Há mais de cinco meses, cerca de trinta comerciantes que trabalhavam no Comércio Popular de Botafogo, contrários à remoção dos quiosques instalados desde 1991 em uma quadra da Rua Nelson Mandela, reclamam da falta de diálogo com a Prefeitura do Rio. Eles acusam a Prefeitura e a construtora Mãos Dadas Empreendimentos Imobiliários Ltda. de submeterem-nos a constrangimentos e coações, incluindo pressões da construtora sobre o Executivo municipal.
De acordo com os quiosqueiros, o Executivo, por meio da Secretaria Especial de Ordem Pública (SEOP), destruiu os estandes na madrugada de um domingo de julho (11). Alegam ainda que a Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) lhes humilhou por meio da titular da pasta, Laura Carneiro.
“Cada um comprou o seu [quiosque], por R$ 5 mil. Tem nota fiscal, ela [a Prefeitura] tem que pagar. Nós tínhamos uma instalação de uso de energia, que abastecia tudo ali. Teve coisas que as pessoas, na hora, não tiveram como retirar”, rememora um comerciante, a quem preferimos identificar como P.U. para evitar possíveis represálias. “Nós descobrimos que fariam essa operação, mas vieram às 5h da manhã. Não houve notificação, comunicado”.
A demolição, no entanto, dividiu os 94 trabalhadores, atuantes nos diversos ramos de atividade. Teve quem aceitou as compensações financeiras e está alocado provisoriamente, em frente ao endereço original, após o representante dos comerciantes, Tiago Samora, assinar um documento com valor legal chamado “Instrumento Particular de Transação”. Mas a minoria não reconhece a legitimidade de Samora, que fez o acordo em 12/2/2020, tanto que entrou na Justiça para reaver o espaço e os bens materiais perdidos. Em setembro, foi realizada uma reunião com a SEOP, na presença do secretário Brenno Carnevale. Na ocasião, segundo A.R., outra comerciante que trabalha com alimentos e também foi ouvida pela reportagem, “a negociação prosseguiu, mas nada de concreto foi feito”.
Morador de Botafogo, P.U. é autônomo e se divide entre atividades diversas, de fotógrafo a eletricista. Relata que a advogada que acompanha o caso, acionou a Prefeitura judicialmente por danos morais e constrangimento. “Até porque, quando derrubou os quiosques, foi destruído o patrimônio de terceiros”, recorda-se.
No dia em que a reportagem do Portal Eu, Rio! conversou com os comerciantes, cerca de dez pessoas ocupavam metade da Rua Muniz Barreto, no cruzamento com a Rua São Clemente, a fim de chamar a atenção da população para a situação. “Isso é um grito de desespero, porque as pessoas não podem trabalhar. Você está num período de pandemia, aí o cara te tira a condição”, lamenta ele. “A Prefeitura não está fazendo nada legal. Todo esse pessoal – aponta para o outro lado da São Clemente – é provisório, nada é definitivo, não tem licença, autorização. A qualquer momento, não vai poder colocar mais, e aí tem 94 famílias jogadas na rua. Fora eles, nós somos 28”.
Num dos trechos mais movimentados da zona sul do Rio, durante os cerca de 40 minutos que conversamos com os manifestantes, foi tempo o bastante para os trabalhadores nos contarem em detalhes alguns dos capítulos desse caso, que remonta a 2016.
“Desde as Olimpíadas, a Prefeitura decidiu mudar os quiosques por um padrão. Só que não financiou, as pessoas compraram da [empresa de mobiliário urbano] Vanzillotta. Exigiu que fizesse na cor padrão da Prefeitura, para subentender que foi a Prefeitura que fez, mas não foi. E agora, depois de tanto tempo, a construtora decidiu fazer a retirada do pessoal para a construção deles. Nós entramos na Justiça pedindo a realocação do espaço. Como o processo estava na Justiça, a Prefeitura pagou R$ 23 mil para as pessoas que queriam sair, na pandemia. Teve um grupo que não quis, porque queria outro espaço para trabalhar, e a Prefeitura, de forma ilegal, fez a retirada do pessoal. A alegação da Prefeitura é que pagaria R$ 100 mil diários para a construtora”, explica P.U.
“Como uma empresa que não tem escritura definitiva do imóvel, RGI [Registro Geral de Imóveis], não pagou o laudêmio [percentual devido a proprietário de imóvel, sobre valor do bem] – apenas arrematou no leilão –, logo não pode comprovar a titularidade, conseguiu entrar com ação contra a Prefeitura e obrigar a pagar multa? Aí, retirou os remanescentes, de forma violenta, jogou todo mundo na rua e agora está aqui – pessoas de idade, grávida. O que nós estamos reivindicando é o local pra trabalhar”, protesta.
A advogada que defende os comerciantes, Simone Amara, corrobora as informações dadas pelo concessionário sobre o terreno leiloado à Mãos Dadas, de propriedade do empresário Rogério Chor.
“Até hoje, há discussão no processo originário da desapropriação, onde foram feitas as obras do metrô, sobre a metragem do terreno, pois a carta de arrematação estava com a metragem errada. A Rio Trilhos está com essa discussão com a construtora nesse processo originário”, afirma ela. “Por isso, até hoje, a construtora não tem a propriedade legal do terreno”. O processo data da década de 1970.
A reportagem não obteve retorno da construtora Mãos Dadas tampouco da Rio Trilhos.
Histórico das negociações
De acordo com Simone, a batalha judicial ganhou contornos de perde-e-ganha.
"Essa é a licença que a construtora tinha e usou para pedir a tutela de urgência. A juíza de primeira instância negou, aí, quando foi para o Tribunal de Justiça, os desembargadores deram a ordem por 2 a 1", revela.
O comerciante P.U. conta que ele e demais trabalhadores já estiveram na Prefeitura, em uma reunião com a secretária Laura Carneiro. “Nos humilhou. Deixou claro para nós que é a porta-voz da construtora, disse com todas as letras que para eles que saíram, daria os R$ 23 mil. Vocês [numa referência à minoria] vão ganhar dez mil, porque estão dando muita dor de cabeça”, assegura.
“Quem quer trabalhar é o incômodo. Quem pegou os 23 mil [reais], agora as pessoas estão ali. Acabou o dinheiro”, resigna-se ele. “Conversamos com todo mundo, inclusive o prefeito [Eduardo Paes] se comprometeu a resolver a questão e nos realocar o mais rápido possível. O pior de tudo é que inicialmente nós tínhamos o apoio da imprensa. A TV Globo veio, a Band, o jornal ‘O Dia’, naquele período [do ex-prefeito Marcelo Crivella], depois simplesmente desapareceram”.
Segundo o grupo, o vereador Tarcísio Motta (PSoL) anunciou que tentaria resolver a situação, por meio de um auxílio financeiro. Essa informação também consta de nota que reproduzimos ao final da matéria. No entanto, desde a remoção, há mais de cinco meses, os 28 trabalhadores aguardam para saber onde serão realocados.
“Até agora, não nos chamaram para ver o projeto para a nossa volta. A construtora queria essa proposta de indenização, em momento nenhum a gente aceitou. A gente não quer dinheiro, o mercado popular existe há 30 anos”, reclama A.R. “Quando diz que arrematou toda essa extensão por R$ 8 milhões, ele [Chor] sabia que tinha o Mercado Popular de Botafogo”.
“A gente tem uma licença, no entanto, quando vinham com a notificação, eles notificavam direitinho, botavam o nome ‘quiosque’. Tem processo na Prefeitura, número, tudo, tudo, tudo. Não tem tempo de renovação, a única coisa que a gente tem, que a Prefeitura alega, é que por ser uma concessão, pode ser retirado a qualquer momento. Nós éramos uma coisa padronizada. No termo firmado com a construtora, a Prefeitura teria que recadastrar e nos colocar em outro lugar. Eles fizeram aleatoriamente, no Diário Oficial, sem ninguém saber, e foi assim que eles foram fazendo essa negociação. Baseado nisso, eles vieram pra fazer a retirada no dia 11”.
Grávida durante a pandemia, ela percorre as lembranças e os traumas que precisou aprender a lidar.
“Fiquei tomando remédio na gestação, tive covid, adquiri arritmia cardíaca, aí não podiam fazer nada comigo por eu estar gestante. Hoje, tenho síndrome do pânico pra dormir. Meu leite secou, minha filha nasceu prematura devido ao estresse e toma leite que custa R$ 100 a lata”, detalha ela. “Isso é muito desumano, a gente chora com toda essa situação. Nós não vamos desistir, enquanto a Prefeitura não nos der uma resposta”.
Costureira, V.B.F. mora em outro município; mal tem ocupação e quase nenhuma renda.
“Eu trabalho com conserto de roupa, vivo disso. Vieram numa madrugada, tirando o nosso pão. Quebraram o nosso mobiliário, nós ficamos sem trabalho, sem nada, por isso estamos nessa luta. Eu não tenho outro recurso. Eu fico na rua, com uma placa, pedindo conserto de roupa, aqui em Botafogo”.
Uma moradora que passava enquanto ouvíamos os relatos também cita o período olímpico na cidade como justificativa para demolições no entorno. “Aqui [o prédio em frente ao local do protesto], era uma praça, toda cercada de arame. Aí, o Eduardo Paes, no outro mandato dele, vendeu esse terreno e levantou esse prédio, a pracinha passou para ali. Agora, a praça fechou, já está vendendo de novo”, diz ela, que vive em Botafogo há 21 anos e não quis se identificar.
“Esse mobiliário a Prefeitura deu o espaço para a gente trabalhar, aí do nada veio arrancar, acabar com tudo”, lamenta V.B.F.
Respostas dos demais citados
Entramos em contato com a SEOP, que, por meio de sua assessoria de imprensa, nos enviou uma nota informando sobre “estudo de viabilidade em andamento na Coordenadoria de Controle Urbano (CCU) para mapeamento dos possíveis locais, no entorno da Praça Nelson Mandela, para reassentamento dos ambulantes que foram removidos do centro comercial”. O órgão municipal ressalva que “o levantamento feito a pedido dos trabalhadores conta com poucos pontos disponíveis”.
“Vale destacar que os 91 ambulantes que eram titulares de quiosques no local foram realocados, em 2020, para pontos em seis bairros da Zona Sul (Laranjeiras, Catete, Botafogo, Cosme Velho, Flamengo e Glória). Os comerciantes insistiam em permanecer mesmo após receberem notificações informando que deveriam deixar a área. Em julho, os boxes remanescentes que estavam em terreno que pertence a uma construtora foram removidos pela Prefeitura do Rio, após decisão judicial, sob pena de multa de cem mil reais por dia em caso de descumprimento da determinação”, finaliza o texto.
A SMAS também nos respondeu sobre as acusações feitas contra Laura Carneiro, porém o comunicado foi atribuído ao vereador Tarcísio Motta. O mandato do parlamentar confirmou que a resposta foi redigida em nome dele.
“Acompanhei um conjunto de trabalhadores do mercado popular de Botafogo em reunião com a Secretária Laura Carneiro na tentativa de buscar medidas paliativas para suas famílias enquanto o processo de regularização da Praça Nelson Mandela estivesse tramitando pela prefeitura. Na referida reunião, ficou constatada a ausência de instrumentos (auxílio emergencial, cesta básica, etc) para cumprir com esse objetivo. Os trabalhadores foram orientados a se cadastrarem no CADÚnico para terem acesso a eventuais políticas assistenciais. São trabalhadores que estão numa situação difícil, pois ficaram sem sua fonte de sustento e, por isso, seguem indignados com a situação. Porém, posso assegurar que não houve humilhação por parte da secretária que procurou explicar todas as tentativas de negociação entre a prefeitura e a construtora dos prédios para mitigar os impactos da remoção dos quiosques localizados na Praça. Nosso mandato segue acompanhando e cobrando da prefeitura uma solução definitiva para estas famílias. O processo de regularização está tramitando e esperamos para breve um desfecho positivo para todos. Isso é o que mais importa nesse momento.
Vereador Tarcísio Motta.”.