Durante dezesseis anos, Juliana (nome fictício), de 38 anos, foi vítima de violência doméstica. Para ela, tudo se resumia em apenas um sentimento: culpa. Entre o medo de sofrer novas agressões e a coragem de denunciar, a cabeleireira passou muitas noites sem dormir temendo não só por sua vida, mas também pela integridade de suas filhas.
Moradora da Baixada Fluminense, Juliana começou a sofrer violência doméstica após ser mãe pela primeira vez, quando descobriu traições do marido e pediu a separação. A partir de então, o comportamento ciumento e controlador de seu companheiro na época se intensificou, marcando o início dos abusos físicos e psicológicos que perduraram por muitos anos.
Embora Juliana pedisse que o marido fosse embora da casa onde moravam, local de propriedade dela, ele se recusava a sair. Conviver com móveis quebrados em acessos de fúria de seu então companheiro e trabalhar com manchas roxas pelo corpo viraram algo frequente na vida da cabeleireira. Além do medo, ela sentia vergonha da situação e não tinha coragem de pedir ajuda, tampouco denunciar.
A reviravolta na história de Juliana começou na única vez em que revidou a violência vivenciada. Acusada de ter praticado tentativa de homicídio, a cabeleireira respondeu a um processo criminal que durou 10 anos, o que a impediu de tomar posse em um concurso público e sair do ciclo de violência.
O relatório que mudou tudo
Quando o caso de Juliana chegou até a Defensoria, as defensoras responsáveis prontamente entraram em contato com a equipe do Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), que produziu um relatório psicossocial, peça fundamental para garantir a absolvição sumária de Juliana e demonstrar que, na realidade, a assistida era a verdadeira vítima.
Para a produção do documento, a assistente social Moema Morais e a psicóloga Pâmella Duarte avaliaram os fatos narrados por Juliana, analisaram documentos processuais e utilizaram referências teóricas sobre violência doméstica e seus impactos com o viés da perspectiva de gênero para o campo jurídico.
— A finalidade do atendimento da assistida era averiguar se de fato, ela era vítima de violência. Desde os primeiros minutos de conversa, já percebemos que Juliana trazia em sua fala sinais de um esgotamento mental fruto de um relacionamento totalmente abusivo, vivido com violências perpetradas por seu ex-marido — conta Moema Morais.
No relatório, as profissionais também ressaltaram que, além da violência física, Juliana também era vítima de violência psicológica. Por várias vezes a cabeleireira registrou as agressões em sede policial, sendo deferida medida protetiva de urgência. Seu ex-companheiro, no entanto, não respeitava as determinações judiciais.
— No campo da análise é facilmente perceptível que a ocorrência da violência psicológica se dava na recusa do ex-marido na separação e imposição de sua presença na casa, que não era dele. Vemos aí, como a supremacia masculina, como o poder patriarcal é demonstrado na postura do homem em que a palavra da mulher e os pedidos de saída da residência, reiterados, não foram respeitados, fora as agressões verbais que também eram constantes — explica a psicóloga Pâmella Duarte.
A absolvição no Júri
Segundo a defensora Rafaela Mazeliah, que atuou no caso, quando mulheres vítimas de violência doméstica sentam no banco dos réus por interpretações equivocadas daquilo que viveram é como se houvesse uma invisibilização de todos os fatores de opressão sofridos por elas.
— Quando a mulher é tratada como se fosse um homem, são desconsideradas todas as questões do machismo, do patriarcado, de raça, classe, gênero e todas as opressões que incidem sobre essas mulheres — disse Mazeliah.
Para a defensora, o relatório foi essencial para que Juliana tivesse a absolvição sumária.
— O sistema de justiça muitas vezes não está preparado para ter esse olhar humanizado para questões tão profundas. Apenas com seu relato, Juliana não seria capaz de expressar e trazer a profundidade do fenômeno de violência que ela sofria. O próprio promotor que atuou no caso disse que o relatório do Nudem foi fantástico e que era uma tristeza Juliana estar indo a júri naquele dia — ressalta a defensora.
— A história de Juliana mobilizou toda a nossa equipe. A assistida trazia consigo uma história de muita luta por ser mulher, preta, com poucos recursos financeiros e mãe de quatro filhas que dependiam somente dela para garantir a subsistência. Foi uma vitória muito importante e que com certeza fará muita diferença na vida de Juliana, completou a defensora Bruna Pizzari, que também atuou no júri.
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro