A Verde e Rosa trouxe à Sapucaí a lembrança forte de suas raízes e empolgou a avenida com uma homenagem a ícones da poesia, do canto e da dança, três das artes que compõem o 'Maior Espetáculo do Terra'. Cobrada há tempos para lembrar seu fundador, maior compositor e homem que escolheu suas cores personalíssimas, a Estação Primeira foi além, e em 'Angenor, José e Laurindo' trouxe, além do sambista de obras-primas como As Rosas Não Falam e O Mundo É Um Moinho, o maior dos intérpretes de samba-enredo, Jamelão, e o ícone dos mestres-salas, Delegado.
Os nomes de batismo de cada um deles, cheirando a Brasil como manga caída do pé de tão madura, reforçam a identidade, a origem em comum, que levanta a arquibancada e magnetiza fãs de todo o planeta ao toque da Surdo Um, a bateria da Estação Primeira. Cheiro, no caso da Mangueira, foi mais do que sinestesia, fruto da imaginação: a passagem da escola teve perfume de flor, levado aos ares da Sapucaí por um carro que lançava essência de rosas.
Vinda de enredos com forte carga política e mensagem de resistência cultural, com um olhar sobre a História voltado para a afirmação da voz dos excluídos, como os negros e pobres, as mulheres, as vítimas da violência policial e institucional, a Mangueira optou por um tom mais tradicional, de valorizar o próprio legado, reforçando seus laços com a comunidade local, uma das mais tradicionais favelas do Rio.
Nos mínimos detalhes, essa forte identificação é reafirmada. A rainha da bateria é Evelyn Bastos, filha de Valéria Bastos, que ocupou o posto entre 1987 e 1989. Evelyn passou a infância e adolescência nos bastidores da escola. Destaques e personalidades, na Mangueira, são gente que frequenta os ensaios e a quadra sempre que a agenda carregada permite: o ator Ailton Graça, os sambistas Alexandre Pires e Alcione, a cantora Rosemary, loira, Jovem Guarda, mas com samba no pé desde os anos 60, na parceria com o passista Gargalhada.
Composição de Moacyr Luz, Pedro Terra, Bruno Souza e Leandro Almeida, o samba traz na última estrofe um apelo emocionado, em tom místico, pedindo a benção aos ancestrais: 'A Estação Primeira/Relembra o Passado/Valei-me Cartola, Jamelão e Delegado!.
A voltagem do desfile, a carga de emoção da passagem pelo Sambódromo, pode ser medida por um susto ao final: após o desfile da Mangueira, Ézio Laurindo, filho de Delegado, e Marcos Pereira, intérprete da escola, passaram mal e foram atendidos no posto médico da Apoteose. Eles foram transferidos para o CER Centro, para exames complementares. Marcos está estável e Ézio já foi liberado.
Ninguém melhor que o próprio carnavalesco Leandro Vieira para descrever o enredo da Verde e Rosa, com a potência dos ícones que homenageia:
'A poesia que habita a Mangueira foi inventada por um pedreiro de pele preta batizado ANGENOR. Por usar um chapéu maltrapilho, por ironia, os amigos apelidaram Angenor com o título que ainda o acompanha na eternidade: CARTOLA. O príncipe do princípio. O poeta que escolheu as cores da Mangueira. O que cantou as alegrias e as dores do morro. Aquele que ergueu – como quem bate laje, mistura o cimento ou empilha tijolos – duradouro e permanente estado de poesia.
Se a Mangueira chora, ela é uma canção do Cartola que lamenta o peito vazio, o amor que finda e a sentença que o mundo é tal qual um moinho. Se a Mangueira se enche de esperança, ela é um samba do Cartola a anunciar que um dia melhor está por vir. Um convite para correr e ver o céu e o sol de uma nova manhã. Alvorada colorida de beleza. Sem choro, tristeza e dissabor. A lembrança diária de que, ao findar a tempestade, o Sol Nascerá.
Quem lá habita descende desse amálgama de poesia enraizada feito uma roseira. Sim, há roseiras nas favelas. Há jardins e há rosas. Rosas que insistem em nascer. Rosas que brotam dos escombros. Jardim solitário onde, dizem os antigos, ainda está viva a rosa que Cartola cantou, sentenciando quase como queixa que, insistindo em não falar, exala apenas – e ainda hoje – o perfume de sua última enamorada.
Se a poesia de quem guardava e lavava carros ocupa o riso e o pranto de quem mora lá, a voz de outro preto – este, batizado JOSÉ – reside na localidade, habitando-a sem pedir licença. Afirmo, sem medo de errar, que essa voz que paira no ar habita tanto o silêncio das manhãs quanto o burburinho das travessuras dos moleques que brincam quando a tarde cai. Essa voz é a voz de José Bispo Clementino dos Santos. Para a Primeira Estação, o JAMELÃO.
Voz potente como convém aos reis. Reis pretos. Reis, com voz de trovão. Voz de criança que foi engraxate e gritou alto para vender jornais. Voz retinta. De bamba curtido no sereno das batucadas. Voz de pele azeviche. Voz que guarda o visgo saboroso de um jamelão colhido fresco.
Não há como remediar: todo mangueirense que nasce, cresce, sobe e desce aquele morro é acompanhado por essa voz. Essa voz é a voz da própria Mangueira. Ela é uma voz que paira no ar. No claro da manhã e no breu da noite. Uma voz à espreita. Voz quase reza. Voz que ralha e benze os seus.
Não à toa, quando a Mangueira chora, ela é a voz do Jamelão num samba “dor de cotovelo” com letra de Ary e Lupicínio. Triste, ela é o Jamelão em “Folha Morta”. Jamelão em “Ela disse-me assim”. Quando a Mangueira é faceira, ela é a voz do Jamelão em ritmo de gafieira. Solo de piston. Batuta de Severino Araújo. Jamelão, cabaré e Orquestra Tabajara. Quando se enfeita para descer o morro, ser mais bonita e reinar majestosa enquanto desfila, ela é a voz do Jamelão para um samba do Nelson Sargento, Pelado, Jurandir, Darcy e Hélio Turco.
Sinto saudade da POESIA e da VOZ que habita minha escola como todos os que agora estão distantes do convívio com ela. Fechando os olhos para imaginar revê-la, querendo-a pertinho de mim, ouço a voz do JAMELÃO e a poesia do CARTOLA romperem o silêncio que já se estende em demasia. Agora, gostaria de vê-la dançando diante de mim. Reis e rainhas que dançam. Corpos pretos que dançam. Gente que flutua ao dançar. Gente que parece exibir-se para testemunhar que são a descendência e a extensão de uma realeza.
Imaginando-a dançando e coroada, impossível não crer que todo corpo que habita a Mangueira não herda a dinastia de seu mais famoso bailarino. Bailarino preto. Príncipe da Ralé. Um Obá da favela bordado de paetês. O herdeiro da coroa de Marcelino. Mestre dos que querem ser mestre. O samba que risca o chão. Aquele que, já estando velho, dançava como o menino que atendia pelo nome de LAURINDO.
Impossível não crer que toda uma legião que defende a bandeira que ostenta o verde e o rosa da Primeira Estação não guarda a gana e a sede com a qual o mestre-sala DELEGADO defendeu o pavilhão que cortejou por décadas. Décadas de excelência e notas máximas. Difícil não crer que ele não esteja ao menos em uma gota de sangue de toda criança, menino ou menina, que nasceu ou nascerá naquele morro.
Engana-se quem pensa que os habitantes do Morro de Mangueira morrem sem ter o que deixar como herança, assim como estão enganados aqueles que pensam que, os que lá nascem, estão desprovidos de bens. Quando fizeram a partilha da herança deixada por ANGENOR, JOSÉ & LAURINDO, saibam todos que nenhum morador daquele morro ficou de fora. Eles herdaram um bem preciso e precioso. Lá, nascem ricos daquilo que o dinheiro não compra, e nós, quando privados da arte que brota a granel nos corpos da favela, ficamos mais pobres.