Na toada dos enredos afrobrasileiros desde antes da pandemia, com Joãozinho da Gomeia, a Grande Rio dobrou a aposta este ano, com 'Fala Majeté'. A Acade?micos do Grande Rio abriu caminhos com o enredo “Fala, Majete! – Sete chaves de Exu” e incorpora as manifestac?o?es culturais ligadas a? simbologia e a? historia do Orixa Exu, um dos principal alvos do preconceito e da intolerância religiosa no Brasil. O tema ganha força particular por vir à Sapucaí trazido por uma escola da Baixada, onde os ataques a terreiros de candomblé e macumba são particularmente frequentes.
No desenvolvimento do enredo, Gabriel Haddad e Leonardo Bora buscaram dar conta das diversas facetas do orixá. A associação à boemia, à vida noturna, à loucura, aos cemitérios, mais conhecida, teve destaque. Mas aspectos desconhecidos dos leigos, como a ligação à vitalidade, à comunicação, à festa e ao renascimento foram abordados em profundidade. A jornalista Flávia Oliveira, por exemplo, veio em um carro dedicado ao mercado e às trocas, ao lado do mais velho ogã do Brasil, um homem de 102 anos. Deslumbrante com um tapa-sexo e plumas sintéticas vermelhas, a rainha de bateria Paolla Oliveira veio com o namorado, o portelense e sambista Diego Nogueira, com terno branco e chapéu de malandro da Lapa, com uma capa-preta para evocar Exu na visão mais difundida, da boemia e da noite.
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Estamira, catadora de recicláveis no lixão de Gramacho retratada em um documentário, foi retratada na abertura e no encerramento do desfile, com uma ala dedicada à transformação a partir dos resíduos, dos objetos e sujeitos abandonados, à margem da produção. O carro dedicado ao lixão de Gramacho foi um dos mais festejados em sua passagem, com uma dinâmica que mostrava o caos, mas inspirava uma nova ordem. A aparente loucura das reflexões de Estamira foi abordada em paralelo a pioneiros em dar voz a instintos reprimidos e às belezas do inconsciente, como Arthur Bispo do Rosário, interno de hospital psiquiátrico e revelado pela doutora Nise da Silveira como um dos maiores artistas plásticos brasileiros.
No sincretismo de Rosário, Exu e Nossa Senhora tinham força semelhante na resistência ao assassinato cultural. Dos afrossambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes, o 'branco mais preto do Brasil', à tecnomacumba de Rita Benditto, a Grande Rio mostrou que, na música e na poesia, o Tranca-Ruas abre novas possibilidades de brilho e comunicação. Incorporado pelo ator Emerson Santos, Exu conduziu a Comissão de Frente da Grande Rio a um desempenho brilhante, a um tempo ousado e de fácil comunicação. Ouvidos ao final do desfile, os coreógrafos Hélio e Beth Viany não escondiam a empolgação. Merecida e explicável: o mote 'Câmbio, Exu!' ficou claro na avenida e a performance fez justiça ao orixá mensageiro.
Quem são os “meninos da Grande Rio”, do enredo mais inovador do Carnaval 2022
Gabriel Haddad Gomes Porto, 31 anos, é formado em Relações Internacionais pela UniLaSalle e cursaMestrado em Artes na UERJ. Natural de Niterói, começou a frequentar escolas de samba quando criança, encantando-se com as criações de Joãosinho Trinta. Na Cidade do Samba, passou a trabalhar como assistente de criação no ano de 2007.
Leonardo Augusto Bora, 33 anos, é licenciado em Letras Português-Inglês pela PUCPR, bacharel em Direito pela UFPR e Mestre e Doutor em Teoria Literária pela UFRJ. Também é professor substituto dos cursos de Indumentária e Cenografia da Escola de Belas Artes da UFRJ. Natural de Irati, pequena cidade do interior do Paraná, começou a desenhar fantasias e carros alegóricos ainda na primeira infância.
Como carnavalescos, Haddad e Bora estrearam na folia de 2013,participando da comissão de carnaval da Mocidade Unida do Santa Marta. Chegaram à Grande Rio depois de assinarem, em dupla, trabalhos na Acadêmicos do Sossego e na Acadêmicos do Cubango.
Cante com a Grande Rio
ENREDO: FALA, MAJETÉ! SETE CHAVES DE EXU
THEME: SPEAK, MAJETÉ! SEVEN KEYS OF EXU
Compositores : Gustavo Clarão,
Arlindinho Cruz, Igor Leal, Jr. Fragga, Cláudio
Mattos e Thiago Meiners
Intérprete : Evandro Malandro
BOA NOITE, MOÇA, BOA NOITE, MOÇO...
AQUI NA TERRA É O NOSSO TEMPLO DE FÉ
“FALA, MAJETÉ!”
FAÍSCA DA CABAÇA DE IGBÁ
NA GIRA… BOMBOGIRA, ALUVAIÁ!
NUM MAR DE DENDÊ...CABOCLO, ANDARILHO,
MENSAGEIRO
DAS MÃOS QUE RISCAM PEMBA NO TERREIRO
RENASCE PALMARES, ZUMBI AGBÁ!
EXU! O IFÁ NAS ENTRELINHAS DOS ODUS
PRECEITOS, FUNDAMENTOS, OLOBÉ
PREPARA O PADÊ PRO MEU AXÉ
EXU CAVEIRA, SETE SAIAS, CATACUMBA
É NO TOQUE DA MACUMBA, SARAVÁ, ALAFIÁ!
SEU ZÉ, MALANDRO DA ENCRUZILHADA
PADILHA DA SAIA RODADA… Ê MOJUBÁ!
SOU CAPA PRETA, TIRIRI, SOU TRANCA RUA
AMEI O SOL, AMEI A LUA, MARABÔ, ALAFIÁ!
EU SOU DO CARTEADO E DA QUEBRADA
SOU DO FOGO E GARGALHADA… Ê MOJUBÁ!
Ô, LUAR, Ô, LUAR… CATIÇO REINANDO
NA SEGUNDA-FEIRA
Ô, LUAR… DOBRA O SURDO DE TERCEIRA
PRA SAUDAR OS GUARDIÕES DA FAVELA
EU SOU DA LIRA E MEU BLOCO É SENTINELA
LAROYÊ, LAROYÊ, LAROYÊ!
É POESIA NA ESCOLA E NO SERTÃO
A VOZ DO POVO, PROFETA DAS RUAS
TANTAS ESTAMIRAS DESSE CHÃO
LAROYÊ, LAROYÊ, LAROYÊ!
AS SETE CHAVES VÊM ABRIR MEU CAMINHAR
À MEIA-NOITE OU NO SOL DO ALVORECER...
PRA CONFIRMAR
ADAKÊ EXU, EXU, Ê, ODARÁ!
Ê BARÁ Ô, ELEGBARÁ!
LÁ NA ENCRUZA, A ESPERANÇA ACENDEU
FIRMEI O PONTO, GRANDE RIO SOU EU!
ADAKÊ EXU, EXU, Ê, ODARÁ!
Ê BARÁ Ô, ELEGBARÁ!
LÁ NA ENCRUZA, ONDE A FLOR NASCEU RAIZ
EU LEVO FÉ NESSE POVO QUE DIZ:
Presidentes de Honra: Jayder Soares, Leandro Soares, Helinho de Oliveira?
Presidente: Milton Perácio
Diretor de Carnaval: Thiago Monteiro
Carnavalescos: Leonardo Bora e Gabriel Haddad
Mestre de Bateria: Fabrício Machado
Rainha de Bateria: Paolla Oliveira
Direção Geral de Harmonia: Andrezinho, Cacá Santos, Clayton Bola, Helinho Aguiar e Jefferson Guimarães
Intérprete Oficial: Evandro Malandro
Coreógrafos da Comissão de Frente: Hélio Bejani e Beth Bejani
1º Casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira: Daniel Werneck e Taciana Couto
2º Casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira: Andrey Ricardo e Jéssica Barreto
Diretora da Ala das Baianas: Dona Marilene
Diretores da Ala de Passistas: Avelino Ribeiro e Rosângela
Diretor de Barracão: Sylvio Baptista
FALA, MAJETÉ!
Sete Chaves de Exu
Quem sou eu... Quem sou eu?
1
-Câmbio, Exu! Fala, Majeté!
Exu, princípio de tudo: gira, faísca, espiral, movimento, corpo-redemoinho, Okotô!, desterro, fervura, espanto, espuma, axé da Terceira Cabaça, Igbá Ketá. Que abre, então, os caminhos: L’Onan, Legba, Eleguá, Bará, Elegbara, Mavambo - pé na porta, pedrada, com sete chaves nas mãos, o nó das encruzilhadas, tranca, carranca, Calunga Grande, porteiras, ponteiras, diásporas, às travessias na barca, correntes os olhos e as águas. Salve Aluvaiá, Salve Bombogira! “O que se há de?”– mar de dendê! O que será?
2
Exu que se fez caboclo, poeira, na cruza, em brasa, chão de terreiro, fora da casa - o mundo inteiro nos pés de andarilhos peregrinantes. Os chifres, os dentes, os búzios, as garras: batalhas! Ali, tanto sacrifício: argila vermelha na praia. Rasgos, penhascos, altares, o orí, a voz de Palmares: os gritos, os mitos, os guizos, a cabeça de Zumbi, “mortal eterno”, “ente coletivo” ao soldo mais verde encanto (porque Zumbi-Exu está em tudo quanto é canto). Agbá! – espraiou-se o culto, firmeza e toque. Sigamos!
3
Exu de proezas tantas, pelejas, orikis, Ifá, adivinhação, histórias fragmentadas nas entrelinhas de odús - o destino do rei de Oió e o trono do Engenho Velho. Odusô, o guardião. Erro que vira acerto, certo que brota errado, do outro lado, enigma, tempero,
vuco-vuco, o remédio e o veneno. Tendas, feiras, farofas, recados, as lendas da criação debulhadas nos mercados, o corpo que voa fechado e a visão de cada um: ninguém pode viver sem mim. Preceitos, pressentimentos, trotes, fabulações. Trocas, trocadilhos, línguas desgovernadas. Ciscos, lâminas, lágrimas – Olobé, Elebó, cachimbos, caixotes, cachaça. Truques de linguagem: traquinagens. Osijê, Obá Babá! Oferendas d’Eleru. Pimentas!
4
“Salve o Sol, salve a estrela, salve a Lua!” Saravá, Seu Tranca Rua! Exu que são muitos em um: corpo em si desdobrável. Fala, falo e falácia: falanges. Alafia! Centenas de sobrenomes que vem de muitos lugares – Rio que leva as gentes, ruas que tudo dragam. Exu, malandro Pelintra, Padilha, fio de Navalha, ponta de agulha, os cacos da noite, as sombras da Lapa, Marias, ciganos, cigarras, jogo e cartas na mesa, rendas, vidrilhos, rasteiras, meio-fio das quebradas, rabos de galo e de saia, também os rabos de arraia, o cheiro bom da cerveja, destreza, sem falar nas gargalhadas. O primeiro gole é dele! Exu, Veludo encarnado, luz de abajur, sonhos bordados – sentimentalmente, visivelmente.
“Exu Caveira, Capa Preta, Sete Catacumbas estavam por ali; Fui convidado pra uma festa nobre; na casa de Exu Tiriri...”
5
Exu, potência e gingado, ponto riscado na carne, palco das festas da gente. Brinca o Carnaval em transe, desafia, des(con)fia, desconcerta, bate a bola no asfalto, pisa no sapatinho, samba despudorado, dança inflado de vida, palhaço, e trança a crina do cavalo.
Deus de chinelo rasgado, boca beijada, copo na mão, Seu Sete da Lira, bloco lotado, a máscara, Odara!, o baque, o buraco, o cru, o afoxé, o maracatu, o surdo de terceira, a fuzarca dos velhos cordões, o som que vem das favelas, capaz de transver o mundo. Exu, pedra que pulsa, valsa convulsa, mangue que benze, curva, couro, esquina, jorro, ouro e lata no Bal Masqué: não é um robô sanguíneo, não! É santo – mas nem tanto.
6
Exu de tinta e de sangue: é dose, tudo come, tudo sabe, tudo viu. De curto pavio! Lamento de poetinhas – porque tudo é perigoso, divino-maravilhoso. Desnuda as frases
no muro, sagrado e profano, mundano, pós-contemporâneo, língua ferina, flauta e cajado, casa de bamba, Basquiat no batuque, as letras amadas, a macumba dos modernistas, o piá-Macunaíma, os perfumes rosianos, na saga do Ser-Tão, “Exu nas escolas”, voz estelar, quebrando tabus e “costumes frágeis” - vocês não aprendem na escola. Vocês copiam! Criemos! Novas pedagogias, para os tempos que virão. Verão! Antropofagias, Enugbarijó. “Através das travessuras de Exu / Apesar da travessia ruim...”
7
Exu que não é o diabo do teatro colonial, projeto de corpos mortos (culpas, medos, grilhões, carcaças, escravos disfarçados de libertos) - mas força que une os opostos, jongo de ser e não ser. Exu, to be e Tupi! Fome, cada vez mais fome! Insone. Os nervos são fios elétricos. Evoca os profetas do caos, as vozes do lixo, a desconstrução, o avesso do manto, um sem quanto, a costura dos trapos, as aparições, remendos-retalhos, o eterno retorno, a fortuna, os farrapos, o espanto e a possível, por que não?, recriação: Olímpia, Stela, Jardelina, Arthur Bispo do Rosário, Estamira no lixão de Gramacho, às margens da alegria, cantarolando aos vapores, saudando os cometas e o fogo, ao som milenar das estrelas, Yangi, pedras de laterita, bailando, da pá virada, Molambo, Mulamba, ruínas:
“Todo lugar tem uma rainha, lá no lixo também tem...”
Exu, a sacerdotisa:
-Câmbio, Exu! Fala, Majeté, fala! Os além dos além é um transbordo. Tem o eterno, tem o infinito, tem o além dos além. O além dos além vocês ainda não viram. Se eu sou à beira do mundo! Entendeu agora? Quer me desafiar? Você quer saber? Cada pessoa é um astro! Câmbio, Exu! Fala, Majeté, fala!
Falemos! Dancemos! Bebamos! Vivamos! Destranquemos os olhos! Sigamos por outros caminhos! Cantemos até o fim – que não deixa de ser um começo. Ouçamos os atabaques - atentos, plenos, fortes!
Exu, a ancestralidade. Exu, desenredo proposto. Exu, a aposta mais alta. Exu, o padê arriado. Exu, passada ligeira: Exu, Laroiê, Mojubá!
- Câmbio, Exu!
Fala, Grande Rio!
Transbordado com expressões e falas retiradas do documentário “Estamira”, de Marcos Prado, além de fragmentos de poemas, canções e pontos de macumba. Inspirado nas provocações de Conceição Evaristo, Helena Theodoro, Alberto Mussa, Luiz Antonio Simas (“Exu é uma escola de samba!”) e Luiz Rufino; e nas narrativas orais de Luiza Maria e Dib Haddad. Dedicado aos inúmeros torcedores apaixonados que nos ajudaram a tecer este manifesto, fonte de afeto, convite para o diálogo. Axé!
Carnavalescos – Gabriel Haddad e Leonardo Bora
Pesquisa, costura e texto – Gabriel Haddad, Leonardo Bora e Vinícius Natal. Colaboração de Thiago Hoshino e Luise Campos.