuar com a responsabilidade do reaproveitamento, com o pouco que tem tornou-se, para mim, um dos maiores cenógrafos do Rio de Janeiro. Acima do belo, há um conceito mais que preciso para o nosso planeta que transborda no profissional. Ele sabe dar nó em pingo d'água com elegância e verdade. Faz um tempo que fui assistir a um colega que toca instrumentos do Oriente Médio. Posso dizer que vi algo muito semelhante no cenário, embora eu não tenha certeza se o cenógrafo tenha seguido nessa intenção. E assim começamos a crítica.
A iluminação é do nosso xodó Paulinho, o senhor Paulo César Medeiros, que acumula prêmios. Aliás, não deve ter malas para guardar tantos. Não poderia ser diferente diante do que se vê, dos feitos de suas mãos ou ideias. A iluminação alimenta uma obra que esteticamente não peca: não há uma combinação de várias paletas de cores, mas as levadas ao palco são suficientes para dar ao espetáculo o tom certo, assim como as verdades.
Tudo feito por Leo Netto sempre cai bem. Durante a pandemia, vi trabalhos antigos do artista e novos também. Leo é artista de palco, sabe atuar com maestria e sua direção artística parece estar no mesmo nível de suas atuações. Tudo ponderado, sem gritos histéricos, sem atuações que nos remetem ao cansaço e questionamentos como: para que tudo isso?
Quando as atrizes entram no palco com seus figurinos, que também são assinados por Ronald, mais uma vez a admiração toma conta de nós, porque são lindos! O bom senso em trajar a atriz Guida Vianna é de excelência. Quanto à indumentária de Silvia Buarque, pode-se dizer que a sobriedade foi certa para a personagem. Como o início da dramaturgia passa em um hotel no Oriente, as cores âmbar, ocre, preto, fazem uma festa. O dourado também é muito bem colocado. Os figurinos fazem parte da cultura daquele local e confesso ter visto "dona elegância" pousar no Teatro Poeira via tecidos.
Quanto ao texto de Daniela, folgo-me dizer que há nele verdades e, principalmente, resultados de disfunção familiar, essa que permeia nossa sociedade, infelizmente. Histórias doloridas, que atrasam, não deixam que o ser humano avance, que gerações inteiras sofram por atos impensados. Apresenta temas importantes, como o machismo, a questão LGBTQI+ e tantas outras.
Percebo que, algumas vezes, desdobramentos de nossas vidas parecem maldições para famílias inteiras. Mas não, é apenas engessamento, falta de compreensão e, fundamentalmente, respeito pelo outro, pela emoção do outro. Isso é tão explícito... por que erramos tanto? Não temos essa resposta, mas é preciso ouvir, tentar ao menos entender para seguir com relações mais sãs.
Há uma filha e uma mãe que não aceita a orientação sexual dela. Essa mãe vive ao lado de um pai machista, pois ela mesma diz que uma de suas funções é cuidar do marido. Tudo isso causa um imenso conflito interno na cabeça da filha, na época uma jovem, que nega a sua futura maternidade, concebida durante um momento de transição extremamente complexo.
A filha e também neta é dada para adoção. Ao saber desse caso, a mãe fala algo que até agora rebate em mim: "existem verdades que não precisam ser ditas!" ou algo semelhante a isso.
Durante todo o tempo, a mãe não quer enxergar a filha como é. Depois, quando ouve um desabafo, com outras palavras, manda ela se calar. Caramba, é como cantou Cazuza: "por que a gente é assim?"
Embora isso seja um belo texto ficcional, não se faz diferente de muitas verdades reais. Muito pelo contrário, faz parte do cotidiano de muitas pessoas, principalmente nos últimos anos. Se ao menos nos ouvíssemos, muita coisa poderia ser diferente.
Enfim, a filha ao envelhecer, agora mãe, vai ao encontro da filha dada à adoção. Ela não a ignora como pessoa, mas sim como mãe. Afinal, ela foi adotada por um casal que a amou.
Mãe é quem cria, é quem dá o afeto, não dorme quando estamos doentes, está internada quando precisamos passar dias no hospital, é quem olha nossas mochilas, quem pega nossas roupas sujas e leva para colocar na máquina, é quem se preocupa com o dentista, com as vacinas, com que gostamos de comer. Mãe é tudo que precisamos nessa vida! É ruim quando elas se vão, mas até para isso elas nos preparam, sei muito bem disso.
Em um mundo onde os valores estão tão minimizados, mãe ainda é uma luz no fim do túnel.
Procuro palavras para Guida Viana, porque é difícil externar os sentimentos, a beleza cênica da atriz. Ela atua com os olhos, com as mãos, uma sensação de encenação até mesmo com os fios dos cabelos. Já vi tantos trabalhos de Guida e ela não tem personagens que nos cansam, não é sempre a mesma, sabe construir seus personagens, sejam homens ou mulheres. A atriz é sempre um canhão que atira e nos deixa em pedaços, catando nossos cacos. Nela há fúria, maternidade, maturidade e PLENITUDE.
Falamos de uma mãe do passado, engessada, desrespeitosa e, acima de tudo, querendo estar dentro dos padrões que a sociedade defende. Posso até mesmo afirmar: defendia! Tudo está mudando. O que era visto como vergonha, hoje estamos enxergando com mais normalidade e tem sido bem aclamado pelo público. Afinal, quem não se apaixonou pelo casal gay da última novela do horário nobre da maior TV aberta do país? É sobre isso…
Quando Guida volta como a mãe que deu a filha da adoção no passado, personagem vivida por Silvia, procurando uma forma de construir algo com a filha, percebe-se mais uma vez a atuação menos intensificada, como deveria ser, como o texto pedia. A atriz é uma das divas do teatro brasileiro. Se alguém discorda, é porque não entende mesmo de artes cênicas.
Aliás, o texto parece confuso. Para orientar o entendimento dessa resenha, Silvia e Guida são duas personagens que vivem o presente e o futuro no texto, trocando de lugares nas cenas.
Silvia interpreta duas personagens: a filha que engravida e também a filha que foi dada à adoção no futuro. Aliás, não posso deixar de mencionar esse movimento do texto quanto ao tempo: é sublime! Mesmo diante dessa evolução textual, é acessível a todos. Podemos dizer que é uma bela façanha da dramaturga. Isso chama-se habilidade.
A primeira personagem está muito voltada àquela mulher que não foi entendida pela sua mãe. A atuação é mais contida, parece reservada. Inicialmente, eu não me envolvi com a personagem. Só pude entendê-la quando Silvia voltou ao palco interpretando a filha entregue à adoção. A personagem vem leve, mais dona de si, gostosa de assistir. Então percebi que a primeira personagem era cheia de disfunções, traumas e este comportamento não poderia ser diferente da personagem alimentada por Silvia.
Aliás, também tivemos recentemente uma atriz que viveu algo semelhante em relação a uma gravidez indesejada. Todos respondemos por nossos atos, mas isso é algo particular, que não precisa ser compartilhado com o mundo. O texto é contemporâneo, posso dizer que vivo.
Valeu a pena ter ido assistir à obra, não é "mais do mesmo". Ao contrário, é uma ficção bem escrita e muito bem interpretada e, principalmente, com uma plasticidade visual impecável!
SINOPSE
Antônia (Silvia Buarque), aos 50 anos, está num quarto de hotel com sua mãe, Elisa (Guida Vianna), a quem pouco viu ao longo dos anos. Elas tentam resgatar uma relação prejudicada pela dificuldade de Elisa em lidar com o fato de Antônia ser lésbica. Querem desmontar a “parede de gelo” que as separou por 30 anos. Neste reencontro, Antônia acaba revelando um segredo que a atormentou ao longo destas três décadas: ela teve uma filha que foi entregue para adoção.
FICHA TÉCNICA
Texto: Daniela Pereira de Carvalho
Direção: Leonardo Netto
Elenco: Guida Vianna e Silvia Buarque
Cenário e Figurinos: Ronald Teixeira
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Direção de Movimento: Márcia Rubin
Trilha Sonora: Leonardo Netto
Direção de Produção: Celso Lemos
Produção: Silvia Buarque
SERVIÇO
ESPETÁCULO: "A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe"
LOCAL: TEATRO POEIRINHA
ENDEREÇO: Rua São João Batista, 104, Botafogo,- Tel: (21) 2537-8053
HORÁRIOS: Quinta a Sábado, às 20h, e domingo, às 19h
INGRESSOS: R$ 80 e R$ 40 (meia)
DURAÇÃO 75 min
GÊNERO: Drama
CLASSIFICAÇÃO: 14 anos
TEMPORADA: Até 31 de março