Nelson Rodrigues merece toda reverência do mundo, não é à toa que o dramaturgo mudou a história do teatro brasileiro. Não podia ser diferente: toda vez que assisto obras do Nelson saio do teatro feliz, nas nuvens, pelo simples motivo de poder degustar de um teatro bom, de um texto cheio de técnica, rebuscado, rico e convincente. Isso seria suficiente para mim, se não fosse também a maestria do diretor artístico Sergio Módena que, a cada obra, se faz maior, mais consciente e latente que nunca em seu fazer teatro.
Módena é elegante nas suas escolhas, não peca, tem o poder de enlouquecer os amantes do teatro com seus trabalhos. Sobriedade e eloquência teatral.
Fui assistir a peça sabendo apenas da presença da atriz Camila Morgado no palco. Lógico que ela também seria suficiente. No entanto, ao assistir ao espetáculo, percebi um anel cravado de diamantes.
A última vez que falei de Marcelo H na coluna "Olhar Teatral", do Portal Eu, Rio!, foi cobrindo-o de lisonjas. Mais uma vez, o profissional acerta em sua direção musical, com perspicácia e excelente bom gosto, com um refinamento apurado que nos coloca em um lugar de boas sensações ao ouvir sua trilha teatral. Ele conseguiu nos levar ao texto de Nelson sem titubear, sem linha tênue entre o certo ou errado. Foi certeiro trazendo beleza em suas escolhas!
O figurino e o cenário são expressivos, assim como os objetos de cena. Tudo feito com muita nitidez e enlaçado ao texto, como Romeu e Julieta. Tudo divinal. A sensação fúnebre está no palco, no desdobramento da peça, mas a elegância paira sobre os feitos dos profissionais. Isso pode ser visto através até mesmo no corte de luz de um refletor, quando Ricardo Machado enquadra o caixão da personagem Zulmira. Tudo refinado, bem tratado. Não consigo enxergar nada sem ter o olhar do diretor, esse que não aceita ser somente um diretor de cena, porque tem legitimidade em seu olhar.
A obra foi escrita em 1953. Em 1965 foi para o cinema com Fernanda Montenegro e Nelson Xavier ainda jovens. É um filme sensacional, está na internet e posso afirmar que justificar a não ida ao teatro por escolha de assistir ao filme em casa é um grande erro. Ambos merecem serem vistos, porque são ideias e tempos diferentes. Se em uma temos uma contemporaneidade perfeita, na outra há uma atriz ilustre, que merece nossa devoção. Os que amam teatro amam a senhora Montenegro ! Inclusive, a atriz cansou de ligar para o dramaturgo pedindo textos para atuação. Ele, por sua vez, muitas vezes mudava o tom de voz para fugir dela. Hoje são grandes representantes da cultura do país, preciosidades do nosso teatro.
E Camila? A atriz é rodriguiana. Não procurei saber se estou certa, apenas justifico essa opinião por ler um pouco sobre teatro. Para atuar como ela atuou é preciso entender a personagem, e ela o fez. No livro do imenso artista Amir Haddad, “De Todos os Teatros”, o autor fala sobre o artista entender a dramaturgia escrita, sobre o autor, porque através do texto teatral, se o ator atentar aos verbos da ação, ele entende o que o dramaturgo quer mostrar através da escrita. Foi certamente o que Camila fez. Em momento nenhum, ela quis ensinar o dramaturgo sobre a obra dele, mas mostrar aos espectadores o que Nelson queria mostrar, o que ele queria que sua plateia soubesse, seus devaneios.
A irreverência dele, através dos atos, o bairro em que morava, a Aldeia Campista, localizado entre Vila Isabel e Andaraí, próximo de onde moro. A Praça Saens Pena, na Tijuca, é mencionada. Há acerto de todo lado. Não desmontaram o texto do grandioso autor em um respeito à altura de Nelson. Bravo! Não se deve ensinar Shakespeare a Shakespeare. Esse é o caminho!
Camila cumpriu seu trabalho: foi precisa, intensa, soube sair do palco e entrar com cordialidade, sempre encenado, hora vislumbrando os colegas de palco.
Thelmo Fernandez é o marido, corno e vascaíno. O artista está pleno, satisfatório, coerente. Aliás, o ator é sempre bom no palco. Aassistir a seus trabalhos nos faz bem, porque ele entende o que o público quer. Não faz teatro para ele, mas para nós.
Stela Freitas é a mãe da esposa, evangélica. Diga-se de passagem, o “povo de deus" (com letra minúscula mesmo) está muito bem representado no texto. O deboche de Nelson pairou sobre o palco legitimando o estilo do dramaturgo. Stela, como sempre, trazendo equilíbrio, não querendo disputa no palco. Ela não precisa, pois a delicadeza da atriz apenas traz ao coletivo a força que precisa para sairmos do teatro regozijando por termos assistido uma montagem exímia, que merece aplausos ininterruptos por ter nos dado a sensação de alegria pela obra.
Gustavo Wabner, Alcemar Vieira, Alan Ribeiro e Thiago Marinho são os demais personagens. Eles trazem dinamismo à peça. O movimento de corpo dos artistas é rico. Cada vez que param no palco e se movimentam, não são levianos e esquecidos. Tudo é milimetricamente belo, costurado. Não há em cena um artista que esqueça que os olhos dos espectadores estão na direção deles.
O que também folgo em dizer é o respeito ao estilo carioca de Nelson, dos personagens que ele pintava, inclusive o personagem do Gustavo Wabner, com aquele estilo carioca, que leva vantagem em tudo, está perfeito. Tive a sensação que a obra não nascera em São Paulo. Isso apenas desnuda a grande pesquisa feita pelos fazedores de teatro.
A dramaturgia/história da personagem é fantástica: a transformação, todo comportamento inesperado da senhora Zulmira é bem costurado no espetáculo, nada ficou perdido durante as cenas, segue fielmente ao texto, dentro do tempo programado. A doença, o casamento, sua louca ideia de morrer, a sua vizinha/prima Glorinha, seu caso, sua doença, a visita ao médico. Está tudo no palco do Copacabana Palace. Afirmo que é uma obra que merece ser vista pela grandeza dos artistas, dos personagens e pelo encontro do tempo e de Nelson conosco. O casamento perfeito do passado com o presente, com a mesma tecnologia que um dia Ziembinski nos trouxe.
Sempre haverá espetáculos que não despertarão em mim admiração. Isso faz parte. Nem sempre quando plantamos orquídeas no jardim, elas nos presentearão com suas flores. Mas haverá espetáculos que despertarão em nós a vontade de vivermos mais o teatro, nos deleitarmos nas artes cênicas prazerosamente, como a peça “A Falecida”, mais viva que nunca!
Sinopse
"A Falecida" apresenta a jornada de Zulmira para realizar o sonho de ter um enterro espetaculoso e mostrar a sociedade que sua família está “bem de vida”. Cenas de flashback se misturam à narrativa presente, numa troca de ambientes que, por vezes, tensiona e, por outras, causa um inusitado e bem-vindo alívio cômico.
Ficha Técnica
Texto: Nelson Rodrigues
Direção: Sergio Módena
Elenco: Camila Morgado, Thelmo Fernandes, Stela Freitas, Gustavo Wabner, Alcemar Vieira, Alan Ribeiro e Thiago Marinho
Direção Musical: Marcelo H
Cenário: André Cortez
Iluminação: Renato Machado
Figurino: Marcelo Olinto
Preparação Corporal: Laura Samy
Produção Executiva: Ana Velloso e Vera Novello
Direção de Produção: Lúdico Produções Artísticas
Produtores Associados: Camila Morgado, Sergio Módena e Lúdico Produções
Serviço
A FALECIDA
RIO DE JANEIRO (RJ)
Temporada até 07/04/2024
Sextas e Sábados, às 21h, e Domingos às 20h.
Teatro Copacabana Palace
Av. Nossa Senhora de Copacabana, 261 – Copacabana - Rio de Janeiro/RJ.
Tel.: (21) 2548-7070
Ingressos
R$ 160 e R$ 80 (Plateia)
R$ 40 e R$ 20 (Balcão) – (1ª Fileira com visão parcial)
R$ 160 e R$ 80 (Frisas e camarotes)
INGRESSO VIVO VALORIZA: Cliente Vivo Valoriza possui 50% de desconto na compra de até um par de ingressos (não acumulativo com direito de meia entrada nem outras promoções). O cliente deverá entrar no APP Vivo e realizar o resgate do voucher de desconto na aba Vivo Valoriza. O voucher deverá se apresentado na entrada do teatro.